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O trabalho como forma de agir na abordagem do ISD

CAPÍTULO 1 – CONCEPÇÕES DE TRABALHO E DE TRABALHO DOCENTE

1.3. O trabalho como forma de agir na abordagem do ISD

Nesta seção, trataremos do conceito de trabalho para o ISD, que é uma vertente da psicologia vigotskiana, e que pretende ser considerada, teoricamente, pelo seu principal autor, Bronckart (1999), uma ciência do humano, pois, em sua visão, da qual partilhamos, para estudar os complexos fenômenos humanos é necessário que as disciplinas se apoiem uma nas outras para que melhor possamos explicar e compreender esses fenômenos. Nesse sentido, é necessária uma abordagem transdisciplinar em Ciências Humanas/Sociais, e não uma separação de disciplinas que têm em comum o humano e o social. Essa vertente tem como objetivo maior estudar a problemática do desenvolvimento e funcionamento humano, focando o agir verbal e não verbal, tendo se voltado, recentemente, a estudar um dos aspectos desse agir: a questão do trabalho, a partir de conceitos às vezes reformulados (LEONTIEV, 1979; RICOEUR, 1977; SCHÜTZ, 1998).

Assim, para Bronckart (2006, p. 209, grifo do autor):

[...] o trabalho se constitui, claramente, como um tipo de atividade ou de

prática. Mas, mais precisamente, é um tipo de atividade própria da espécie humana, que decorre do surgimento, desde o início da história da humanidade, de formas de organização coletiva destinadas a assegurar a sobrevivência econômica dos membros de um grupo.

Mais recentemente, Bronckart (2008) afirma que de acordo com o senso comum, o trabalho é uma forma de agir ou de prática própria da espécie humana, pois, para o autor, na espécie humana se desenvolveram variadas atividades coletivas organizadas a fim de assegurar a sobrevivência dos membros do grupo, tornando-se complexas e diversificadas. Algumas dessas atividades têm como objetivo a produção de bens materiais, podendo ser chamadas de atividades econômicas. No quadro dessas atividades, as tarefas são variadas e são distribuídas entre os membros nos postos de trabalho, o que chamamos de divisão de trabalho. Cada trabalhador desempenha um papel específico, de acordo com as responsabilidades a ele atribuídas, sendo que o controle efetivo dessa organização se dá pelo estabelecimento de uma hierarquia.

Bronckart (2006, p. 209), buscando aprofundar a definição de trabalho, coloca uma questão: mas se o trabalho é uma atividade, o que é a atividade (ou a ação, ou o agir)? Para o autor, num primeiro momento, podemos dizer que a atividade seriam os comportamentos, as condutas, as intervenções que todos nós desenvolvemos diariamente. Porém, o autor nos adverte para o fato de que isso é uma questão complexa, se pensarmos em que se diferencia a

atividade de uma máquina, de um animal e de um homem adulto da atividade motora de um bebê. Nesse caso, teríamos várias questões para refletir. Por exemplo: em que medida a atividade é intencional, voluntária, consciente? Qual é a responsabilidade de determinado agente na condução e no sucesso de uma atividade? Em que medida as atividades são determinadas, limitadas por fatores externos ou, ao contrário, livres e criativas? Como determinar o que é uma atividade justa, adequada, desejável, em oposição a atividades que não o seriam, o que nos leva às questões de ética da atividade? (BRONCKART, 2006, p. 210).

Segundo Bronckart (2006, p. 210), de Aristóteles a Descartes, Kant ou Piaget, os pensadores elaboraram importantes teorias sobre o estatuto dos conhecimentos humanos e sobre as condições de seu desenvolvimento, mas tiveram dificuldades para fornecer respostas satisfatórias sobre algumas questões como as anteriormente levantadas, sendo essa lacuna criticada por variados pesquisadores. Nesse contexto, diferentes abordagens ou novas teorias foram elaboradas. Assim, o autor trata de três dessas abordagens que considera representativas para refletir sobre essas questões.

A primeira é a da filosofia da ação, herdada de Wittgenstein e de Anscombe. Essa corrente distingue os acontecimentos que se produzem na natureza das ações propriamente

ditas. Bronckart (2006, p. 210) cita o seguinte exemplo: “O vento sopra e provoca a queda de duas telhas do telhado.”. Nesse caso, podemos identificar dois fenômenos (o vento sopra/as telhas caem), sendo que o que causa a queda da telha é o fato de o vento soprar, tratando-se de um fenômeno de caráter mecânico (acontecimento), objeto de uma explicação causal.

Por sua vez, em relação ao exemplo “Pedro fez duas telhas caírem do telhado para danificar o carro do vizinho que ele detesta.”, há uma ação, que é uma intervenção deliberada de um agente no mundo. Nesse caso, temos:

 um motivo ou razão para agir: Pedro detesta seu vizinho;  uma intenção: Pedro fez duas telhas caírem para...;

 uma capacidade física de realizar os gestos necessários para o agir.

Segundo o autor, o motivo, a intenção e a capacidade definem a responsabilidade desse ser humano no encadeamento dos fenômenos. Porém, esses elementos são propriedades psíquicas do agente que não podem ser observadas ou identificadas enquanto tais, mas podem apenas ser inferidas a partir de um processo de compreensão a posteriori, levando-se em

conta as características do encadeamento verbalizadas no enunciado exemplo pelas expressões fez duas telhas caírem, para e que ele detesta.

Observa-se que, na verdade, essa teoria destaca o papel determinante das propriedades psíquicas de um sujeito individual da ação. Por isso, Bronckart (2006) menciona a segunda abordagem, a teoria da atividade de Leontiev (1979), para tratar das dimensões, primeiramente coletivas do agir humano. Nessa teoria, no decorrer de sua história social, a espécie humana desenvolveu formas de interações ou atividades, que são definidas como quadros que organizam e que fazem a mediação do essencial das relações entre os indivíduos e seus meios, quadros esses nos quais efetivamente se constituem os conhecimentos humanos. Para essa abordagem, a atividade é primeiro governada por motivações, finalidades, regras e/ou normas de ordem coletiva e social, sendo que esses elementos exercem um efeito sobre os comportamentos dos indivíduos, que têm um espaço de liberdade ou de criatividade muito restrito. O foco para essa abordagem é a atividade coletiva.

A terceira abordagem é a proposta por Schütz (1998) e Bühler (1927), em que a ação é concebida como um processo de pilotagem ou regulação das condutas humanas. Essa abordagem atribui um papel importante ao sujeito individual, que é o piloto da ação, mas, ao mesmo tempo, considera que essa pilotagem é uma operação difícil e aleatória, porque o piloto está submetido a sistemas de restrições sociais e materiais múltiplas, devendo, de alguma forma, pilotar sempre, mesmo sem rumo definido. Essa concepção destaca as transformações que caracterizam o desenvolvimento temporal da ação, havendo a necessidade de distinguir a ação acabada da ação em desenvolvimento, que, certamente, ”tem um sentido inicial (sentido que é visado por um ato de reflexão inicial do ator), mas que pode se modificar em direções a priori imprevisíveis, à medida que a ação se desenvolve” (BRONCKART, 2008, p. 32). Nesse sentido, em virtude das coerções e resistências do meio, o resultado de uma ação não seria forçosamente o que o agente imaginou no início, pois mesmo se, de início, o agente tem motivos e intenções, estes podem se modificar mais ou menos profundamente por causa dessas coerções. Assim, os objetivos e as intenções atribuídos ao agente não coincidem nunca, em princípio, com o desenvolvimento efetivo da ação ou com sua realização, pois o tempo interno (não espacializado) do desenvolvimento do

agir é dinâmico e plurideterminado. Isso está ligado ao fato de que o agente está exposto a múltiplos sistemas de conhecimentos7 e determinações de três tipos:

[...] os das suas próprias percepções, que lhe fornecem índices do estado das coisas do mundo; o dos valores e/ou normas que interiorizou no decorrer de sua vida social e o das intervenções comportamentais significantes de outros membros de sua comunidade. (BRONCKART, 2008, p. 33)

Nesse sentido, os conhecimentos desses três sistemas interferem no objetivo consciente, pois as condições objetivas do mundo podem se opor à realização desse objetivo, e as normas sociais ou as reações dos outros podem levar à sua modificação, obrigando o agente a improvisar. Assim, nessa concepção do agir como pilotagem, o agir não se reduz mais ao vivido intencional de um sujeito, mas é definido pelos mecanismos de pilotagem de agentes confrontados com determinações contraditórias (BRONCKART, 2008, p. 33).

Bronckart (2006), após apresentar um resumo dessas três abordagens teóricas, faz uma reflexão sobre a questão da atividade.

Em primeiro lugar, o que se chama de atividade ou ação é sempre resultado de um processo interpretativo, pois o que é observável são os comportamentos humanos. Assim, qualificar esses comportamentos de atividade, de ação ou de pilotagem implica que atribuamos aos protagonistas coletivos ou individuais desses comportamentos determinadas propriedades (objetivo, intenção e responsabilidade) que não são diretamente observáveis, mas sobre as quais podemos hipotetizar que elas orientam ou determinam esses comportamentos. Em segundo lugar, de acordo com Bronckart (2006, 2008), a partir da exposição das três abordagens, observa-se um sério problema de sentido, pois os termos

atividade, ação e agir são usados aleatoriamente por diversos estudiosos com diversas significações. Em vista disso, Bronckart (2006, 2008) propõe uma definição ad hoc para que eles tenham certa estabilidade em nossas pesquisas. Em sua proposta, que será detalhada no Capítulo 3, o autor faz as seguintes definições:

 Agir: qualquer forma de intervenção orientada no mundo de um ou de vários seres humanos para dar nome ao “dado” que podemos observar. É usado em um sentido genérico.

7 Segundo Bronckart (2008), Bühler foi o precursor da concepção de mundos representados – a que os múltiplos sistemas estão relacionados – que foi desenvolvido, posteriormente, por Habermas (1987), como veremos no Capítulo 3.

 Atividade: qualquer intervenção no mundo que implica, principalmente, dimensões motivacionais e intencionais e recursos mobilizados por um coletivo organizado.  Ação: qualquer intervenção no mundo que implica as mesmas dimensões da

atividade, mas refere-se a uma pessoa particular ou ao indivíduo. Atribui-se à atividade e à ação um estatuto teórico ou interpretativo, e não observável.

Antes de encerrar esta seção, é importante frisar que os pesquisadores das três abordagens – Ergonomia da Atividade, Clínica da Atividade e ISD – têm uma forte preocupação com o social e, consequentemente, buscam transformar as situações de trabalho a fim de promover uma melhoria e o bem-estar das condições de trabalho e garantir a saúde dos trabalhadores. Visam, dessa forma, à transformação dos ambientes de trabalho, buscando conforto e prevenção de agravos à saúde dos trabalhadores. Para as três abordagens, o trabalho possibilita o desenvolvimento de capacidades do trabalhador, sendo a interação com o coletivo de trabalho essencial para esse desenvolvimento.

Em síntese, com base nos autores discutidos, da Ergonomia, da Clínica e do ISD, concebemos o trabalho como um tipo de agir humano em que o coletivo de trabalho está sempre presente, mesmo in absentia, pois há uma memória profissional onipresente; ele é situado em um contexto particular estruturado por regras, convenções, culturas, havendo uma interação entre o trabalhador e o ambiente físico e social, mediado por artefatos materiais ou simbólicos.

O trabalhador age, direta ou indiretamente, a partir de artefatos/instrumentos, sobre o meio da atividade de trabalho, sendo transformado por ele em função dos efeitos e resultados da ação. A interação entre o homem e o ambiente físico/social é guiada por objetivos, motivações, finalidades, regras e/ou normas de ordem coletiva e social. O resultado de uma ação não seria forçosamente o que o agente imaginou no início, pois, se o agente tem motivos e intenções, estes podem se modificar mais ou menos profundamente, já que o agente está exposto a múltiplos sistemas de conhecimento e determinações diversas e contraditórias que interferem no objetivo consciente, obrigando o agente a improvisar. Assim, esses motivos e intenções atribuídos ao agente não coincidem, em princípio, com o desenvolvimento efetivo do agir ou com sua realização, pois o tempo interno do desenvolvimento do agir é dinâmico, já que o agir não se reduz ao vivido intencional que o agente imaginou no início do agir. Por exemplo, suponhamos que um professor prepare uma aula para determinada série tendo a intenção de desenvolver nos alunos determinadas capacidades referentes a um conteúdo

específico. Ao chegar à sala, percebe que naquele dia os alunos estão muito agitados e que há muita conversa, inclusive discussão agressiva entre alguns alunos. A intenção primeira do professor muda, pois agora o seu objetivo passa a ser conseguir “controlar” a sala para que cesse a conversa e, principalmente, a discussão entre os alunos, o que, pela sua experiência e pelo que vê na mídia, sabe que pode levar a uma agressão física.

Na próxima seção, a partir dos estudos da Ergonomia da Atividade, da Clínica da Atividade e do ISD, iremos conceituar o trabalho docente com base nos estudos de pesquisadores que utilizam essas abordagens, que também vêm desenvolvendo, recentemente, pesquisas sobre o trabalho do professor.