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CAPÍTULO 3 – AGIR, LINGUAGEM E LINGUAGEM E DESENVOLVIMENTO

3.2. O agir de linguagem e o desenvolvimento numa abordagem interacionista

3.2.1. O agir e a linguagem

Nesta seção, apoiando-se, inicialmente, em Leontiev, abordaremos os conceitos de

agir, atividade, ação, colocados por Bronckart (2006) como constituintes do desenvolvimento do funcionamento psíquico humano, sendo, portanto, objetos de estudo do ISD, o que nos levará a tratar, em seguida, da visão de linguagem como agir com base em Humboldt (1985), Habermas (1987) e Coseriu (2001).

A fim de compreender a questão do agir, a teoria da atividade de Leontiev (1979) propõe, com base nas teses marxistas, que:

[...] os conhecimentos humanos e as obras dos seres humanos não são simples reflexos da organização preexistente do mundo (empirismo) nem resultados do funcionamento de capacidades mentais inatas (racionalismo); mas são, antes de mais nada, o produto de suas práticas” (BRONCKART, 2008, p. 65, grifo do autor).

Estas práticas, por sua vez, são sócio-historicamente determinadas, podendo considerar o agir socializado o motor do desenvolvimento humano, pois é, a partir dele, que se realiza o reencontro entre os indivíduos e o meio ambiente. De acordo com Bronckart (2008), Leontiev analisa uma práxis generalizada, distinguindo três níveis de apreensão: atividade, ação, operação.

O conceito de atividade se aplica a qualquer organização coletiva dos comportamentos orientada por uma finalidade ou que visa a um projeto determinado, podendo se aplicar tanto

à vida animal (ordem biológica) quanto à vida humana (ordem sócio-histórica). Em alguns mamíferos superiores, a atividade pode explorar instrumentos, sendo, nesse caso, mediada por instrumentos. No caso do homem, a mediação da linguagem se sobrepõe à mediação de instrumentos materiais (BRONCKART, 2008, p. 65), o que confere às organizações e às atividades humanas um dimensão particular, que justifica serem chamadas de sociais.

O conceito de ação, por sua vez, apreende o agir coletivo articulado a objetivos que os agentes nele envolvidos buscam atingir ou dos quais eles têm consciência, o que implica que a ação, concebida como tal, só pode ser atestável nos seres humanos, já que somente esses têm a capacidade de construir representações dos efeitos prováveis da atividade em que se encontram engajados.

Já o conceito de operação apreende o agir no nível dos processos particulares que se desenvolvem para que se realize uma ação, ou seja, está vinculado ao modo como uma ação é realizada, ou ainda, à solução técnica adotada para atingir um objetivo. Por exemplo, se um professor vai realizar uma ação de avaliar o aluno, ele pode escolher aplicar uma prova escrita ou oral, pedir para o aluno apresentar um seminário, ou participar de um debate etc., considerando os critérios contextuais diversos. Mencionando Leontiev, Bronckart (2008, p. 66) lembra que, embora a práxis seja considerada primeiro como coletiva e externa, cada indivíduo pode apreender as propriedades dessa práxis coletiva, podendo interiorizar essas propriedades, que se tornam, assim, ações e/ou operações mentais.

Bronckart (2008, p. 66) esclarece que esse quadro da teoria da atividade de Leontiev é importante por sua orientação teórica, porém, o autor adverte para o fato de que, apesar de ser declarado, nessa teoria, que a linguagem é um mediador da atividade, ele “tem o problema de não explorar de fato o papel que esse instrumento propriamente humano desempenha”.

Além disso, Bronckart (2008) esclarece que as condições de emprego e significado desses termos, por diferentes teorias da ação ou da atividade são múltiplos e heterogêneos, variando de acordo com as linhas teóricas, levando-o a propor uma terminologia semiótica ad

hoc a fim de conceituar os termos atividade, ação, agir, (e outros a eles relacionados), não com a pretensão de resolver esse problema de múltiplos sentidos dados a esses termos, mas apenas para direcionar as pesquisas que partem do arcabouço teórico do ISD, a fim de tornar as afirmações inteligíveis. Veremos a definição desses termos no próximo capítulo, em que trataremos da metodologia de análise de textos.

Buscando desenvolver os estudos da teoria da atividade de Leontiev (1979), Bronckart (2008) parte da visão de linguagem como agir fundamentando-se, sobretudo, em Humbold (1985), Habermas (1987) e Coseriu (2001), além de Voloshinov (1977) e Ricoeur (1983, 1984, 1985).

De acordo com Bronckart (2008, p. 71), os fundamentos dessa nova visão são encontrados na obra de Humbold (1985), sendo a origem da mudança radical do modo de conceber as relações entre linguagem como capacidade da espécie humana e as múltiplas línguas naturais. Nessa nova visão, trata-se de considerar que a linguagem só existe nas línguas naturais, contrária, pois, à visão anterior que analisava a linguagem universal primeiro e só depois abordava as línguas naturais que realizariam socialmente tal capacidade. Os autores defensores dessa última contestada visão buscavam atribuir à linguagem um fundamento que estaria fora das práticas sociais, defendendo a ideia de que há estruturas linguageiras universais que a determinariam, sendo a linguagem considerada como um mecanismo secundário. Consideravam que a linguagem refletia o mundo ou o pensamento. No plano metodológico, essa visão utilizava procedimentos ascendentes. De um lado, primeiro, estudavam os processos de pensamento, e depois os processos linguageiros que os traduziriam. De outro, em relação à análise da linguagem, primeiro analisavam as unidades mínimas, ou signos; depois, sua organização em estrutura sintática e, por último, eventualmente, a organização dessas estruturas no nível textual.

Na nova perspectiva, a linguagem só existe nas línguas naturais, e essas, por sua vez, só existem nas práticas verbais, em um agir, que é o discurso, dirigido a alguém. A atividade de linguagem é produtora de objetos de sentido e, portanto, constitutiva das unidades representativas do pensamento humano. Na medida em que ela é atividade social, o pensamento ao qual ela dá lugar é, também, necessariamente, semiótico e social.

Habermas (1987) também tem essa visão de linguagem como atividade e salienta sua dimensão comunicativa, já que essa atividade é um instrumento por meio do qual os indivíduos constroem um acordo sobre o mundo em que vivem e, em particular, sobre os contextos do agir e sobre as propriedades das atividades coletivas e de seu desenvolvimento. É a partir da atividade de linguagem que se constroem os mundos representados (sistemas de conhecimento), sendo que toda atividade se realiza levando-se em conta as representações coletivas do meio que se organiza nesses mundos que são o mundo objetivo, mundo social e mundo subjetivo.

O mundo objetivo é constituído pelos conhecimentos que temos sobre o meio físico, tal como são construídos na sócio-história humana. Por exemplo, se um casal quer fazer uma festa de casamento para duzentas pessoas, sabemos que um apartamento pequeno com três cômodos não será um lugar adequado para essa festa. Já possuímos um conhecimento objetivo sobre um meio físico que poderia ser adequado ou inadequado para essa festa. Além de se desenvolver em um meio físico, toda atividade se desenvolve no quadro de regras, convenções e sistemas de valores construídos por um grupo particular que define como se devem organizar as tarefas e como os membros do grupo podem cooperar para realizá-la. Por exemplo, numa cerimônia de casamento em uma igreja católica tradicional, há regras a serem seguidas: o padre deverá celebrar o casamento de acordo com as regras dessa igreja. É o conjunto desses conhecimentos sociais que constituem o mundo social. Finalmente, os indivíduos trazem a sua própria visão de si e também a visão que os outros têm de si. Por exemplo, em um casamento, a noiva se vê e pensa que os outros a veem, ou não, como uma noiva bonita, bem maquiada, com um vestido bonito, com um vestido muito decotado, com um vestido muito curto. São esses conhecimentos sobre si mesmo que constituem o mundo subjetivo.

Esses três mundos se constituem como sistemas de parâmetros, em que se exibem avaliações e/ou controle coletivo em relação ao agir humano. Por exemplo, um aluno pode avaliar se o seu colega da mesma classe fala de uma forma grosseira e sem educação com seu professor, pois existem regras sociais para isso. Esse aluno avaliado pode, também, a partir das avaliações dos outros colegas de classe, se reavaliar e repensar suas ações, mantendo-as, alterando-as ou abandonando-as. Esses mundos não são “tipos” de agir, mas identificam os ângulos sob os quais qualquer agir pode ser avaliado.

Assim, qualquer forma de agir se realiza em relação a sistemas de determinações diversas – as nossas, as do nosso interlocutor, a da sociedade etc. – que podem estar em conflito uma com as outras ao decidirmos como agir em determinada situação. Por exemplo, um professor pode considerar correto faltar ao trabalho por estar doente. Mas, se ele não avisar com antecedência, ele sabe que o seu coordenador terá transtornos e que os alunos poderão reclamar. São os conhecimentos dos três mundos que se confrontam num caso como esse, o que fará com que o trabalhador tome uma decisão oriunda de uma escolha conflituosa. Além dos conhecimentos sobre esses três mundos representados, há também o conhecimento do mundo vivido que são um conjunto de experiências que dota o indivíduo de um saber de fundo sobre o contexto de seu agir. Esse saber é constituído por elementos

heterogêneos, sem organização lógica, implícitos e inconscientes, não estando sujeito à contestação nem à justificação. Esse mundo vivido fornece uma forma de pré-compreensão do contexto do agir, constituindo-se como um reservatório de convicções e de hipóteses (sempre implícitas) sobre o resultado do agir.

Desse modo, nessa concepção de linguagem, o agir envolve conhecimentos explícitos e implícitos, conflitos entre representações do próprio agente e de diferentes agentes, confrontação entre elementos do mundo vivido e dos mundos representados, a partir dos quais se desenvolvem as avaliações sociais.

O agir linguageiro, nessa abordagem, é concebido como o instrumento por meio do qual se manifestam as avaliações sociais sobre as formas de agir praxiológico (referente à atividade prática, uso), sendo também um organizador das representações que os atores constroem sobre sua situação de agir e, portanto, um regulador de suas intervenções efetivas. É no processo de avaliação pelo indivíduo com base em critérios coletivos que se pode atribuir aos outros intenções, razões ou motivos para o agir. Assim, a avaliação pode tornar os “outros” agentes responsáveis pelo seu agir, o que lhes confere o estatuto de ator. Mas, na avaliação pode-se também construir outras figuras interpretativas de agir, não atribuindo ao indivíduo responsabilidade. Da mesma forma, os indivíduos que avaliam também são avaliados pelos mesmos critérios, tornando-se capazes de avaliar a si mesmos, apropriando das representações sobre sua capacidade de ação, dos papéis sociais e de uma imagem sobre si, construindo representações de si mesmos como agentes responsáveis pela sua ação (BRONCKART, 1999, 2006). Por exemplo, ao comentar sobre o desempenho de um aluno de mestrado, um orientador pode dizer que ele faz seus deveres com cuidado, interesse, demonstrando responsabilidade pelas suas obrigações porque compreende a importância de um trabalho acadêmico bem escrito. Desse modo, esse aluno é representado como um ator. O mesmo orientador pode dizer que um outro aluno não mostra interesse ao realizar os seus trabalhos acadêmicos, não cumpre os prazos pedidos e não consegue compreender nenhum dos conceitos necessários para o desenvolvimento de seu trabalho, o que demonstra que esse aluno não mostra capacidade e motivação para desempenhar o seu papel como estudante de mestrado. Nesse caso, esse aluno é reconfigurado como mero agente, pois não demonstra responsabilidade pelas suas obrigações acadêmicas.

Percebendo essas avaliações e outras anteriores, esse aluno pode repensar, ou não, o seu agir já visualizando outras avaliações. Assim, notamos que em qualquer situação de nossas vidas, numa sala de aula, ou em qualquer outro trabalho, temos as condutas efetivas

dos indivíduos, assim como as avaliações construídas sobre elas pelo próprio indivíduo ou pelos seus pares, seus superiores ou por um pesquisador, baseadas nos três mundos representados e no mundo vivido. Para Bronckart (1996, p. 70), as intervenções educativas são uma das formas explícitas e admitidas de avaliação social através dos quais as ações humanas são geradas. Essas avaliações almejam alterar os limites de ação do aprendiz (ou do indivíduo) e as representações que se tem de si. Por esse motivo, elas são consideradas um dos fatores principais de desenvolvimento. Como vimos no capítulo anterior, podemos dar como exemplo de intervenção o sistema de avaliação da Capes, inserido num sistema educacional, que é uma forma explícita de avaliação do agir do professor. Ao avaliar o agir do professor, esse sistema de avaliação acaba prescrevendo o agir docente, indicando que ações o docente tem que realizar. Nesse sentido, a avaliação da Capes contribui com o desenvolvimento do docente, já que é uma forma de indicar as ações a serem realizadas. Por exemplo, um dos itens avaliados que conta na avaliação trienal é a produção de artigo, produção essa que contribui com o desenvolvimento de capacidades do docente.

Avançando na definição de linguagem, Bronckart (2008, p. 72) também retoma Coseriu (2001), afirmando que é nesse autor que se encontra a mais importante visão de linguagem humboldtiana, como veremos a seguir.

Para esse autor, a linguagem se manifesta concretamente como uma atividade humana particular facilmente identificável, que é a atividade de falar, que é sempre falar a um outro, o que significa que a essência da linguagem se mostra no diálogo, estando sempre relacionada ao que os interlocutores têm em comum. Essa atividade só se realiza a partir de uma língua historicamente determinada que os locutores conhecem. Ela é criativa, isto é, produtora de novidades, o que explica a dimensão fundamental que é a transformação permanente das línguas e o fato de que a atividade de linguagem seja livre, no sentido filosófico do termo. Isso significa que a linguagem pode se dirigir a qualquer objeto e que seu objeto seja infinito. Essa atividade livre de linguagem é significante, o que mostra que ela não apenas produz signos materiais para significados já dados, mas, ao mesmo tempo, é criadora de conteúdos e expressões. Esse fato, segundo Bronckart (2008, p. 73), mostra o papel desempenhado pela linguagem na constituição da atividade de pensamento e no desenvolvimento de qualquer processo de conhecimento.

Retomando a dimensão comunicativo-social da linguagem, Coseriu (2001) considera que a linguagem é sempre falar a um outro e, portanto, essa atividade significante é sempre marcada pela alteridade, que pode ser compreendida como o princípio, derivado da filosofia, a

partir do qual se define o ser em uma relação que é fundada sobre a diferença; “o eu não pode tomar consciência do seu ser-eu a não ser porque existe um não-eu que é outro, que é diferente”. Essa noção está ligada ao fato de que não há consciência de si sem consciência da existência do outro, pois é na diferença entre si e o outro que se constitui o sujeito (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2008, p. 34, 266).

De acordo com Bronckart (2008, p. 74-75), embora a linguagem seja um fato social, não se pode considerar a língua que a manifesta como algo que se impõe aos sujeitos falantes, já que ela é expressão da intersubjetividade no sentido de solidariedade com um tradição histórica e no sentido de uma solidariedade com uma comunidade falante, que é histórica.

Bronckart (2008, p. 75-76) também considera os fundamentos metodológicos, estabelecidos por Bakthin [VOLOSHINOV, 1929] (1997), no quadro de uma visão da filosofia da linguagem, cujo objetivo principal é o de esclarecer o estatuto e as condições de desenvolvimento da ideologia, ou seja, dos mundos dos conhecimentos especificamente humanos. Como já abordado no início deste capítulo, os signos-ideias são, necessariamente, resultados dos discursos produzidos no quadro de interações sociais, apresentando, portanto, um caráter dialógico, pois eles situam em um espaço social e se dirige a alguém. Assim, a palavra tem duas faces: ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém quanto pelo fato de que é dirigida a alguém, sendo, nesse sentido, o produto da interação do locutor e do ouvinte. Assim sendo, qualquer pensamento (discurso interno), já que é o produto da interiorização desses discursos externos, também apresenta, necessariamente, um caráter social, semiótico e dialógico. Todo discurso é fundamentalmente dialógico, pois ele sempre responde aos outros e antecipa sua reação (atitude responsiva-ativa), fazendo eco a outros discursos. “Todo enunciado remete a outros enunciados já proferidos, retoma formas, palavras e significações, no quadro de uma intertextualidade global” (BRONCKART, 2008, p. 78).