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AMBIGUIDADES, DISCORDÂNCIAS E CONCORDÂNCIAS: A MESTIÇAGEM NA IMPRENSA

5 RIOS VERDE E NEGRO E A POLUIÇÃO DAS CRISTALINAS ÁGUAS DO LAGO PORTUGUÊS

5.3 AMBIGUIDADES, DISCORDÂNCIAS E CONCORDÂNCIAS: A MESTIÇAGEM NA IMPRENSA

A veiculação das ideias sobre mestiçagem com seus desdobramentos, ambiguidades, concordâncias e discordâncias pode ser verificada nos jornais e revistas publicadas na década de 1930. Neles podemos constatar pontos importantes e identificar a permanência de uma lógica que associa negativamente o mestiço a características inferiores, ainda que reforce a esperança de viabilidade para o país.

Em matéria publicada em 1932, a Revista Careta, certamente preocupada com o clima característico de um período entre guerras, trazia uma matéria intitulada O Mestiço e as

Guerras, que começava com uma citação do general Couto de Magalhães retirada do livro O Selvagem109. Ela referia-se à afirmação que o general fazia, de que o melhor mestiço era o

que resultava do tronco branco, no qual havia se infiltrado um quinto de sangue indígena. Segundo esse general, não havia motivos para conservar-se apreensão e receios acerca dos futuros habitantes do Brasil. Para isso, bastava apenas que se deixasse seguir o que denominou de processo da natureza:

107 Cf. ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Tradução Ruy Jungman. Revisão e

Apresentação Renato Janine Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. v. I. p. 10.

108 Cf. GEBRIM, Virginia Sales. A difusão dos saberes e práticas escolares na pedagogia nova: o livro como

dispositivo estratégico. Revista Educativa, Goiânia, v. 10, n. 1, p. 85-95, jan./jun. 2007. Disponível em: <seer. ucg.br/index.php/educativa/article/view/176>. Acesso: 12 mar. 2015; SCHUELER, Alessandra Frota Martinez de; MAGALDI, Ana Maria Bandeira de Mello. Educação escolar na Primeira República: memória, história e perspectivas de pesquisa. Revista Tempo, Rio de Janeiro, n. 26, p. 32-55, jan. 2009. Disponível em: <www.scielo.br/pdf/tem/v13n26/a03v1326.pdf>. Acesso em: 13 mar. 2015.

109 MAGALHÃES, Couto de. Gen. O selvagem. 3. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935. Disponível

Nosso reservatório de população é a Europa; não continuamos a importar africanos. Os indígenas, por uma lei de seleção natural, há (de) cedo ou tarde desaparecer. Mas se formos previdentes e humanos, eles não desaparecerão antes de haver confundido parte de seu sangue com o nosso, comunicando-nos as imunidades para resistirmos à ação deletéria do clima intertropical que predomina no Brasil110.

Nota-se que o trecho citado foi escrito no século XIX, num contexto em que a mestiçagem era vista como degenerativa. Há também uma apologia ao branqueamento, com ênfase nos cruzamentos com imigrantes, além da conhecida ideia de que os indígenas desapareceriam, conforme preconizou Martius111. O tom da revista escrita em outro contexto trazia, entretanto, a mestiçagem como possibilidade de uma imunidade necessária para a sobrevivência do povo brasileiro frente ao clima intertropical. A revista acrescentava: “Nosso futuro por este lado, é cheio de esperanças, não o perturbemos com guerras”112.

Também em 1932, o Diário Carioca, ao tratar do clima carnavalesco que tomava conta do Rio de Janeiro, referiu-se ao “cheirinho das mulatas” e lembrava que muitos atribuíam a cor da pele dessas moças ao fato de se bronzearem na praia de Copacabana, numa clara negação da condição mestiça. Para o cronista, o brasileiro não tinha coragem de admitir que era um povo mestiço, mas, quando tivesse essa coragem, sua originalidade seria ressaltada e perderia o pavor do ridículo. Sobre esse aspecto, opinava: “No dia, que tivermos essa coragem, seremos mais fortes [...] E [teremos] adquirido o senso exato da nacionalidade, as certezas dos destinos da raça, o bom hábito de não copiar o estrangeiro”113.

Embora o caráter positivo da mestiçagem dê o tom majoritário dos debates, é possível verificar, nesses jornais e revistas, o tom pejorativo, em que o mestiço continua sendo visto como inferior, ainda que as causas que explicam essa inferioridade tenham sido deslocadas do fator racial para os econômicos ou educativos. Até mesmo nas trovas e nas piadas apresentadas, o mestiço é inferiorizado, como podemos verificar no exemplo que segue:

Trovas

O carvão nacional Não pode dar bom serviço Talvez porque,

110 O MESTIÇO e as guerras. Revista Careta, Rio de Janeiro, ano XXV, n. 1262, p. 17, 27 de ago. 1932. Disponível

em: <http://memoria.bn.br/>. Acesso em: 3 ago. 2015.

111 Von MARTIUS, Carl Friedrich Phillip; RODRIGUES, José Honório. Como se deve escrever a história do

Brasil. Revista de História de América, New York, n. 42, p. 433-458, Dec. 1956. Disponível em: <https://docs.google.com/file/d/0B_KmZofvEaVoSi16UHZaeGFqZlU/view>. Acesso em: 3 jun. 2016.

112 O MESTIÇO..., op. cit., 2015.

113 OS “TANTALOS” do cheirinho das mulatas. Diário Carioca, Rio de Janeiro, Ano V, n. 1.108, p. 3, 3 fev.

Também ele,

Se tem tornado mestiço114.

Ou ainda na situação cômica que envolvia o escritor Lima Barreto. Com o título de

Excesso de Fundos, a mesma revista narrava um episódio ocorrido no tempo em que o

transporte era feito pela Companhia Carris Urbanos do Rio de Janeiro, época em que o bonde ainda era puxado por animais. Conforme a narrativa, no banco da frente, sentaram-se duas senhoras e um senhor considerados acima do peso. No banco de trás, viajava Lima Barreto que, ao ver o banco partir-se após um movimento mais brusco do bonde, teria exclamado: “Sim, senhor! É a primeira vez que assisto a quebra de um banco por excesso de fundos”115. No que pese o tom cômico da nota, a apresentação de Lima Barreto obedeceu aos pressupostos correntes sobre o mestiço, na medida em que a revista declarava: “Atrás, Lima Barreto que se não tivesse nascido mestiço e não se desse ao álcool, teria tido as glórias de um Eça de Queiroz [...]”116

O tom pejorativo também aparece em matérias que associam a mestiçagem a acontecimentos como o cangaço. No Diário de Notícias, do Rio de Janeiro, o ex-governador de Alagoas, Álvaro Paes, publicou matéria exclusiva para esse periódico, tratando dos feitos de Lampião. Argumentava que o cangaceiro era a expressão de uma “grave moléstia nacional”, de um “velho mal brasileiro”. Nas palavras do ex-governador: “Lampião é, antes de mais nada, o deserto dos nossos sertões, o analfabetismo das nossas sub-raças sertanejas, o mau caldeamento do nosso mestiço nervoso e turbulento, a nossa falta de educação moral e política [...]”117.

Outras situações omitem o fator racial para explicar os problemas sociais. Em alguns casos, as questões econômicas são arroladas como responsáveis por situações atribuídas aos mestiços, como, por exemplo, uma estreita relação entre mestiçagem e criminalidade:

Não há dúvida que a criminalidade, no Brasil principalmente, registra como criminosos mais mestiços do que indivíduos da raça branca, não obstante a grande diferença numérica em certos meios [...]

É que a raça, no caso, influi menos do que as condições econômicas [...] O mestiço, porém, nascido geralmente de pais pobres e incultos, quase sempre inicia a vida na miséria, desgostoso da sua origem. Sentindo-se tão inteligente como os brancos, vê-se sempre recalcado pela sociedade, permanecendo na baixa esfera em que nasceu, onde facilmente é levado ao crime.

114 TROVAS. Revista Careta, Rio de Janeiro, Ano XXIV, n. 1191, p. 24, 18 abr. 1931. Disponível em:

<http://memoria.bn.br/>. Acesso em: 3 ago. 2015.

115 POR EXCESSO de fundos... Revista Careta, Rio de Janeiro, Ano XXXI, n. 1584, p. 6, 29 out. 1938. Disponível

em: <http://memoria.bn.br/>. Acesso em: 3 ago. 2015.

116 Ibid. p. 6.

117 PAES, Álvaro. O banditismo no Nordeste: Lampião é a expressão violenta de um velho mal brasileiro. Diário

de Notícias, Rio de Janeiro, Ano I, n. 204, p. 2, 30 de dezembro de 1930. Disponível em:

Assim parece que os fatores principais que concorrem para a inferioridade do mestiço são os econômicos e educativos, acima dos propriamente raciais118.

A fome também foi apontada como responsável pela situação inferior dos mestiços. Em 1936, Josué de Castro, professor da Faculdade de Medicina de Recife, pesquisador das questões relativas à alimentação dos brasileiros, publicou o livro Alimentação e Raça119. A revista

Cruzeiro noticiou a obra, destacando a parte em que o professor levantava a tese de que não

havia raças fortes nem fracas, e sim raças bem ou mal alimentadas. Acrescentando a afirmação de que “[...] a falada inferioridade do mestiço brasileiro não é mal de raça, é mal de fome”120.

Através do Jornal do Brasil, tomamos conhecimento da conferência As Raças das

Colônias Portuguesas, proferida em junho de 1934 pelo professor Mendes Correia, diretor da

Faculdade de Ciências da Universidade do Porto. Esse jornal publicou uma nota com o resumo da conferência, informando que o professor traçou um breve quadro das diferentes raças das colônias portuguesas, acentuando a pluralidade dessas e a diversidade das suas tendências, capacidades e valor social121.

Conforme o jornal, o professor combatia uma política de igualdade e assimilação entre as raças, pois acreditava que esta era biologicamente utópica e qualquer esforço nesse sentido seria improcedente. Defendia uma política de compreensão, afeto e solidariedade, em que o indígena devia ser tratado carinhosamente. Ressaltava o grande papel das missões religiosas e sua ação educativa, bem como sua contribuição para o bom conhecimento das populações122.

Já em relação ao mestiço, Mendes Correia considerava que os estudos antropológicos estavam atrasados e apresentavam resultados contraditórios. Acreditava que havia mestiços bons e maus, úteis e desvantajosos. E ponderava que, na impossibilidade de prever com segurança as combinações genéticas favoráveis e desfavoráveis, e considerando também as condições educativas e sociais que influenciavam os mestiços, os Estados não deviam impedir a mestiçagem, pois tinham o dever urgente de estudar cientificamente e melhorar o “condicionalismo social” dessas pessoas. Apesar dessa proposição, ressaltava que isso não significava a igualdade biológica dos mestiços com as raças originárias123.

118 OS MESTIÇOS. Revista Careta, Rio de Janeiro, Ano XXXI, n. 1581, p. 30, 8 out. 1938. Disponível em:

<http://memoria.bn.br/>. Acesso em: 3 ago. 2015.

119 CASTRO, Josué de. Alimentação e raça. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1936. Biblioteca de Divulgação

Científica.

120 ALIMENTAÇÃO da raça: os brasileiros precisam cuidar da sua própria defesa. O Cruzeiro, Rio de Janeiro,

Ano VIII, p. 51, 22 fev. 1936. Disponível em: <http://memoria.bn.br/>. Acesso em: 4 ago. 2015.

121 A PRIMEIRA conferência do professor Mendes Correia. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano XLIV, n. 140,

p. 10, 14 jun. 1934. Disponível em: <http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 10 maio 2015.

122 Ibid., p. 10. 123 Ibid., p. 10.

Diante de uma seleta assistência, como observava o jornal, o professor Mendes Correia tratou de um tema bastante efervescente. No contexto em que proferiu sua conferência, havia ainda, entre intelectuais e políticos, o entendimento de que a formação do país exigia a compreensão da conformação natural do seu povo com vistas a prover o futuro com o aprimoramento da raça. Suas palavras de que os Estados precisavam investir cientificamente no condicionamento social dos mestiços encontrava ressonância entre os muitos que discutiam acaloradamente as possibilidades de um progresso étnico por meio dos cruzamentos, afirmando nossa singular mestiçagem.

Já em 1935, foi a vez do professor Austregésilo de Athayde, presidente da Academia Nacional de Medicina e membro da Academia Brasileira de Letras, publicar, na seção Ciências da Revista Brasileira, o artigo Os Benefícios da Mestiçagem no Brasil. Após criticar tanto brasileiros quanto estrangeiros que viam o Brasil mestiço de forma pejorativa, o professor enumerava os vários benefícios da mestiçagem, argumentando que ela era a garantia para a resistência e melhoria da humanidade e rebatia as afirmações de que o brasileiro era um tipo étnico inferior124.

Discordando das interpretações de Euclides da Cunha e Oliveira Viana, o professor Austregésilo argumentava que a “mestiçagem fixada” era a fonte de origem da capacidade intelectual e criadora do brasileiro. Afirmava que a grandeza do Brasil era proveniente da mestiçagem. Concluía seu artigo, reforçando o futuro mestiço do povo do Brasil e conclamando os brasileiros a não se sentirem tristes diante dessa realidade: “Caminhamos para a construção de um tipo resultante de muitas raças em que predominam o ibero, o índio e o africano. Não nos entristeçamos por causa da mestiçagem brasileira”125.

Em 1934, um ano antes da publicação do artigo do professor Austregésilo, essa mesma revista trazia, na Seção Letras e Sociologia, uma crítica assinada por Fabio Luz a respeito da obra póstuma Meu Próprio Romance126 de Graça Aranha, publicado em 1931. Nas várias observações feitas sobre o livro, destaca-se a censura ao comportamento de Graça Aranha, que o crítico interpretou como “[...] infantil orgulho aristocrático de ser de raça ariana pura”127.

124 ATHAYDE, Austregésilo. Os benefícios da mestiçagem no Brasil. Revista Brasileira: Síntese do Momento

Contemporâneo, Rio de Janeiro, n. 6, p. 97-104, jan./fev. 1935. Disponível em: <http://memoria.bn.br/>.

Acesso em: 3 ago. 2015.

125 Ibid., p. 104.

126 Trata-se de livro inacabado, uma autobiografia que Graça Aranha iniciou, mas não teve tempo de concluir. Foi

lançada no mesmo ano em que o escritor faleceu.

127 LUZ, Fábio. Ligeiros comentários em torno da obra de Graça Aranha. Revista Brasileira: Síntese do Momento

Contemporâneo, Rio de Janeiro, n. 5, p. 210, dez. 1934. Disponível em: <http://memoria.bn.br/>. Acesso em:

Fabio Luz apresentava indignação e afirmava que Graça Aranha descrevia o preconceito dos seus familiares sem fazer nenhuma censura. Certamente, o clima de positividade da mestiçagem influenciou o crítico em suas análises, requerendo de uma obra escrita naquele contexto uma ponderação, ao explicitar preconceitos comuns na época em que Graça Aranha os situava – em sua infância ou adolescência, passada no final do século XIX e início do XX, período em que as questões aludidas certamente soavam naturalizadas. Eis a descrição a que o crítico se referia e que reproduziu em sua matéria:

Na família do meu avô paterno o preconceito contra os negros e os mestiços, era agressivo. Zelava-se a pureza da raça com furor. Esses Macieis Parentes e Aranhas não se cruzavam com os Índios. O cruzamento com negros e mulatos seria uma abominação. No interior da província, encontrei muitos desses meus parentes, na extrema indigência, de pés descalços, meros trabalhadores empregados nas fazendas, mas conservando a integral pureza do sangue branco. Eram geralmente louros, de olhos azuis, tipos que se reproduziram na maior parte dos filhos de meu pai e se mantiveram em dois irmãos meus. Minhas tias paternas, como animais de caça, farejavam e descobriam o mestiço por mais que este procurasse se disfarçar. Zeladoras infatigáveis do preconceito, se sabiam do projeto de casamento de algum parente, elas se punham a indagar de todo o pedigree da pretendida ou do pretendente e se descobriam a menor tintura de sangue negro ou bugre, não descansavam, enquanto não viam desfeito a malfadada aliança. Pobres tias, derradeiras representantes desse preconceito familiar a que talvez eu deva ser branco, morreram a tempo, antes da invasão da mestiçagem na velha família128.

São várias as situações que podem ser exemplificadas com base nos jornais e revistas da época. Para a finalidade desta seção, consideramos suficientes os exemplos citados, uma vez que eles coadunam-se com as afirmações de que esse período pode ser denominado como “ideologema da mestiçagem”129, dada a recorrência dessa categoria como principal recurso interpretativo dos processos identitários da América Latina.

5.4 “RAÇA”: PERSISTÊNCIAS DO CONCEITO EM DEFESA DA MESTIÇAGEM

Ainda que as explicações raciais para a compreensão da mestiçagem tenham perdido terreno, cabe ressaltar que, mesmo com a identificação de períodos em que a mestiçagem

128 ARANHA, Graça. O meu próprio romance. São Paulo: Editora Nacional, 1931. Disponível em:

<http://www.brasiliana.usp.br>. Acesso em: 10 out. 2015. p. 99-100.

129 Termo usado por Martinez-Echazabel para definir os debates sobre raça e mestiçagem na América Latina na

década de 1930. Segundo a autora, ela preferiu essa denominação em substituição ao termo ideologia, para enfatizar a recorrência da mestiçagem como uma das unidades básicas de análise na interpretação de processos de identidade na América Latina. MARTÍNEZ-ECHAZÁBAL, Lourdes. O culturalismo nos anos 30 no Brasil e na América Latina: deslocamento retórico ou mudança conceitual? In: MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo Ventura. Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996. p. 107-124. p. 108.

tornou-se o cerne dos debates tanto no Brasil quanto na Europa e no resto da América, a discussão em torno da categoria raça e os desdobramentos deste debate, segundo Lima130, não implicaram em uniformidade de pensamento, mas em uma agenda que delimitava as perguntas e as respostas dos que discutiam o tema. A autora lembra também que o debate sobre raça não pode ser dissociado da forma como era abordada a questão nacional no Brasil.

Essa associação indica que a questão nacional estava estreitamente relacionada com a mestiçagem. Conforme Santana131, no Brasil pós-1930, a questão da assimilação e do caldeamento racial tornou-se uma das preocupações centrais do governo getulista, que pretendeu definir o que se convencionou chamar “raça brasileira”. Ainda conforme essa autora, o nacionalismo brasileiro buscava a unificação por meio dos processos de homogeneização étnica e cultural, privilegiando a mestiçagem e a assimilação cultural, que criaria uma “raça brasileira”132.

O estudo realizado por Carlota Boto133 demonstra como, na Constituinte de 1933-34 e na Constituinte paulista de 1935, a questão racial continuava em cena, quando se discutiu temas como: alfabetização do país, formação de uma sociedade letrada, conteúdos a serem desenvolvidos na escola primária, ensino religioso, educação profissional e universidade. Ela observou que a categoria raça perpassava todas essas discussões políticas e concluiu que nossos constituintes pretendiam aprimorar a composição étnica do povo brasileiro, já que “Aprimorar a nação seria, pois, regenerar a raça”134.

Faz sentido a provocativa questão elaborada por Martinez-Echazábal135, ao afirmar que, mesmo com o culturalismo nos anos 1930, raça continuou sendo uma categoria em uso para explicar a mestiçagem e suas relações com a identidade nacional. Se considerarmos que denominações como cultura, educação e civilização são propostas nesse momento como substitutos para a categoria raça, compreenderemos a ambiguidade presente em vários escritos

130 LIMA, Nísia Trindade. Antropologia, raça e questão nacional: notas sobre as contribuições de Edgar Roquette-

Pinto e um possível diálogo com Franz Boas. In: HEIZER, Alda; VIDEIRA, Antonio Augusto Passos (Org.).

Ciência, civilização e república nos trópicos. Rio de Janeiro: Mauad; Faperj, 2010. p. 255-275. p. 259.

131 SANTANA, Nara Maria Carlos de. Brasil da década de 30: intelectuais, projeto nacional e a “raça brasileira”.

Revista da ABPN, Rio de Janeiro, v. 6, n. 14, p. 98, jul./out. 2014. Disponível em: <www.abpn.org.br/Revista/

index. php/edicoes/article/viewFile/492/334>. Acesso em: 18 set. 2015.

132 Ibid., p. 98.

133 BOTO, Carlota. O debate político no Brasil dos anos 30: raça e pedagogia na mística da nacionalidade. Revista

Teias, Rio de Janeiro, v. 11, n. 23, p. 63-82, set./dez. 2010. Disponível em: <http://www.periodicos.proped.pro.br/

index.php/revistateias/article/view/723>. Acesso em: 1 set. 2015. p. 63-64.

134 Ibid., p. 63.

135 MARTÍNEZ-ECHAZÁBAL, Lourdes. O culturalismo nos anos 30 no Brasil e na América Latina: deslocamento

retórico ou mudança conceitual? In: MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo Ventura. Raça, ciência e

desse período, em que seus autores referiram-se à cultura, porém com o mesmo significado que atribuíam anteriormente à categoria raça. Uma vez que a raça persiste, não se trata de outras noções; a mudança consiste na ênfase dada a alguns termos.

Para Véran136, raça pode ser compreendida pelo menos em três dimensões. A primeira é no domínio científico. Nesse campo, ocorre um processo de construção e desconstrução da ideia de raça baseada em princípios epistemológicos e em métodos próprios à validação científica. A segunda, na dimensão política, em que se reconhece ou não a raça enquanto categoria central de enunciação de povo e de sua governança. Finalmente, a terceira, diz respeito ao plano social, no qual raça é mobilizada ou não mediante mecanismos de regulação, classificação e hierarquização próprios a sistemas particulares.

Raça atrelada à dimensão política, tal como definido por Véran137, é entendida enquanto categoria de pensamento, principalmente no contexto de representações das identidades nacionais, no qual muitos intelectuais utilizaram o termo discursivamente e balizaram suas interpretações sobre a nação buscando, sobretudo, dar conta da heterogeneidade. É nesse segundo aspecto que concentramos nossa atenção, uma vez que nossos intelectuais, ao buscarem definir e redefinir a identidade nacional, persistiram no uso da categoria raça. Esta