• Nenhum resultado encontrado

Os elementos do nível semântico

CAPÍTULO 4 – O QUADRO DE ANÁLISE DE TEXTOS DO ISD

4.5. Os elementos do nível semântico

Apresentamos, até o momento, os procedimentos referentes à análise da situação de produção do texto e dos níveis organizacional e enunciativo. A seguir, para a compreensão do nível semântico, esclarecemos, primeiramente, o significado de alguns termos-chave que têm

37 Essa autora, na verdade, desenvolve os estudos iniciados por Benveniste (1989, 2005) sobre a questão da subjetividade na linguagem (MAINGUENEAU; CHARAUDEAU, 2008).

sido utilizados para a análise desse nível (BRONCKART; MACHADO, 2004; BRONCKART, 2006), incluindo os papéis temáticos desempenhados pelos actantes (ILARI, 2006). Em segundo lugar, trataremos dos verbos ou sintagmas verbais que se referem ao trabalho do professor com base em Mazzillo (2006) e Barricelli (2007). Em terceiro lugar, abordaremos as figuras de ação detectadas por Bulea e Fristalon (2004) e Bulea (2007).

Em relação aos termos-chave utilizados para direcionar as nossas pesquisas, Bronckart (2008) advoga que os termos atividade, ação e agir são utilizados de forma bastante aleatória por variados autores, que não os define de fato, como mencionamos no Capítulo 1. Em vista disso, o autor esclarece que “decidimos buscar definições mais estáveis, não com o objetivo de impô-las, mas para fazer com que nossas afirmações sejam inteligíveis” (BRONCKART, 2008, p. 212). Assim, a fim de direcionar as pesquisas preocupadas em identificar o agir (re)configurado nos textos, Bronckart e Machado (2004), Machado e Bronckart (2005) e Bronckart (2004, 2006, 2008) adotam uma semântica (ou

semiologia) do agir construindo algumas categorias, como seguem.

O termo agir é utilizado para se referir ao “dado” das pesquisas, desse modo, designa genericamente qualquer forma de intervenção orientada no mundo, de um ou de vários seres humanos. Em determinados contextos, esse agir pode ser um trabalho, que implica diversos tipos de profissionais e cuja estrutura pode ser decomposto em tarefas, que é a atividade prescrita. Esse agir, de modo geral, se desenvolve temporalmente em um curso do agir, no qual podemos distinguir as cadeias de processos, que podem ser atos e/ou gestos.

Já em relação ao termo ação e atividade atribui-se um estatuto teórico ou interpretativo. Desse modo, atividade designa uma leitura do agir que envolve dimensões motivacionais e intencionais mobilizadas no nível coletivo. Por exemplo, Os pesquisadores resolveram apresentar um trabalho no congresso porque consideram que isso é importante para a divulgação de suas pesquisas. Já a ação designa uma leitura do agir que envolve essas mesmas dimensões mobilizadas no nível das pessoas em particular. Por exemplo, O professor

Marcos optou por ensinar o gênero seminário porque acredita que esse instrumento é

eficiente para o desenvolvimento de diversas capacidades de linguagem de seus alunos. Em relação à dimensão motivacional, distinguem-se os determinantes externos, de origem coletiva, que podem ser de natureza material ou da ordem das representações sociais, como no exemplo “A Capes determina que os pesquisadores produzam artigos”, e os motivos, que são as razões de agir interiorizadas por uma pessoa em particular, como, por exemplo, em

“ Li o livro Como se faz uma tese porque acredito que ele ajudará na produção da dissertação de mestrado que estou escrevendo”.

Já no que se refere às dimensões intencionais, distinguem-se as finalidades de origem coletiva e socialmente validadas, como em “Os professores devem preencher toda a papelada

para entregar para a universidade” e as intenções, que são os fins do agir interiorizados por uma pessoa em particular: “Vou ler dois artigos sobre aquele assunto buscando compreender melhor a temática em discussão”.

Outro aspecto considerado na análise do agir refere-se aos recursos ou fontes do agir, distinguindo-se os instrumentos, que designa tanto os artefatos materiais ou simbólicos e os modelos para agir disponíveis no ambiente social: “Preciso de um texto instigante para a próxima aula”, quanto às capacidades, ou seja, os recursos mentais ou comportamentais que são atribuídos a uma pessoa em particular: “Aquela pesquisadora consegue fazer uma excelente arguição em defesas de tese”.

Em relação ao seres humanos que intervém no agir, o termo actante é utilizado para referir-se a qualquer pessoa implicada no agir. No plano interpretativo, utilizamos o termo

ator, quando as configurações textuais constroem o actante como sendo a fonte de um processo, dotando-o de capacidades, motivos e intenções, como em “O professor decidiu alterar o seu planejamento de aula, buscando atingir os seus novos objetivos expostos na ementa”; e o termo agente, quando nenhuma dessas propriedades é atribuída por essas configurações textuais ao agente como em “A doutoranda precisa de ajuda de sua orientadora”.

Os actantes, ainda, podem desempenhar diferentes papéis temáticos (ILARI, 2006) no texto, que são de:

 agente: ser animado responsável por um processo dinâmico, ou ainda, o indivíduo que tem a iniciativa da ação, que tem controle sobre a realização da ação, como é o caso de o pesquisador no exemplo O pesquisador produziu um artigo.

 alvo: entidade que sofre um processo dinâmico, ou ainda, o indivíduo ou objeto diretamente afetado pela ação como O resumo do congresso no exemplo O resumo

do congresso deverá ser revisto pela pesquisadora.

 instrumento: objeto de que o agente se serve para praticar a ação, como o projetor em O professor poderá apresentar a sua aula com um projetor.

 beneficiário/destinatário: o destinatário animado de um processo dinâmico como os

alunos em O professor fez o seu planejamento para os alunos.

 experienciador: a entidade a quem é atribuída uma determinada sensação ou um determinado estado, como o caso de O professor em O professor sofre quando o

aluno não consegue aprender.

Nos textos produzidos sobre o trabalho, é possível a identificação desses papéis temáticos desempenhados pelos actantes em um texto, além dos elementos que constituem o agir (intenção, finalidade, instrumento...). Finalizada a apresentação dos termos-chave da semântica do agir, passaremos para a questão da análise dos verbos que se referem ao trabalho docente.

Mazzillo (2006) analisa diários de aprendizagem, escritos por pesquisadoras- professoras de línguas sobre o trabalho de um professor de línguas de cujas aulas elas participavam como alunas, revelando diferentes formas ou maneiras de agir das professoras, identificando as seguintes figuras de agir: agir linguageiro, agir com instrumento e agir mental.

 Agir com instrumentos: identificado nos predicados que representam um agir verbal ou não verbal do professor com o uso de instrumentos. Há o uso de verbos que implica a ideia de instrumento como projetar, colar, escrever e o uso de verbos que implicam a ideia de instrumento simbólico como ler, traduzir, separar. Temos como exemplos, respectivamente, “Colava no quadro uma foto” e “Traduziu a

leitura” (MAZZILLO, p. 113).

 Agir mental/cognitivo: identificados nos predicados que indicam uma atividade mental ou capacidade das professoras. Essa figura refere-se a elementos do agir tematizados nos diários que constitui as professoras como protagonistas, tornando- as agentes responsáveis pelo agir ao lhe atribuir motivos, intenções e capacidades para agir. Temos como exemplo de atividade mental “A professora se

surpreendeu” (MAZZILLO, p. 115) e como exemplo de atribuição de capacidade “A professora não cria, não oferece nenhuma atividade interessante” (MAZZILLO, p. 115).

 Agir linguageiro: identificado nos predicados que apresentam verbos de dizer. Essa figura do agir foi distribuída em três grupos: a) agir que implica uma ação imediata dos alunos. Ex.: “Solicitou a participação”; b) agir que não implica uma resposta

imediata. Ex.: Iniciou a aula dando uma explicação; c) agir em relação ao agir dos alunos. Ex.: “Esclarecia dúvidas” (MAZZILLO, p. 113). Esse tipo de agir é sempre interacional.

Segundo a autora, as diferentes figuras do agir construídas nos e pelos textos dos diários de aprendizagem reconfiguram o trabalho do professor na relação com o outro, acentuando o caráter interacional do trabalho; na relação com os artefatos, revelando o caráter instrumental do trabalho do professor; e na relação com o interior, mostrando o caráter cognitivo do seu trabalho, que ainda envolve uma atividade mental, capacidades, motivos e intenções.

Já Barricelli (2007), em sua pesquisa, ao analisar textos sobre a Educação Infantil, também identifica diferentes elementos, entre eles as figuras de agir. A seguir, focaremos apenas duas figuras de agir identificadas pela autora que podemos utilizar em nossas análises:

 Agir afetivo: implica em um agir emocional; é marcado pelos verbos como gostar,

apreciar etc.

 Agir corporal: implica em um agir físico; é marcado por verbos como correr,

andar etc., relacionado, portanto, a um movimento corporal.

Com os resultados de todas essas análises, detectamos representações construídas sobre o trabalho do professor e sobre o seu papel nos e pelos textos analisados. Finalizada a apresentação sobre as figuras de agir, a seguir, trataremos das figuras de ação propostas por Bulea e Fristalon (2004) e Bulea (2007).

Bulea e Fristalon (2004), do grupo LAF, em sua pesquisa, analisam entrevistas realizadas com enfermeiras sobre os cuidados adotados para se fazer curativos em pacientes. Como resultado, as autoras desenvolvem um modelo que visa a identificar, a partir das análises, o agir representado nos e pelos textos, denominado pelas autoras de figuras de ação. Para que possamos compreender com se dá a relação entre as (re)configurações sobre o agir e os tipos de discurso, Bulea (2007) explica que os tipos de discurso participam de modo constitutivo e autônomo no processo de interpretação do agir pelas pessoas porque elas mediatizam, no texto, a relação que o actante produtor mantém com o conteúdo mobilizado. Além disso, os tipos de discursos são configurações que podem, na combinação com o conteúdo temático, gerar recortes interpretativos sobre o agir (MACHADO; BRONCKART, 2009, p. 68).

Bulea (2007) apresenta cinco tipos dessas figuras de ação: ocorrência, evento passado, experiência e canônica e, mais recentemente, a ação definição. A seguir, apresentaremos as características de cada um dessas figuras de ação.

A ação ocorrência desenvolve-se na contemporaneidade da situação de ação da linguagem, contextualizada na continuidade espaço-temporal da situação de produção do texto. Apresenta características do discurso interativo: dêiticos de pessoas que remetem a um ou mais dos participantes da interação, tempo presente, futuro do presente ou pretérito imperfeito. O conteúdo temático é organizado em referência aos parâmetros físicos da situação de linguagem em curso, ao eixo temporal de referência e à situação de interação. Os organizadores lógico-temporais (então, portanto, porque etc.) são fortemente presentes, mas ligados à mudança do eixo temporal de referência. Os encadeamentos lógicos apresentam estruturas justificativas, explicativas e argumentativas. A seguir, temos exemplos extraídos de uma entrevista realizada com um professor universitário em 2006.38

P.: eu tenho como técnica, veja, até como método, [....] refazer a preparação das aulas. Então, isso significa que eu jogo fora todas as minhas aulas no final.

A ação evento passado constitui uma história vivida que serve para explicitar o agir sobre o qual se fala ou as possibilidades de agir. O grau de contextualização dessa figura de ação também é forte, com unidades dêiticas que se referem à situação de produção do texto. O conteúdo não se refere à situação de produção de texto, mas a uma história contada. O modo de organização do discurso corresponde ao relato interativo, sendo o pretérito perfeito e imperfeito os tempos verbais característicos dessa figura de ação, como no exemplo a seguir.

P.: Nos dois primeiros anos, a gente tinha um contato mais direto. Toda semana, praticamente toda semana a gente tinha contato, eu fazia disciplina dele (Entrevista, 2006)

Por sua vez, a ação experiência caracteriza-se como uma forma de cristalização de experiência vivida por um actante ou por outro profissional. Esse registro faz referência às dimensões pessoais, implicadas, internas e próprias da prática do profissional. Ele é um arquétipo de variadas situações, apresentando o agir de uma forma relativamente estável. O agir refere-se à situação abstrata, descontextualizada, mas que pode ser sempre recontextualizada. Em relação à organização discursiva, o agir experiência é organizado em

discurso interativo. O eixo-temporal que o caracteriza não é o da situação de interação, como no agir ocorrência, mas o eixo temporal é remetido a um agir genérico, não limitado. Desse modo, é sempre marcado por advérbios que indicam frequência e pelo presente genérico.

P.: normalmente eu gosto dessa situação, né? Mas me causa um problema com a sala, principalmente também porque tem gente que acompanha esses desdobramentos e tem gente que não (Entrevista, 2006)

Já a ação canônica (BULEA; FRISTALON, 2004; BRONCKART; BULEA; FRISTALON, 2005; BULEA, 2006) constitui um modelo de regras, prescrições, construídas por alguém externo ao actante, não havendo marcas que remetem à situação de produção de texto. Para Bulea e Fristalon (2004), a organização interna dessa figura de ação corresponde tanto ao discurso interativo quanto ao discurso teórico, ambos da ordem do expor, conjuntos ao mundo ordinário. Portanto, o grau de implicação ou autonomia do agente pode variar. Em relação à agentividade, constata-se um fenômeno que as autoras denominaram “indiferença pronominal”, que se refere ao fato de que o agente pode ser individual e se designar como tal, utilizando o pronome “eu”; individual mais genérico, com o uso do “você” genérico; ou coletivo, utilizando o “a gente”. O tempo verbal mais frequente é o presente genérico, apresentando modalizações deônticas, como no exemplo a seguir.

P.: a gente trabalha no primeiro semestre bases e depois as estruturas lógicas do conhecimento e ética. Então, são questões muito próximas, importantes do ponto de vista psicológico, mas que é necessário que você tenha um conhecimento fundo de filosofia para acompanhar isso (Entrevista, 2006)

Finalmente, a ação definição constitui-se como uma tentativa de se definir o agir, não sendo tematizados nem os actantes nem os atos ou os gestos constitutivos do agir, nem sua cronologia. Em relação ao nível linguístico, essa figura aparece em segmentos de discurso teórico, havendo predominância de verbos no presente genérico. As orações são construídas praticamente com uma só estrutura: É + sintagma nominal (C’est + syntagme nominal), não

trazendo pronomes nem verbos que denotem processos, como podemos observar no exemplo de Bulea (2006).

V.: bien ça dépend aussi des horaires c’est ce qu‟on disait le matin à 8h c’est vrai que c’est important parce que c’est là / c’est le premier contact de la

journée en fait donc heu c’est une approche pour // comment s‟est passée

la nuit pour [...].39

Observamos que a pesquisa de Bulea e Fristalon (2004) identificou o agir representado nas entrevistas fundamentando-se em várias características linguísticas. Segundo as autoras, não é a manifestação de apenas uma característica singular que caracteriza uma figura de ação, mas é a partir da combinação dos elementos que ela se constitui.

De acordo com Bueno (2007), as diferenças que se percebem entre as figuras identificadas por Mazzillo (2006) - e acrescentamos as de Barricelli (2008) - com as identificadas por Bulea e Fristalon (2004), Bulea (2006, 2007) e retomadas por Abreu- Tardelli (2006) e Lousada (2006), estão no nível da unidade de análise e no tipo de explicitação dos tipos de agir atribuído a um actante.

Em Mazzillo (2006) e Barricelli (2008), a unidade é a oração considerada em seu aspecto sintático-semântico, referindo-se aos modos de agir de qualquer actante mencionado na oração pelo enunciador, sendo analisados pelo pesquisador os predicados verbais. Já em Bulea e Fristalon (2004) a unidade é um segmento discursivo composto por várias orações ou períodos, sendo possível perceber como o agir foi organizado discursivamente pelo enunciador. Nesses casos, as figuras de ação referem-se aos modos de dizer

(interpretativamente) o agir pelo enunciador, sendo analisados segmentos discursivos.

Assim como Bueno (2007), partimos do princípio de que a junção dos tipos de figuras interpretativas de agir, referentes aos modos de agir e aos modos de dizer o agir, possam trazer contribuições para a identificação do trabalho representado do professor, no nosso caso, de pós-graduação.

Neste capítulo, apresentamos o quadro de análise de textos do ISD que temos utilizados para interpretar as representações do agir construídas nos e pelos textos referentes ao trabalho docente, quadro esse que utilizaremos para a análise de nossos dados. No próximo capítulo, traremos o capítulo de procedimentos metodológicos em que descrevemos a nossa pesquisa realizada com a professora, participante desta pesquisa.

39 V.: bem isso depende também dos horários é isso que a gente dizia de manhã às 8h é verdade que é

importante porque é / é o primeiro contato do dia na verdade então olha... é um modo de ver para // como se