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Os elementos do nível enunciativo

CAPÍTULO 4 – O QUADRO DE ANÁLISE DE TEXTOS DO ISD

4.4. Os elementos do nível enunciativo

Nesta seção, trataremos dos mecanismos de responsabilização enunciativa em geral, que constitui o nível enunciativo. Esses mecanismos são marcados por uma variedade de unidades linguísticas, como, por exemplo, dêiticos pessoal, espacial e temporal; marcas de inserção de vozes; modalizadores de enunciados; modalizadores pragmáticos e adjetivos. A seguir, veremos essas unidades linguísticas com base, sobretudo, em Machado e Bronckart (2009) e em outros autores compatíveis com a nossa abordagem.

Em relação aos dêiticos de pessoa, a sua análise é muito útil nas pesquisas, pois ela permite mostrar a manutenção ou a transformação desses valores na progressão textual, isto é, como o texto representa o enunciador no agir representado. Por exemplo, em um mesmo texto de autoconfrontação,33 a análise do valor das marcas de pessoa pode indicar a construção de um plano enunciativo encaixado em outro plano, pois a experiência vivida é representada, na autoconfrontação, como se ela ocorresse simultaneamente ao momento da enunciação. Isso é possível por meio da construção de dois planos enunciativos, um encaixado sob o outro, em que as marcas de pessoa são fundamentais. Além disso, a alternância dos pronomes pessoais (eu, você, a gente), por exemplo, coloca em cena o estatuto individual atribuído a um determinado agir. Por exemplo: Eu avalio projeto de pesquisas; Nós avaliamos projetos de

33 A autoconfrontação consiste em assistir, com o pesquisador ou psicólogo, a filmagens do trabalho realizado (experiência vivida) pelo trabalhador, sendo estabelecido um diálogo sobre o trabalho filmado em vídeo e observado por ambos (LOUSADA, 2006).

pesquisa; A gente avalia projetos de pesquisa. Os últimos dois exemplos se referem a um agir coletivo, que envolve o agir do enunciador-actante, que podem ser interpretados como um agir coletivo mais amplo ou mais restrito, dependendo do contexto (MACHADO; BRONCKART, 2009).

Tanto os dêiticos pessoais, quanto os temporais e espaciais, além de estarem estreitamente ligados à identificação dos tipos de discurso, também podem contribuir para a análise da subjetividade da linguagem, que podemos considerar como a capacidade do enunciador se posicionar como sujeito (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2008; BENVENISTE, 2005; FIORIN, 2010). Encerrada a apresentação sobre as marcas e pessoa, a seguir, abordaremos os índices de inserção de vozes.

Primeiramente, lembramos que seguimos uma concepção dialógica da linguagem, partindo do princípio de que encontramos em uma enunciação várias vozes que se cruzam, que se complementam ou que está em contradição (BAKHTIN, 2000). A presença dessas vozes pode estar marcada linguisticamente por meio de formas gramaticais ou pode ser identificável a partir do próprio enunciado, como veremos a seguir. Alguns autores se dedicaram a identificar e categorizar as marcas das vozes no discurso (MAINGUENEAU, 1997, 2001; AUTHIER-REVUZ, 1982, 2001; entre outros). Authier-Revuz (1982), por exemplo, desenvolveu os conceitos de heterogeneidade constitutiva e heterogeneidade mostrada como características do discurso. Como não analisaremos a heterogeneidade constitutiva34 em nossos dados, a seguir, abordaremos a questão da heterogeneidade mostrada. A heterogeneidade mostrada origina de diversas fontes enunciativas, tornando-se evidente a partir das marcas, explícitas ou implícitas, das vozes presentes em um enunciado, como as marcas de discurso direto, discurso indireto, discurso indireto livre, slogan, modalização autonímica,35 entre outras.

Em relação às marcas explícitas das vozes, em nossas análises, deter-nos-emos apenas ao discurso direto (p.ex.: O aluno disse: “Não foi possível ler o texto”.) e indireto (p. ex., O aluno disse que não foi possível ler o texto.), pois são essas marcas que predominam em nossos dados. Em relação às representações sobre o agir docente, a análise do que é tematizado e avaliado pelas diferentes vozes permite a identificação, em um mesmo texto, de diferentes representações sobre um mesmo agir, que podem estar em acordo ou em desacordo.

34 Para o estudo desse conceito, remetemos o leitor aos autores citados (MAINGUENEAU, 1997; AUTHIER- REVUZ, 1982, 2001).

Em relação aos verbos introdutores de discurso direto ou indireto (confessar, criticar,

advogar, sugerir, por exemplo), Muniz-Oliveira (2004) propõe uma classificação para os verbos, que revelam uma interpretação do agir, porém em uma análise preliminar, observamos que em nossos dados predominam verbos considerados “mais neutros” como o verbo falar.

255C.: então eu já olho na biblioteca e falo: “vai lá e pega que está lá”... se ele falar que ele não leu... mas com pós eu não faço isso com pós eu deixo o aluno se virar mais porque é diferente né? (Instrução ao sósia, Unicamp, 29/out./08)

Em relação às vozes implícitas ou pressupostas, analisamos os organizadores argumentativos (embora, mas, por exemplo), explicitados anteriormente, e as unidades de negação. Em textos das instâncias governamentais, é bastante comum a ocorrência dessas últimas unidades, já que o enunciador parte da negação de uma voz anterior pressuposta, cuja fonte nunca é nomeada, para a afirmação da voz do produtor do texto. Podemos citar o seguinte exemplo extraído de Machado e Bronckart (2009, p. 60-61): “O professor não precisa omitir, simplificar ou substituir por um sinônimo familiar as palavras que consideram difíceis”. Observa-se, nesse exemplo, uma voz pressuposta que afirma que “o professor precisa omitir, simplificar ou substituir...”, sendo negada pela voz do enunciador do texto.

Finalizada a apresentação das marcas das vozes, passaremos para a questão das modalizações36 que podem se realizar por meio de unidades ou conjuntos de unidades linguísticas chamadas de modalizadores (tempo verbal no futuro do pretérito, auxiliares de modalização, certos advérbios, certas frases impessoais etc.) (BRONCKART, 1999, 2006).

Uma classificação dessa modalização é sugerida por Machado e Bronckart (2009), baseando-se em Bronckart (1999) e em Machado e Bronckart (2005), que propõem dois tipos para ela: os modalizadores de enunciado e os modalizadores pragmáticos. No primeiro caso, consideram-se todas as unidades linguísticas que “exprimem a posição de uma instância enunciativa sobre o conteúdo da proposição enunciada” (MACHADO; BRONCKART, 2009, p. 61), podendo ser classificados em modalizações lógicas, deônticas e apreciativas.

As modalizações lógicas consistem em uma avaliação sobre o enunciado, apoiada em critérios elaborados e organizados em parâmetros do mundo objetivo, apresentando o enunciado como verdadeiro, necessário, possível etc., como nos exemplos a seguir.

36 Estudiosos têm se interessado por essa questão da modalização desde Aristóteles, por exemplo. Vários autores têm se dedicado a esse estudo, como Cervoni (1989), Charaudeau (1992), Koch (1984, 1997), entre outros.

Talvez o professor marque uma prova para a próxima semana.

Necessariamente, o pesquisador precisa produzir artigos.

É possível que chova amanhã.

Para Machado e Bronckart (2009), mesmo que não haja nenhuma unidade linguística que indique o modalizador, há um “grau zero” da modalização do enunciado, sendo o caso da asserção positiva ou negativa, apresentada pela instância enunciativa como sendo uma verdade incontestável, como, por exemplo, em “A terra gira em torno do sol” (MACHADO; BRONCKART, 2009, p. 61).

As modalizações deônticas consistem em uma avaliação do conteúdo temático do enunciado, apoiada nos valores, nas opiniões e nas regras constitutivas do mundo social, e apresenta os elementos do conteúdo temático como sendo do domínio do direito, da obrigação social ou da conformidade com as normas em uso. São marcadas por verbos ou expressões como dever, é lamentável que, ter que etc., por exemplo, em frases como “Você tem que atingir toda a classe”. A expressão “tem que”, por exemplo, mostra um dever a cumprir.

Por sua vez, as modalizações apreciativas consistem em uma avaliação do conteúdo temático do enunciado oriunda do mundo subjetivo do enunciador. Podem ser marcadas por advérbios como infelizmente, felizmente, como em “Infelizmente, não temos tempo adequado para as orientações”, por exemplo.

Enfim, a partir desses modalizadores que incidem sobre o enunciado, é possível a identificação da avaliação das instâncias enunciativas sobre o enunciado, podendo-se detectar como as representações construídas no texto são tomadas como verdadeiras, possíveis, obrigatórias, lamentáveis etc. e os critérios que orientam essa avaliação (MACHADO; BRONCKART, 2009, p. 62).

Por sua vez, em relação ao segundo caso, os modalizadores pragmáticos não exprimem a posição do enunciador sobre o enunciado, mas atribui ao actante determinadas intenções, finalidades, razões (motivos, causas, restrições etc.), capacidades e incapacidades, julgamentos etc., se expressando, principalmente, por meio de verbos auxiliares (querer,

buscar, tentar, acreditar etc.) que se intercalam entre o sujeito e o verbo. Por exemplo, “O professor tentou interagir com os alunos de modo que todos compreendessem a matéria explicada”. Nesse exemplo, o verbo tentar indica uma tentativa do professor. Na análise dos textos produzidos pelos próprios professores, eles explicitam uma interpretação do agir e podem permitir a identificação de aspectos do real da atividade (CLOT, 2006) que, como vimos no Capítulo 1, indica não o que é efetivamente realizado, mas o que é desejado, impedido de fazer, ou seja, o que tentamos fazer, mas não conseguimos.

Além dos modalizadores que permitem identificar as representações sobre o agir, há outras unidades lexicais que também revelam marcas de subjetividade, como, por exemplo, os adjetivos, que possibilitam identificar as avaliações que se constroem sobre as diferentes formas de agir e sobre os actantes. Para a identificação dessas marcas que revelam a avaliação, partimos de Kerbrat-Orecchioni (2006),37 que faz um estudo aprofundado sobre a questão da subjetividade na enunciação, chegando à conclusão de que a subjetividade pode ser expressa a partir das diferentes classes gramaticais, já que toda unidade lexical é, em certo sentido, subjetiva, porque as palavras da língua carregam sentidos atribuídos pela sociedade (incluindo o enunciador) que as manipula. Nesse sentido, na análise de nossos dados, iremos atentar para as unidades linguísticas pertencentes a quaisquer classes gramaticais, a fim de buscar essas marcas de subjetividade e, a partir delas, identificar outras representações construídas nos e pelos textos sobre o agir docente.

Finalizada a apresentação sobre os mecanismos do nível enunciativo, passemos, então, à exposição dos elementos do nível semântico.