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O texto empírico e o tipo de discurso

CAPÍTULO 4 – O QUADRO DE ANÁLISE DE TEXTOS DO ISD

4.1. O texto empírico e o tipo de discurso

Nesta seção, objetivamos apresentar a nossa concepção de texto, mencionando a questão dos gêneros e discutindo as categorias de pessoa, espaço e tempo, com base nos célebres estudos de Benveniste (2005; 1974/2005), que estão estreitamente ligados à noção de tipos de discurso, proposta por Bronckart (1999).

Inicialmente, é importante mencionar que qualquer concepção de texto está estreitamente relacionada à abordagem teórica adotada e, principalmente, à concepção de linguagem. Sendo assim, podemos encontrar variadas definições para o termo, sendo uma

22 Esse título é inspirado em um dos subtítulos de Fourcade e Bronckart (2007), denominado Texto empírico,

delas oriunda das teorias gramaticais e tipologizantes, originárias no final da década de 1960, em que o texto foi considerado uma sequência bem formada de frases ligadas que progridem para um fim. Essa concepção foi muito criticada, pois a unidade considerada é a frase. Estudos posteriores revelaram que o texto é uma unidade muito complexa, não podendo ser definido apenas levando em conta a coesão e a coerência, e também não podendo ser fechada em tipologias homogêneas cognitivas que identificaram diversos tipos de textos (descritivo, argumentativo, argumentativo etc.) (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2008).

Contrária a essa concepção gramatical e tipologizante, somos favoráveis a uma concepção de texto que considera as diversas formas de estruturação constitutivas da textualidade com dependência em relação ao contexto ou ao conjunto dessas formas e, portanto, da própria entidade que é o texto. Assim, admitimos que as condições de abertura e de fechamento dos textos não dependem de regras linguísticas, mas das condições de

realização do agir de linguagem semiotizado por eles (BRONCKART, 2006, p. 142).

Nesse sentido, com base em Fourcade e Bronckart (2007), conceituamos o texto empírico como o produto de uma ação verbal levando em conta o contexto de produção dado, por um agente singular, no quadro das atividades coletivas de uma formação sociodiscursiva, que designa as diferentes formas que toma o trabalho de semiotização nas formações sociais, a partir do que pode e deve ser dito numa posição dada em uma conjuntura determinada (BRONCKART, 1999; MAINGUENEAU, 1997). As unidades linguísticas que aparecem nos textos são o resultado de uma série de operações psicológicas que está relacionada à articulação do texto e do contexto.

Levando em conta a diversidade de combinações possíveis dos parâmetros que definem o contexto de produção, a situação do agente é, de alguma forma, sempre nova e diferente. Essa diversidade conduz o agente a organizar de maneira parcialmente nova os recursos linguísticos para transformar seus conhecimentos cognitivos anteriores, organizados em estruturas cognitivas, em conteúdo temático organizado na linearidade do texto, de acordo com a semântica da língua dada. Isso indica que o texto é sensível à situação em que é produzido, sendo que a menor diferença das variações dos parâmetros desta situação provoca alterações na organização linguística do texto. Desse modo, cada texto empírico é único e diferente em relação à variação linguística, apesar de sempre se construir segundo as formas estabilizadas de comunicação verbal estabilizadas no curso da história. Essas formas

constituem os gêneros de textos,23 considerados por Bronckart (2006, p. 143) como produtos de configurações de escolhas possíveis referentes à seleção e à combinação dessa formas estabilizadas pelo uso. Essas escolhas dependem do trabalho que as formações sociodiscursivas desenvolvem para que os textos sejam adaptados às atividades que eles comentam, adaptados a um dado meio comunicativo, eficazes diante de um desafio social (BRONCKART, 2006, p. 143, 144). Os gêneros, assim como toda obra humana, são objetos de avaliação dos indivíduos, que levam em conta as representações sobre os mundos representados, discutidos no Capítulo 3.

Todo texto, independente do gênero a que pertença (por exemplo, romance, editorial, artigo científico, resenha), é constituído de diferentes segmentos de texto que se caracterizam pela mobilização de subconjuntos particulares de recursos linguísticos que originam os tipos de discursos (BRONCKART, 2008; p. 89). Para que possamos compreender realmente o que chamamos de “tipos de discurso”, recorremos a alguns célebres artigos de Émile Benveniste, que foram compilados, posteriormente, nos dois volumes da obra Problemas de linguística

geral, constituindo uma teoria da enunciação. É importante esclarecer que esse autor também é citado por Bronckart (1999, p. 150, 151), que atenta para o fato de que o desenvolvimento dos estudos sobre os tipos de discurso é, na verdade, uma continuidade dos trabalhos desse autor e de outros (WEINRICH, 1973; SIMONIN-GRUMBACH, 1975), o que significa que os estudos de Benveniste (2005; 1989) é compatível com a nossa perspectiva teórica- metodológica.

Retomando Benveniste (2005; 1989), ele desenvolveu as categorias de pessoa, espaço,

tempo, estabelecendo uma relação de indissociabilidade entre linguagem e ser humano. No Capítulo 5 de seu livro (1989), o autor propõe um “aparelho formal de enunciação”, fazendo uma distinção entre as condições de emprego das formas e as condições de emprego da língua. O emprego das formas está ligado às regras que fixam as condições sintáticas nas quais as formas podem ou devem aparecer. Já o emprego da língua está ligado à enunciação,

23 Importante destacar que Bronckart (1999), ao analisar alguns trechos das obras de Bakhtin, Estética da

criação verbal (2000) e Estética da teoria do romance (1978), considera que sua terminologia é muito flutuante, devido à evolução interna de sua obra e também a problemas de tradução. Em vista disso, para Bronckart (1999), os gêneros acabam sendo tratados, mais frequentemente, como gêneros do discurso, mas, às vezes, também, como gêneros do texto, sendo a terminologia usada para seus componentes internos muito hesitantes (linguagem, língua, estilo, discurso). Assim, o autor propõe um sistema de equivalência terminológica para esses componentes internos, concebendo, de uma maneira global, os gêneros do discurso, gêneros do texto e/ou formas estáveis de enunciado de Bakhtin como gêneros de textos. Para as línguas, linguagens e estilos, como elementos constitutivos da heterogeneidade textual, também de maneira global, o autor propõe o termo tipos de discurso que também tem um sentido mais específico, como veremos mais adiante. Atualmente, Bronckart (2008, p. 76) considera que as pesquisas que originaram os estudos sobre gênero do discurso devem ser atribuídas a Voloshinov, já que seriam uma extensão da teoria dos gêneros verbais desenvolvido por esse último autor.

que é “colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização” (BENVENISTE, 1989, p. 82). Em seu célebre artigo “Da subjetividade da linguagem”, afirma que “é na e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito, porque só a linguagem fundamenta na realidade a sua realidade que é a do ser, do conceito, do “ego” (BENVENISTE, 2005, p. 286, grifo do autor). Nesse sentido, a subjetividade pode ser compreendida como a capacidade do locutor para se propor como sujeito, que só pode dizer “eu” dirigindo-se a alguém, sendo essa condição de diálogo constitutiva da pessoa, pois implica em reciprocidade. O “eu” propõe outra pessoa que instaura o outro como “tu”, e este, por sua vez, ao tomar a palavra, diz “eu”, instaurando o outro como “tu”, constituindo a intersubjetividade.

O “eu” não se refere nem a um indivíduo nem a um conceito, mas ele é exclusivamente linguístico, referindo-se ao ato de discurso individual, sendo a realidade a qual ele remete a realidade do discurso. “É na instância do discurso a qual eu designa locutor que este se enuncia como sujeito” (BENVENISTE, 2005, p. 288), sendo que o fundamento da subjetividade está no exercício da língua. Isso é possível porque a linguagem tem uma forma de organização que permite a cada locutor apropriar-se da língua toda se instaurando como “eu”.

Os pronomes “eu” e o “tu”, que são usados para designar as pessoas da enunciação, são consideradas pelo autor como “pessoas”, possuindo sua marca. Já o “ele” é definido pelo autor como “não-pessoa”, pois pode ser uma infinidade de sujeitos ou nenhum; a terceira pessoa é a única pela qual uma coisa é predicada verbalmente. A terceira pessoa não marca especificamente o “eu” e o “tu”, por isso não é considerada pessoa, criando o efeito de sentido de apagamento de subjetividade e, consequentemente, de realce de suposta subjetividade (BENVENISTE, 2005, p. 254).

Nesse sentido, os pronomes pessoais são os primeiros elementos que revelam a subjetividade da linguagem. Mas há outros elementos que também desempenham o mesmo papel. São os elementos denominados dêiticos, que organizam as relações espaciais e temporais em torno do sujeito, que é tomado como ponto de referência (pronomes demonstrativos, advérbios, por exemplo) da enunciação. Esses constituem as categorias pessoal, temporal e espacial, e se definem somente em relação à instância de discurso em que é produzido, dependendo do “eu” que se enuncia (BENVENISTE, 2005, p. 288). Os pronomes demonstrativos, por exemplo, indicam os objetos a partir de um ponto de referência que é o do “eu”. O objeto pode estar perto ou longe do “eu” ou do “tu”, em frente, atrás,

embaixo, no alto etc. Esses elementos que têm essa função constituem o sistema de

coordenadas espaciais que permite a localização dos objetos instaurados em uma enunciação, em que há um “eu” que é o centro de referência.

Ao lado dos elementos das coordenadas espaciais, há também os elementos das coordenadas temporais que, segundo Benveniste (1989, p. 70), “das formas linguísticas reveladoras da experiência subjetiva, nenhuma é tão rica quanto aquelas que exprimem o tempo”, sendo um elemento difícil de explorar por sua complexidade. O autor faz uma distinção entre tempo físico, tempo crônico e tempo linguístico. O primeiro refere-se a um contínuo do mundo uniforme, infinito, linear, segmentável à vontade. O segundo é o tempo dos acontecimentos, que inclui também nossa própria vida enquanto sequência de acontecimentos. Esse é o tempo da nossa visão de mundo, ou de nossa experiência pessoal. Esse tempo pode ser observado em duas direções: um movimento que vai do passado ao presente e vice-versa. Os acontecimentos não são o tempo, eles estão no tempo, tudo está no tempo. O tempo comporta uma dupla versão, uma objetiva, fixada em um calendário orientado a partir de um ponto de referência externo ao exercício da fala (por exemplo, o nascimento de Cristo); e outra subjetiva, referente à experiência humana, que se traduz e manifesta linguisticamente, tendo como ponto de referência e centro as instâncias da enunciação. É essa última versão do tempo que interessa para os estudos enunciativos, pois ela está ligada ao exercício da fala, sendo o seu centro o presente da instância da fala. Toda vez que um locutor emprega a forma verbal do presente (ou uma forma equivalente), ele localiza o acontecimento no mesmo tempo da instância do discurso em que esse é mencionado. O presente linguístico se constitui como a linha que separa o passado, que só pode ser recuperado pela memória, e o futuro, que se manifesta por prospecção na forma de previsão da experiência humana. Assim, a língua organiza o tempo a partir das instâncias do discurso, o que possibilita que os interlocutores, “eu” e “tu” partilhem da mesma temporalidade, estabelecendo entre si a intersubjetividade temporal (BENVENISTE, 1989, p. 74-75).

A partir de seus estudos, Benveniste (2005, p. 262), como base nos estudos referentes às categorias de pessoa, tempo e espaço, propõe que os tempos dos verbos (em seu estudo, francês) sejam distribuídos em dois sistemas distintos e complementares, manifestando dois planos de enunciação diferentes, denominado pelo autor de história e discurso.

A enunciação histórica caracteriza a narrativa dos tempos passados, em que os fatos são apresentados sem nenhuma intervenção do locutor na narrativa. Segundo o autor, a

narrativa histórica pode ser definida como o modo de enunciação que exclui toda forma linguística autobiográfica, pois o “historiador” (ou narrador) não dirá “eu‟ nem “tu” nem “aqui” nem “agora”, porque não tomará o aparelho formal de enunciação, que consiste na relação de pessoa “eu” e “tu”. Na narrativa histórica só terá as formas de terceira pessoa, tomadas em conjunto com tempos verbais que remetem a um passado (pretéritos).

Em relação ao outro modo de enunciação, o plano do discurso, Benveniste (2005, p. 267) esclarece que é necessário entender discurso na sua expansão mais ampla: “toda enunciação que suponha um locutor e um ouvinte e, no primeiro, a intenção de influenciar , de algum modo, o outro”. Ele adverte que a diferença entre narração e discurso não se refere à distinção entre língua falada e língua escrita, já que há discurso quando alguém se dirija a um outro como enunciador, instituindo-o como “eu” e o outro como “tu”, mesmo que o “tu” esteja ausente fisicamente. Segundo o autor, pela escolha dos tempos dos verbos, o discurso se distingue nitidamente da narrativa histórica, sendo que o plano do discurso emprega livremente todas as formas verbais, tanto os pronomes eu/tu e ele. Nesse plano, a relação de pessoa estará presente em toda parte, explícita ou não, sendo que a terceira pessoa não tem o mesmo valor que na narrativa histórica. O autor menciona, em relação ao seu estudo realizado com a língua francesa, que os tempos fundamentais do discurso são o presente, o futuro e o pretérito perfeito, tempos esses excluídos do plano da narração, sendo o imperfeito comum aos dois planos, e o mais-que-perfeito mais característico da narração.

É com base nesses estudos pioneiros da linguística da enunciação, desenvolvidos, posteriormente, por vários autores, que Bronckart (1999, p. 150-151) propõe quatro planos ou modos de enunciação, utilizando a expressão originária de Simonin-Grumbach (1975) de

tipos de discurso, por considerar que a noção de discurso refere-se mais profundamente ao processo de verbalização do agir de linguagem ou de sua semiotização em uma língua natural (BRONCKART, 2006, p. 151). Esse autor afirma que os estudos de Simonin-Grumbach (1975), pouco conhecido e inspirado em Culioli, foram fundamentais para a elaboração de sua proposta, já que ele tentou identificar o conjunto das unidades características dos tipos de discursos, além de tentar descrever e formalizar as operações psicológicas constitutivas nesses tipos. Com esses estudos, Bronckart (1999, p. 151) propõe não só descrever esses tipos de discursos como também as operações psicológicas em que se baseiam, além das configurações de unidades linguísticas que manifestam esses mundos. O autor relembra que, devido à própria natureza semiótica da atividade de linguagem, ela se baseia na criação de planos ou mundos discursivos (ou virtuais) que são criados pela atividade de linguagem.

Esses planos ou mundos discursivos são radicalmente diferentes dos mundos representados (físico, social, subjetivo) em que se desenvolvem as ações dos agentes humanos, mas mostram o tipo de relação que mantêm com os mundos representados na atividade humana (BRONCKART, 1999, p. 153). Dito de outro modo, esses planos ou mundos discursivos se constituem como quadros em que se manifestam, numa interação verbal, as representações de um determinado agente, constituindo os tipos de discursos.

Assim, a partir de seus estudos, o autor propõe quatro mundos discursivos: a) mundo do expor implicado;24 b) mundo do expor autônomo; c) mundo do narrar implicado; d) mundo do narrar autônomo, mundos esses que dão origem aos tipos de discursos. De acordo com o autor, esses mundos, assim como as operações em que se baseiam, só são identificáveis a partir de formas linguísticas que o semiotizam, sendo eles dependentes, portanto, dessas formas. Essas formas linguísticas estão relacionadas às categorias de pessoa, tempo e espaço, propostas, inicialmente, por Benveniste (1989, 2005), e retomadas por muitos autores (estrangeiros, WEINRICH, 1973; SIMONIN-GRUMBACH, 1975; BRONCKART, 1999; e brasileiros (FIORIN, 2005; BRAIT, 2006; FLORES et al., 2008; LIMA, 2010; entre outros). Esses mundos discursivos, que dão origem aos tipos de discursos, serão apresentados com mais detalhes na seção em que faremos a exposição do nível organizacional.

É com base na concepção de texto discutida, textos que, por sua vez, se configuram em determinadas estruturas linguísticas, chamadas tipos de discurso, que explicitaremos mais adiante, que nós, integrantes do grupo Alter, temos desenvolvido nossas análises que incidem sobre a identificação do contexto de produção, a análise dos elementos textuais referentes aos níveis organizacional, enunciativo e semântico, como veremos a seguir.