• Nenhum resultado encontrado

REVISTA DO SPHAN E LEGITIMAÇÃO DE UMA IDENTIDADE NACIONAL

2 CENÁRIO DOS ESTUDOS BRASILEIROS E DA ATUAÇÃO DE AFONSO ARINOS NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO

2.4 REVISTA DO SPHAN E LEGITIMAÇÃO DE UMA IDENTIDADE NACIONAL

Diante dos contrastes e da diversidade presente no território e na população brasileira, diferentes soluções e explicações de uma identidade nacional também foram pensadas. Essas explicações podiam comportar a valorização ou não das diferenças regionais como constituintes dessa identidade. Seguindo a ambiguidade que caracterizava os discursos desse momento, tais diferenças regionais podiam ser vistas como sinais de atraso e obstáculos para a atualização da cultura brasileira ou, ainda, como depositárias da verdadeira identidade nacional. No caso do SPHAN, a crença na universalidade e na origem comum da cultura e da arte marcaram as produções em torno das concepções de nação65.

A Revista do SPHAN levantava, classificava, mensurava e definia o que tinha ou não valor histórico e o que poderia ser considerado como patrimônio nacional. Dentre os intelectuais que colaboraram para a Revista nos anos 1930, encontramos: Rodrigo Melo Franco de Andrade, Lúcio Costa, Heloisa Alberto Torres, Gilberto Freyre, Roquette Pinto, Alberto Lamego, Mario de Andrade, Carlos Estevão, Estevão Pinto, Godofredo Filho, Afonso Arinos e muitos outros.

Conforme Márcia Chuva66 “[...] a política editorial do SPHAN foi marcada por uma

produção discursiva descritiva e classificadora do patrimônio histórico e artístico nacional”. Para essa autora, com essa produção, o SPHAN ocupou um lugar de destaque e adquiriu legitimidade nos debates sobre nação e identidade nacional, fixando um mapa de possibilidades sobre a cultura brasileira. Com isso, tornou-se autoridade nas questões de patrimônio, de tal forma que seria impossível não se referir a esse órgão ao se tratar de preservação cultural, ainda que fosse para criticá-lo ou questioná-lo.

65 Cf. CHUVA, Márcia. Fundando a nação: a representação de um Brasil barroco, moderno e civilizado. Revista

TOPOI, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, p. 313-333, jul./dez. 2003. Disponível em: <http://revistatopoi.org/

numeros_anteriores/Topoi%2007/topoi7a4.pdf>. Acesso em: 15 maio 2014. p. 314.

E é justamente esse mapa de possibilidades que vemos esboçado nas páginas dessa revista. Seus colaboradores trataram de vários aspectos da cultura brasileira, levantando materiais, monumentos, produções artísticas, artefatos, costumes, enfim, tudo que pudesse ser englobado como patrimônio material e passível de ser lembrado e preservado. Seus artigos passearam por diversos contextos, desde o colonial até o momento em que a revista era produzida e tanto serviram como instrumento de catalogação desse acervo quanto de divulgação e legitimação do SPHAN.

Dentre os muitos aspectos tratados, destacamos aqueles relativos aos povos indígenas, cujo patrimônio também fez parte das discussões da Revista, com destaque para o artigo escrito por Heloisa Alberto Torres67 (1895-1977), antropóloga do Museu Nacional, intitulado

“Contribuição para o Estudo da Proteção ao Material Arqueológico e Etnográfico do Brasil”,

publicado no número 1 da Revista. Esse artigo traçou as linhas condutoras da política que o SPHAN adotaria para o tratamento do patrimônio produzido pelas populações indígenas.

No artigo, Torres68 propunha um plano geral para proteção do patrimônio material arqueológico e etnográfico tanto das populações indígenas, quanto das que nomeava como neobrasileiras. Para isso, dividia esse material em três grupos:

I) Jazidas arqueológicas;

II) Coleções e espécimes arqueológicos e etnográficos que se achem em museus ou quaisquer outras instituições federais, estaduais, municipais, públicas ou de propriedade particular.

67 Heloisa Alberto Torres está entre as mulheres que, na década de 1930, se destacavam nos ambientes intelectuais.

Por meio de uma atuação multifacetada, além do Museu Nacional, atuou em várias instituições do campo científico e cultural brasileiro, a exemplo do Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil (1934 e 1939). Sua atuação nesse Conselho proporcionou um incremento significativo das coleções etnográficas do Museu Nacional. Também teve participação de destaque no Conselho Nacional de Proteção ao Índio (CNPI) desde sua fundação, em 1939, tornando-se sua diretora entre 1955 e 1967, em substituição ao Marechal Rondon. Em 1967, quando foi criada a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Heloisa chegou a fazer parte desse período inicial. Também esteve ligada à história e à concepção da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e foi sua a ideia de realizar o primeiro Congresso Brasileiro de Antropologia em 1943. Assumiu ainda papel relevante na criação e gestão do SPHAN em 1937, e suas gestões estiveram voltadas para a criação do Instituto Internacional da Hiléia Amazônica (IIHA) com o patrocínio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Cf. HOFFMANN, Maria Barroso. Apresentação. In: MUSEU NACIONAL. Departamento de Antropologia. Coleção Heloísa Alberto Torres. Rio de Janeiro, [ca. 1998]. p. 1-31. Disponível em: <http://laced.etc.br/site/arquivos/Cole%C3%A7%C3%A3o%20Helo%C3%ADsa%20Alberto% 20Torres.pdf>. Acesso em: 18 abr. 2016. Ver também, sobre sua atuação no CNPI, em: INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Povos Indígenas no Brasil. O Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Brasília, 2016. Disponível em: <http://pib.socioambiental.org/pt/c/politicas-indigenistas/orgao-indigenista-oficial/o-servico-de-protecao-aos- indios-(spi)>. Acesso em: 18 abr. 2016.

68 TORRES, Heloisa Alberto. Contribuição para o estudo da proteção ao material arqueológico e etnográfico do

Brasil. Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 1, p. 9-30, 1937. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/>. Acesso em: 18 set. 2015.

III) produto de arte de populações indígenas ou neobrasileiras atuais que, tendo possuído um patrimônio de cultura original, se encontrem em condições precárias econômicas e sociais e se revelem, assim, incapazes de defender o seu regime normal de vida69.

Para Torres70, a tarefa a ser realizada não era fácil. Cada um dos aspectos apontados requeria, na avaliação da antropóloga, um tratamento específico e minucioso. Alguns poderiam revelar-se de difícil encaminhamento, mas uma ação continuada, esclarecedora e enérgica contribuiria muito para a salvação de um vasto patrimônio artístico e científico no domínio da Antropologia.

A proposta contida no artigo citado fazia parte de uma campanha lançada pelo SPHAN e, nesse sentido, Torres argumentava que havia a necessidade de elaborar mapas apontando as principais jazidas arqueológicas, agrupadas por tipos, para uma maior compreensão. Para ela também era conveniente, “[...] divulgar elementos mais característicos de nossas culturas extintas e atuais”71, pois tais informações gerariam um conhecimento maior acerca do patrimônio que possuíamos. A antropóloga esperava que esse conhecimento aumentasse o interesse em torno da valorização e preservação desse patrimônio, ao mesmo tempo em que ajudaria a julgar convenientemente o valor dos achados.

Apesar de achar importante a publicação de uma relação das peças já encontradas e depositadas em várias instituições do governo e nas mãos departiculares, Torres acreditava que não era o momento adequado para fazer isso, pois poderia não surtir o efeito que o SPHAN esperava com a campanha. Acreditava que uma publicação detalhada, naquele momento, “[...] prejudicaria a formação de uma ideia equilibrada do conjunto das nossas riquezas arqueológicas”72.

Quanto a um levantamento com o patrimônio que já havia sido identificado, bem como o que já estava sendo preservado, ficaria para o número 2 da Revista, no qual se faria uma revisão de tudo o que já se tinha estudado e apurado em relação aos achados arqueológicos. Além disso, também se dariam instruções capazes de orientar os interessados nas observações desses materiais. Tudo isso fazia parte da campanha e tinha como objetivo receber a colaboração dos brasileiros ou não brasileiros, de todas as regiões do país, para que esse propósito lograsse êxito73.

69 TORRES, Heloisa Alberto. Contribuição para o estudo da proteção ao material arqueológico e etnográfico do

Brasil. Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 1, p. 9-30, 1937. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/>. Acesso em: 18 set. 2015.

70 Ibid., p. 9-10. 71 Ibid., p. 10. 72 Ibid., p. 10. 73 Ibid., p. 10.

Anunciado o objetivo inicial do seu artigo, que era divulgar a campanha, Torres passou a descrever alguns aspectos do patrimônio já identificados e suas considerações seguiram os três tópicos elencados para agrupar o material arqueológico. Em relação ao tópico I, ela localizava algumas das nossas jazidas arqueológicas, especialmente na região Norte, e apontava possibilidades e problemas, sobretudo no que se referia à destruição dessas jazidas. Para ela, a ignorância dos que encontravam os sítios arqueológicos concorria para a sua destruição. Para combater tal ignorância, propunha que o SPAHN elaborasse pequenas publicações destinadas aos leigos com linguagem acessível. Previa também a publicação de pequenos guias aos que, porventura, encontrassem algum sítio arqueológico, que osorientassem sobre como proceder74. Ao se referir ao tópico II, relacionou várias instituições públicas e privadas detentoras de materiais de valor arqueológico e etnográfico. Acrescentou informações indicando quais objetos e coleções e em quais condições de preservação encontrava-se cada acervo. Para o item III, apresentou preocupações em torno da proteção aos produtos de arte das populações indígenas e dos neobrasileiros. Esses produtos eram entendidos como “[...] manifestações da indústria humana, originais e peculiares a certos grupos”75. Do seu ponto de vista, a proteção a esse patrimônio equivalia à proteção às próprias populações.

Aliás, nesse levantamento, chama atenção a maneira como a antropóloga refere-se, por várias vezes, aos neobrasileiros. Provavelmente, reportava-se aos indígenas incorporados à chamada civilização brasileira. Em tempos de crença no fator “aculturação” e numa aparente “perda de identidade”, o raciocínio da antropóloga conectava-se com um pensamento hegemônico e com políticas públicas engendradas no contexto, que se mantinham com base nos pilares ideológicos que marcaram períodos anteriores, como a crença na inexorabilidade do fim do indígena. Numa perspectiva evolucionista e positivista, o indígena estava num estado transitório. Acreditava-se que esses povos, ao serem integrados à nação brasileira, deixavam de ser indígenas. Passavam a ser civilizados; tornavam-se brasileiros. Para Torres, neobrasileiros. Havia também a ideia de que a cultura desses povos desapareceria; daí a necessidade de salvaguardá-la.76

74 TORRES, Heloisa Alberto. Contribuição para o estudo da proteção ao material arqueológico e etnográfico do

Brasil. Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, n. 1, p. 9-30, 1937. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/>. Acesso em: 18 set. 2015. p. 15.

75 Ibid., p. 24. 76 Ibid.

Para Torres77, o SPHAN não podia desconsiderar as condições dessas populações. No caso dos indígenas, toda a proteção deveria ficar ao livre arbítrio desse órgão, pois, para a antropóloga, cuja atuação se dava num contexto de afirmação e naturalização da tutela78, tratava-se de povos que não conseguiam exprimir, ou sequer sugerir, o modo pelo qual desejavam ser amparados, muito menos discernir o que era conveniente para ser aplicado enquanto proteção79.

Na sua concepção, os procedimentos do SPHAN junto aos indígenas deveriam seguir dois princípios: conservação e reparação. Teria que ser reconhecido o direito que possuíam em relação às terras que habitavam, portanto deveriam ser conservados em seus ambientes e de acordo com seus modos de vida. E a reparação deveria compensar as perseguições que sofreram ao longo dos séculos80.

Mas a antropóloga reconhecia que havia uma dificuldade grande a ser enfrentada para a conservação dos indígenas em suas terras diante do processo de modernização em curso. Argumentava que persistia entre os chamados progressistas a ideia de que os indígenas deveriam desaparecer, quanto mais depressa melhor. E ressaltava que esse espírito progressista, na maioria das vezes, acobertava grandes ambições que tinham como foco as terras indígenas,

É a castanha, é a seringa é a madeira das terras demarcadas para índios que desperta neles tamanhos pruridos de progresso; que os leva a manifestar-se desse modo e pior do que isso, a agir no sentido de apressar o desaparecimento do índio atrasado e inaproveitável. Ilustrar a asserção por meio de exemplos levaria à constituição de uma biblioteca de muitas centenas de volumes.81

77 TORRES, Heloisa Alberto. Contribuição para o estudo da proteção ao material arqueológico e etnográfico do

Brasil. Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, n. 1, p. 9-30, 1937. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/>. Acesso em: 18 set. 2015.

78 Para maior compreensão dessa questão, Cf.: ROCHA, Leandro Mendes. A política indigenista no Brasil: 1930-

1967. Goiânia: EDUFG, 2003. p. 66-74. LIMA, Antonio Carlos de Souza. Reconsiderando poder tutelar e formação do estado no Brasil: notas a partir da criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais. In: FREIRE, Carlos Augusto da Rocha (Org.). Memória do SPI: textos, imagens e documentos sobre o Serviço de Proteção aos Índios (1910-1967). Rio de Janeiro: Museu do Índio – FUNAI, 2011. p. 203-206.

79 TORRES, op. cit., p. 25.

80 Ibid., p. 25. Embora Heloisa Torres não explicite nesse artigo como deveria ser feita essa reparação, suas

considerações sobre a questão certamente estariam seguindo a política do SPI. A partir dos anos 1940, quando integrou o CNPI, o fez num momento em que os antropólogos passaram a atuar na formulação das políticas indigenistas brasileiras. Esse Conselho também contou com outros antropólogos ao longo do tempo, como Darcy Ribeiro, Roberto Cardoso de Oliveira, Eduardo Galvão, entre outros, que acreditavam na inevitabilidade da integração dos indígenas à sociedade nacional, mas defendiam a ideia de que esse processo não deveria ser estimulado pelo SPI. Cf.: INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Povos Indígenas no Brasil. O Serviço de

Proteção aos Índios (SPI). Brasília, 2016. Disponível em: <http://pib.socioambiental.org/pt/c/ politicas- indigenistas/orgao-indigenista-oficial/o-servico-de-protecao-aos-indios-(spi)>. Acesso em: 18 abr. 2016.

A afirmação dessa antropóloga encerra-se com a observação de que centenas de volumes de livros seriam necessários para exemplificar os casos que atestavam tal assertiva. Suas observações estavam pautadas na ação do Estado brasileiro com seus órgãos produtores das políticas indigenistas. Nos rastros dessas políticas, muitos inimigos tradicionais dos indígenas, fortalecidos pelos poderes locais, tiravam proveito do aumento das pressões econômicas sobre as terras indígenas nas regiões onde ocorria a expansão da sociedade envolvente82.

Sabedora das ações do Estado brasileiro junto aos povos indígenas desde os primeiros anos daquela década, Heloisa Alberto Torres escreveria em 1937, já ciente da intensificação dessas ações e vendo cada vez mais claro o prenúncio do que viria no rastro do Estado Novo. Em 1940 o governo de Getúlio Vargas lançou a Marcha para o Oeste, imprimindo maior dinamismo a essas políticas. Esse projeto resultou em prejuízos incalculáveis para as populações indígenas, com a intensificação da colonização, invasões e tomadas de suas terras83.

Ao se posicionar contrária à forma como o Estado tratava esses grupos, Torres expressa em seu artigo aspectos relevantes das questões que envolviam tais políticas. Para ela, era um equívoco fazer os indígenas acreditarem que eram inferiores e deslocá-los dos seus ambientes, desestruturando suas formas tradicionais de organização. Era equivocado destruir uma cultura que lhes regia a vida, substituindo-a por outra que não estavam em condições de aproveitar. Contrariando o que afirmara anteriormente em relação à falta de capacidade de discernimento desses povos, ela iria dizer que caberia aos indígenas a escolha: “Quando a nossa cultura os interessar, eles que venham a nós, em vez de irmos nós a eles, levando-lhes elementos que, por mais vantajosos que nos pareçam, não se ajustam às suas condições de vida, sem causar choques, às vezes de consequências lastimáveis.”84

Suas considerações, porém, não se distanciavam muito do pensamento corrente no período em que escrevia. Era comum que se defendesse, em relação aos indígenas, a necessidade de transitarem de um estado primitivo para um civilizado. Sobre deixar que os indígenas tomassem a iniciativa de procurarem os brancos, afirmava: “Não se pretende, com isso, conservar os índios em estado de primitividade”.85 Justificava seu posicionamento, alegando que era para evitar que índios “deculturados” se sentissem estrangeiros dentro do seu próprio meio, chegando ao cúmulo de correrem desesperados, quando ouviam um motor de

82 ROCHA, Leandro Mendes. A política indigenista no Brasil: 1930-1967. Goiânia: EDUFG, 2003. p. 51. 83 Ibid., p. 161-190.

84 TORRES, Heloisa Alberto. Contribuição para o estudo da proteção ao material arqueológico e etnográfico do

Brasil. Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 1, p. 9-30, 1937. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/>. Acesso em: 18 set. 2015. p. 26.

barco, clamando para serem levados para a cidade, situação que, segundo ela, muitos viajantes testemunhavam86. Testemunho que a antropóloga não questionava, era aceito como irrefutável em pleno processo de expansão do Estado e de tomada de terras indígenas. Estava também nas preocupações de Torres, evitar, para os indígenas, uma vivência em um meio estranho e sem condições de acolhê-los com condições dignas de sobrevivência, já que, segundo ela, estava se tornando comum, em situações desse tipo, que rapazes indígenas recorressem à malandragem enquanto as moças caíam na prostituição87.

Como sinalizamos, para Torres, a proteção do patrimônio das comunidades indígenas não estava dissociada de uma proteção aos integrantes dessas comunidades. A solução para que essa proteção se efetivasse estava na demarcação de suas terras. Seus argumentos certamente se amparavam em duas questões: o conhecimento do longo processo de expropriação das terras indígenas, incluindo as formas violentas de expulsão, afinal, integrava o CNPI; uma copiosa legislação que garantia ao índio, na teoria, o direito à terra, mas que, na prática, não lhe assegurava plenamente esse direito.

Ao insistir na demarcação das terras como condição imprescindível para a sobrevivência desses grupos e preservação do seu patrimônio, a antropóloga explicitava o que entendia como critérios adequados para tal medida:

a) terras suficientemente grandes para garantir a sobrevivência dos grupos de acordo com seus padrões de organização;

b) garantir que o sustento desses grupos ocorresse de acordo com seus esforços, sem intervenções;

c) fechamento e controle das terras que fossem destinadas aos índios “hostis” ou “segregados”. Nesse caso, o acesso seria liberado apenas aos funcionários de Serviço de Proteção ao Índio (SPI)e aos pesquisadores, sendo esse controle feito pelo SPI; d) doação de instrumentos de trabalho aos indígenas, de qualidade superior aos que

detinham, para que pudessem fazer o trabalho agrícola;

e) garantir que os indígenas seriam informados de que dispunham de um Posto Indígena acessível para suprir suas necessidades;

86 TORRES, Heloisa Alberto. Contribuição para o estudo da proteção ao material arqueológico e etnográfico do

Brasil. Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 1, p. 9-30, 1937. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/>. Acesso em: 18 set. 2015. p. 26.

f) fiscalização das atividades dos “civilizados” em relação aos indígenas. A autora refere-se a um “policiamento dos civilizados”. No mais, seria trabalho do tempo e dos próprios indígenas88.

Essa longa exposição da matéria de Heloisa Alberto Torres foi intencional e necessária, na medida em que nos permite refletir sobre a relação do Estado com os intelectuais, mediante a formulação de políticas públicas. Nesse caso, também nos proporciona a avaliação da presença do Estado junto aos povos indígenas num contexto de rápidas e importantes modificações que marcaram o que ficou denominado de processo de modernização do país.

Esse contexto é frequentemente associado a um processo de reorganização, modernização e burocratização do Estado. Nele, diversas agências estatais ampliaram suas ações por todo o território brasileiro e atingiram populações indígenas que, até aquele momento, estavam completamente à margem da ação direta do Estado. Nesse processo de expansão foram criados órgãos como o CNPI, a Fundação Brasil Central (FBC) e a Superintendência do Plano de Valorização da Amazônia (SPVEA)89.

A partir dos anos trinta, observam-se mudanças na política indigenista que podem ser constatadas desde a Constituição de 1934, quando o direito à terra, que até então era circunscrito