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O real da atividade para a Clínica da Atividade

CAPÍTULO 1 – CONCEPÇÕES DE TRABALHO E DE TRABALHO DOCENTE

1.2. O real da atividade para a Clínica da Atividade

Nesta seção, centrar-nos-emos na definição de trabalho, enfocando o conceito de real da atividade, desenvolvido pela equipe da Clínica da Atividade do Conservatoire des Arts et

Métiers (CNAM)3 de Paris, pois utilizaremos esse conceito nesta tese. Antes de abordar esse conceito, tentaremos compreender qual é o foco de estudo dessa Clínica da Atividade.

2 Disponível em: <http://vsites.unb.br/ip/labergo/sitenovo/mariocesar/artigos2/Atividade.PDF>. Acesso em: 23 dez. 2010.

Segundo Lima (2010), a Clínica da Atividade é uma disciplina em processo acelerado de construção, sendo consideráveis seus avanços no decorrer dos últimos anos. Ela é uma corrente da Psicologia Clínica do Trabalho que aborda o problema da subjetividade no trabalho, situando-se na intersecção da tradição da Ergonomia francófona (de língua francesa) com a tradição da Psicopatologia do Trabalho. Segundo Clot (2001, p. 4, grifo do autor):

São as relações entre atividade e subjetividade que estão no centro da análise [da Clínica da Atividade]. O trabalho é visto não somente como trabalho psíquico, mas como uma atividade concreta e irredutível. Melhor dizendo, a atividade é, para nós, o continente escondido da subjetividade no trabalho. É precisamente neste campo que se observa, do modo mais claro possível, o que convém nomear aqui de desrealização das organizações oficiais do trabalho contemporâneo. Este é o ponto de partida de toda Clínica da Atividade.

Segundo o autor, as condições reais de exercício do trabalho efetivo não são preocupação dos diretores/gerentes dos postos de trabalho, mas, sim, as questões referentes à gestão administrativa. Esse real é permeado de armadilhas, vivências de impotência, ressentimentos e melancolia, ou, ao contrário, euforia profissional, formando um quadro clínico confuso. Para Clot (2001), várias responsabilidades são exigidas dos trabalhadores para agirem nos meios profissionais, sendo requerido que o trabalhador se dedique cada vez mais ao trabalho. Porém, a organização de trabalho não fornece os recursos necessários para essa dedicação, privando o trabalhador dos meios para exercer as responsabilidades que acaba tendo de assumir e impedindo-o de realizar o seu trabalho, o que pode levá-lo ao sofrimento.

É preocupação da Clínica da Atividade justamente esse sofrimento, que é considerado, para essa corrente, uma atividade contrariada, um desenvolvimento impedido, visto como uma amputação do poder de agir. Segundo Clot (2001), as organizações de trabalho de diversos setores de serviço e da indústria costumam “diminuir” aqueles que trabalham, ficando estes encolhidos pela atividade realizada. Nesse sentido, a atividade realizada é outra coisa totalmente diferente da tarefa oficial, como observam os ergonomistas, já que a simples execução da tarefa prescrita não permitiria atender os objetivos fixados. Avançando nas descobertas da Ergonomia, a Clínica da Atividade inclui na noção de atividade de trabalho o conceito de conflitos do real da atividade:

A atividade não é somente aquilo que se faz. O real da atividade é também o que não se faz, aquilo que não se pode fazer, o que se tenta fazer sem conseguir – os fracassos – aquilo que se desejaria ou poderia fazer, aquilo que não se faz mais, aquilo que se pensa ou sonha poder fazer em outro

momento. [...] A atividade possui então um volume que transborda a atividade realizada. (CLOT, 2001, p. 6)

Nesse sentido, as atividades suspensas, contrariadas ou impedidas, e mesmo as contra- atividades são consideradas na análise da Clínica da Atividade, assim como as atividades improvisadas ou antecipadas. É a partir da compreensão do real de atividade que se pode extrair os conflitos de uma situação de trabalho. Assim, o conceito de atividade deve incorporar o possível e o impossível, visando preservar as possibilidades de compreender o desenvolvimento e o sofrimento (CLOT, 2001). É a partir dessa noção de real da atividade que a Clínica da Atividade concebe o trabalho.

Clot (2006), ao estudar a unidade de análise do trabalho, o define como uma atividade triplamente dirigida, pois ela se dirige ao comportamento do sujeito trabalhador, ao objeto da tarefa (limpar a casa; dirigir um táxi etc.), e aos outros (chefe, clientes, colegas de trabalho etc.). O sujeito, para realizar o trabalho, poderá utilizar artefatos materiais (vassoura, pá, panela etc.) e/ou simbólicos (instruções, mapas, placas de trânsito etc.). Esses artefatos poderão ser transformados em instrumentos de desenvolvimento das atividades do sujeito se forem apropriados pelo trabalhador, ou seja, se o trabalhador passar a vê-los como úteis para a realização da sua atividade; caso contrário continuarão como simples artefatos, sem contribuir para o desenvolvimento do sujeito.

Com o esquema da Figura 1.1 podemos ilustrar qualquer atividade de trabalho, com base em Clot (2006).

Sujeito

Artefatos (materiais ou simbólicos)

Objeto/meio Outros FIGURA 1.1. Os elementos do trabalho.

Fonte: Machado (2008).

A relação entre os elementos do trabalho (sujeito, objeto e outros) é conflituosa, pois, no dizer de Clot (2006, p. 99), a “atividade dirigida é uma arena, ou melhor, o teatro de uma luta”, já que o trabalhador luta contra as contradições da atividade e sua prescrição, contra os outros, contra os artefatos etc. Podemos imaginar uma situação vivida pelos professores da escola pública do estado de São Paulo, que têm trabalhado, normalmente, com material

didático fornecido para cada aluno pela escola. Porém, no início de 2008, as escolas receberam da Secretaria da Educação um material – chamado de “jornalzinho” – somente para o professor,4 sendo que os alunos não receberam. Imaginemos a situação conflituosa pela qual passou o professor. Considerando que os alunos não receberam o material e a escola não disponibiliza cópias para os alunos, nem se pode pedir dinheiro aos alunos para cópias, pois “o ensino público é gratuito”, o que esse professor poderia fazer? Utilizar o tempo que poderia ser destinado à discussão para passar os textos na lousa? Não trabalhar com o material, mesmo sendo essa a prescrição da diretoria de ensino, e utilizar o material didático costumeiro, já que assim cada aluno teria acesso? Notamos aí um conflito, pois, de qualquer forma, seguindo ou não a prescrição, ele poderia ter problema, com o ensino-aprendizagem dos alunos e/ou com a diretoria. Nesse sentido, esse professor seria impedido de fazer o seu trabalho da forma como gostaria ou da forma como já tinha planejando. A partir do conceito de trabalho efetivamente realizado, não vemos esse conflito. Por isso, Clot (2006) propõe o conceito de real da atividade, abordado anteriormente, para aquilo que não é observável, assumindo que o trabalho real envolve também o trabalho pensado, impedido, desejado, possível. Desse modo, retomando a Ergonomia da Atividade e a Clínica da Atividade, teremos a/o:

1. Atividade prescrita: a tarefa; aquilo que é prescrito pelas organizações de trabalho e que deve ser feito.

2. Atividade realizada: é a atividade efetivamente realizada no trabalho.

3. Real da atividade: engloba o que não se faz, o que tentamos fazer sem conseguir, o que desejamos fazer.

Assim, observamos que o real da atividade ultrapassa não somente a tarefa prescrita mas, também, a própria atividade realizada. Esse “real da atividade, ou seja, aquilo que se revela possível, impossível ou inesperado no contato com as realidades, não faz parte das coisas que podemos observar diretamente” (CLOT, 2006, p. 133). Para aceder a esse real da atividade, a Clínica da Atividade parte de uma abordagem dialógica, de Bakhtin e Voloshinov, e de desenvolvimento vigotskiano, considerando o diálogo como motor do desenvolvimento. Para Clot (2010, p. 133), “o diálogo e a ordem psicológica é que oferecem o cenário em que os sujeitos encontram a si mesmos e aos outros, assim como se defrontam com suas histórias, contextos ambientais e circunstanciais”.

4 Situação real vivida pelos professores da rede pública de ensino do estado de São Paulo no ano de 2008 no ensino fundamental e no ensino médio.

Segundo o Clot (2010, p. 137), o diálogo é visto como instância do desenvolvimento, que se alimenta de outros diálogos anteriores e paralelos do grupo profissional, do qual ele retoma e reelabora os temas. Nesse sentido, as escolhas discursivas dos participantes desempenham um papel importante no processo de desenvolvimento.

Para possibilitar o diálogo, a Clínica da Atividade propõe alguns métodos para a análise do trabalho, como a autoconfrontação simples, a autoconfrontação cruzada, a instrução ao sósia,5 métodos estes que tornam possível o diálogo. Segundo Clot (2006), procedimentos metodológicos que propiciam o diálogo sobre o trabalho já geram, por si mesmos, algum tipo de transformação.

Assim, a Clínica da Atividade, e também a Ergonomia da Atividade, buscam não só compreender o papel do trabalho na perspectiva do desenvolvimento do trabalhador, como também investigar possibilidades de transformações da própria situação de trabalho. Para Clot (2006), numa perspectiva vigotskiana de explicação do desenvolvimento humano, que explicitaremos no Capítulo 3, a própria análise do trabalho contribui para a sua transformação. A Clínica de Atividade põe em evidência o papel do coletivo e do social na construção do agir humano. Clot (2006) atenta para o fato de que o agir humano só é construído se o trabalho permitir que o sujeito tenha acesso ao mundo social em cujas regras ele possa se apoiar. Nesse sentido, o social, o que inclui o coletivo de trabalho, é essencial para que o indivíduo possa se desenvolver. Para o trabalhador, então, é importante ter um coletivo de trabalho em que ele possa se apoiar nos seus conflitos, nas suas dificuldades, que, muitas vezes, são coletivas. Esse coletivo não é somente o que está presente, mas, também, a verdadeira tradição histórica e social do ofício.

O papel desse coletivo é essencial nas análises de situações de trabalho da Clínica de Atividade do CNAM, que são interventivas e, por isso, os psicólogos/pesquisadores precisam de um longo tempo de trabalho de preparação e observação, já que na França a demanda de intervenção parte da própria instituição de trabalho. É nessa intervenção que são utilizados métodos, como os abordados anteriormente, que possibilitam a criação de diálogo pelo coletivo de trabalho sobre a atividade desenvolvida. Trata-se de processo de intervenção a partir do qual uma experiência vivida se torna um meio de viver uma outra experiência, em que há uma estreita relação entre interação, linguagem e desenvolvimento (CLOT, 2001, 2006, 2010).

5 Ver Clot (2006, 2010). No Capítulo 5 trataremos da instrução ao sósia, que é o procedimento principal de geração de dados utilizado em nossa pesquisa.

A Clínica da Atividade, para tratar dos elementos envolvidos no trabalho mencionados anteriormente, aborda quatro dimensões do trabalho: 1. impessoal; 2. pessoal; 3. interpessoal; e 4. transpessoal. A atividade de trabalho é considerada impessoal por ser prescrita por instituições e superiores hierárquicos. Em relação à dimensão pessoal, é uma atividade em que o trabalhador utiliza o seu próprio estilo no desenvolvimento da atividade, engajando-se em suas dimensões física, cognitiva, emocional. Ao mesmo tempo, envolve a dimensão interpessoal, já que o trabalhador interage com outros indivíduos na situação de trabalho e visa a um destinatário. Além disso, toda atividade de trabalho é transpessoal, já que ela é sócio-historicamente situada, sendo a sua história conservada, transmitida e retida pelo coletivo de trabalho, que renormaliza a sua atividade, sendo, por isso, considerada também prefigurada pelo trabalhador, já que ele reelabora as normas, construindo prescrições para si e guiando-se por objetivos que constrói para si (CLOT, 2006, 2006; ROGER, 2007).

Para finalizar esta seção, é importante destacar que na Clínica da Atividade do CNAM os pesquisadores trabalham em duas circunstâncias diferentes: uma é na situação de intervenção no trabalho, que pode possibilitar as transformações de situações conflituosas, e a outra é a situação de pesquisa propriamente dita. No caso desta tese, utilizaremos o conceito de trabalho da Clínica da Atividade e o procedimento de instrução ao sósia, proposto pela Clínica de Atividade, que explicaremos no Capítulo 5, para estudar o trabalho do professor de pós-graduação. Assim, o contexto é diferente do da Clínica de Atividade do CNAM, em Paris, pois não se trata de uma demanda institucional, o que inclui um trabalho de intervenção. Talvez pudéssemos dizer que se trata de uma demanda social, observada a partir de contatos com professores de pós-graduação e de estudos acadêmicos, à procura de respostas para contribuir com a melhor compreensão do trabalho do professor de pós-graduação, o que pode ser a ponta de um iceberg para melhorar situações conflituosas de trabalho.

Na próxima seção, abordaremos a definição de trabalho do ISD, que também parte de uma abordagem dialógica, de Voloshinov, no que se refere à concepção de linguagem, e vigotskiana, no que se refere à questão do desenvolvimento humano. Assim, o ISD partilha dos princípios centrais de base da Ergonomia da Atividade desenvolvida pelo grupo Ergonomie de l‟Activité des Personnels de l‟Éducation (Ergape6), no Institut Universitaire de Formation de Maïtres (IUFM) de Marselha e da Clínica de Atividade do CNAM na França.

6 Esse grupo é formado, dentre outros, por René Amigues, Daniel Faïta e Frédéric Saujat, e desenvolve estudos sobre a atividade dos profissionais da educação no IUFM de Marselha, na França.