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Atividade de linguagem e desenvolvimento humano

CAPÍTULO 3 – AGIR, LINGUAGEM E LINGUAGEM E DESENVOLVIMENTO

3.3. Atividade de linguagem e desenvolvimento humano

Nesta seção, objetivamos abordar o esquema de desenvolvimento proposto por Bronckart (2006, p. 82-89), com base na concepção de linguagem como agir, anteriormente discutida, que é radicalmente diferente do esquema proposto por Piaget (1936, 1937), oriundo do construtivismo, ou no dizer de Bronckart, do interacionismo lógico.

De acordo com esse interacionismo lógico, desde o nascimento, há uma interação entre o bebê e o seu ambiente físico, que contribui para a transformação de suas capacidades

inatas (PIAGET, 1936, 1937). Nessa visão, o mundo com o qual a criança piagetiana se confronta é um mundo sem história e sem sociedade, pois as produções sócio-históricas humanas, o que inclui o agir geral e a linguagem, são consideradas secundárias, já que as estruturas mentais e as estruturas sociais (portanto, a linguagem) são consideradas como tendo formas idênticas, com um parentesco natural, cujas raízes são, em parte, biológicas. O enfoque maior é dado a um sistema cognitivo universal, sendo a causa do desenvolvimento cognitivo humano o nível dos processos biológicos inatos.

Na concepção de desenvolvimento proposta por Bronckart (2006, p. 82-89), com base em Vigostski (1985) que, como já mencionado, é totalmente diferente da piagetiana, o bebê, desde o nascimento, é mergulhado em um mundo social de atividade humana mediada por produções verbais. O sujeito intervém deliberadamente para integrar o bebê a essa atividade verbal e não verbal, sendo nesse quadro interativo que o bebê é confrontado com os objetos, com o mundo físico.

Nas etapas posteriores do desenvolvimento, as atividades humanas mediadas pela linguagem se desenvolvem e se diversificam, tendendo a se especializar em formas de organização diferentes, ou em discursos,20 que, aqui, de maneira global, podem ser considerados “modalidades de estruturação das práticas de linguagem por meio das quais os aspectos ilocutório e locutório21 são integrados e que “dizem” o mundo, ao agir no mundo (BRONCKART, 2006, p. 76). Essas práticas de linguagem, ou discursos, são distinguidas/os em dois tipos por Bakthin (2000).

Bronckart (2006, p. 76) retoma esse autor que faz uma distinção em discursos primários e discursos secundários. Os primeiros manteriam uma relação imediata com as situações nas quais são produzidos, apresentando uma estrutura que é dependente das ações não verbais às quais se articulam. Já os segundos apareceriam em uma circunstância de comunicação cultural mais complexa e relativamente mais evoluída, mantendo uma relação indireta (ou mediata) com a situação de produção. Os discursos primários seriam, assim,

20 É importante mencionar que o termo discurso é empregado com diferentes acepções dependendo do autor/abordagem. No próximo capítulo, discutiremos um sentido mais restrito dado a esse termo por Bronckart (1999, 2006, 2008), ao abordar os tipos de discursos.

21 Os termos locutório e ilocutório (ou locucionário e ilocucionário) são oriundos dos estudos da pragmática que, a partir da obra de Austin How to do things with words (1962), deram origem à teoria dos atos de fala, ligada à concepção que se pode agir por meio da linguagem. Essa concepção não é nova, mas foi edificada somente na segunda metade do século XX com os estudos do campo da filosofia analítica anglo-saxônica, que originou uma teoria pragmática da linguagem. Austin distingue três aspectos de um ato de fala: ato locucionário, que é o ato de dizer alguma coisa; ato ilocucionário, que é aquilo que você está tentando fazer com sua fala e ato perlocucionário, que é o efeito daquilo que você diz. Essa teoria, posteriormente, foi retomada e desenvolvida pelo filósofo John Searle (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2008; TRASK, 2006).

estruturados pelas ações não verbais e os secundários (romances, contos, obras científicas etc.) se desligariam dela e seriam objeto de uma estruturação autônoma, convencional, ou ainda, linguística. Esses últimos constituiriam verdadeiras ações de linguagem. Nesse sentido, enquanto os discursos primários seriam estruturados na ação, os secundários (narração, discurso teórico) se desligariam dela e seriam submetidos a um estruturante próprio, convencional, de natureza especificamente linguageira, sendo estruturados em ação. Assim, constituiria uma forma particular de ação significante, a ação de linguagem.

Visando compreender o estatuto e a função dessa estruturação autônoma dos discursos secundários, já que, para Bronckart (1999, p. 60), a sugestão bakhtiniana de circunstâncias culturais propícias não seja satisfatória, esse autor busca em Ricoeur (1983, 1984, 1985), do

Círculo Hermenêutico, uma interpretação da função da estruturação própria dos discursos secundários. Esse último autor propõe a teoria da reconfiguração do agir nos discursos, partindo da combinação sutil entre a hermenêutica textual e a hermenêutica da ação. Nessa teoria, “interpretar um texto seria (principalmente) interpretar figuras interpretativas nelas contidas e, assim, também seria interpretar a ação humana” (BRONCKART, 2008, p. 35).

Ricoeur (1983, 1984, 1985), reconhecendo a importância do mundo vivido, defende a ideia de que o ser humano encontra-se confrontado com a angústia existencial e com as contradições do tempo porque as representações vividas são conflituosas, contraditórias ou não-racionalizáveis. O autor sustenta, então, que a produção de discursos narrativos é um trabalho cujo objetivo principal é o de superar esse estado caótico conflituoso por meio de uma re-figuração ou esquematização inteligível das ações humanas. Nessa visão, nas narrações, constrói-se um mundo ficcional no qual os agentes, motivos, intenções, razões, circunstâncias são postos em cena de modo racional, sem conflitos, para formar uma harmonia do caos existencial (esquema narrativo: situação inicial, complicação, ação, resolução etc.). Os acontecimentos e incidentes pouco inteligíveis organizam-se em uma estrutura configuracional significante ou história, sendo em relação a essa história que os acontecimentos e sua sucessão temporal ganham sentido. Essas narrações, disponíveis no intertexto, assim constituídas, têm o estatuto de obras abertas, com base nas quais os sujeitos constroem sua compreensão das ações humanas, ao mesmo tempo em que constroem uma compreensão de seu estatuto de agente.

Porém, como essa tese de Ricoeur incide somente sobre os discursos narrativos, Bronckart (2008) faz uma nova leitura dessa posição, pois acredita que não são apenas os discursos narrativos que têm essa função de re-figuração; assim, esse esquema pode ser

generalizado às outras formas de discursos secundários. Em sua concepção, todos os tipos de discursos (narrativo, teórico, interativo etc.), que estudaremos no próximo capítulo, podem contribuir para a clarificação, para a construção de modelos do agir ou para a morfogênese das ações, ou seja, para o desenvolvimento de suas formas e de estruturas características em um determinado momento sócio-histórico. Segundo Bronckart (1999), é a organização textual, oral ou escrita, que é dotada da função de reestruturação.

Assim, se os discursos contribuem para a clarificação, para a modelização ou para a morfogênese das ações, não apenas em suas dimensões causo-temporais tematizadas por Ricoeur (1983), “eles contribuem também, necessariamente, para a clarificação do quadro social em que as ações se desenvolvem e, portanto, para a morfogênese do conjunto dos construtos coletivos ou do conjunto dos fatos sociais” (BRONCKART, 2008, p. 38).

A teoria da reconfiguração do agir nos discursos identifica e descreve um processo fundamental do desenvolvimento humano, ajudando-nos a compreender o papel dos discursos, portanto da linguagem, no desenvolvimento do funcionamento psíquico humano, expandindo-o, enriquecendo-o e reestruturando-o perpetuamente.

Para encerrar este capítulo, é importante enfatizar, então, que o desenvolvimento das funções ilocutória (agir no mundo) e locutória (dizer o mundo) só é possível porque as ações

significantes estão estruturadas em práticas de linguagem que são materializadas em textos, sendo a reconstrução simultânea dessas duas unidades psicológicas – ações significantes e

textos– que constitui o vetor maior do desenvolvimento psicológico.

O acesso à compreensão do valor ilocutório dos signos é uma etapa decisiva do desenvolvimento, mas não no sentido piagetiano de que ela marca a passagem do desenvolvimento natural ou biológico a um desenvolvimento sócio-histórico. Mas no sentido de que a reconstrução das propriedades do mundo social se opera desde o nascimento. Assim, essa etapa é decisiva porque fornece à criança unidades de representação estabilizadas que, de um lado, serão os instrumentos de negociação que lhe permitem desenvolver eficazmente sua aprendizagem de racionalidade social e, de outro, interiorizando-se, dotarão a criança de unidades de auto-representação, ou seja, de unidades organizáveis em pensamento consciente (BRONCKART, 2006, p. 88).

Nas etapas posteriores do desenvolvimento, a apropriação das estruturas discursivas e sua interiorização continuam desempenhando um papel igualmente importante no desenvolvimento de capacidades linguageiras e psicológicas do indivíduo. Nesse sentido, as

estruturas discursivas e sua interiorização dos textos oriundos do procedimento de instrução ao sósia e de entrevista aberta, que são utilizados para gerar os dados nesta pesquisa, como veremos no Capítulo 5, podem contribuir para o desenvolvimento dessas capacidades dos participantes de pesquisa.

Para que esses textos possam ser analisados globalmente, é necessária uma metodologia de interpretação da ordem da compreensão ou da hermenêutica que esteja de acordo com os princípios teóricos discutidos neste capítulo. A metodologia que adotamos foi, inicialmente, proposta por Bronckart (1999, p. 67) e vem sendo continuamente aperfeiçoada por integrantes de seu grupo (LAF) e do grupo Alter-CNPq (PUC-SP). Ela incide na identificação do contexto de produção dos textos e nos três níveis de análise – o organizacional, o enunciativo e o semântico – o que inclui os elementos e os mecanismos que são levados em conta em cada um desses níveis (MACHADO; BRONCKART, 2009, p. 46), como veremos no próximo capítulo.