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Concepção do trabalho do professor sob uma visão interdisciplinar

CAPÍTULO 1 – CONCEPÇÕES DE TRABALHO E DE TRABALHO DOCENTE

1.4. Concepção do trabalho do professor sob uma visão interdisciplinar

Na seção anterior, tratamos do conceito de trabalho, em geral, de acordo com a Ergonomia da Atividade, a Clínica da Atividade e o ISD. Nesta seção, partiremos desses conceitos para uma definição específica de trabalho docente.

Para Amigues (2004, p. 41), do grupo Ergape, a atividade do professor dirige-se não apenas aos alunos, mas, também, à instituição que o emprega, aos pais e a outros profissionais, buscando técnicas profissionais que se constituíram no decorrer da história e do ofício de professor. Isso significa que a atividade é mediada por objetos que constituem o sistema, sendo sócio-historicamente situada. Nesse caso, o professor precisa estabelecer e coordenar relações entre vários objetos constitutivos de sua atividade. Entre esses objetos, podemos citar as prescrições, os coletivos, as regras do ofício e as ferramentas.

Em relação às prescrições, Amigues (2004) indica que elas geralmente estão ausentes das análises sobre a ação do professor, mas desempenham um papel decisivo do ponto de vista da atividade, pois são constitutivas de sua atividade. Geralmente, as prescrições são vagas, levando o professor a redefinir para si as tarefas que lhe são prescritas a fim de decidir as tarefas que vai determinar aos alunos. Desse modo, a relação entre prescrição inicial e sua realização junto aos alunos não é direta, ela é mediada por um trabalho de concepção e de organização de um meio que apresenta formas coletivas.

No que se refere ao coletivo, de acordo com Amigues (2004, p. 43), as dimensões coletivas da atividade do professor raramente são consideradas, assim como a atividade fora da aula é frequentemente considerada resíduo do trabalho. Esse fato leva os professores a organizarem seu ambiente de trabalho, mobilizando-se para construírem uma resposta comum

às prescrições. Segundo Amigues (2004), a partir da concepção inicial, os professores, coletivamente, autoprescrevem-se tarefas, redefinindo sua classe. Para o autor, esses coletivos assumem formas diversas, por exemplo, um mesmo professor de ensino médio pertence a coletivos variados: o dos professores da disciplina, o da classe etc. Além disso, cada professor pertence também a outro coletivo mais amplo, que é o do métier. Em relação ao professor de pós-graduação, acreditamos que os resultados das análises desta pesquisa revelarão os coletivos aos quais ele pertence.

Quanto às regras do ofício, elas são aqui compreendidas como aquilo que liga os profissionais entre si, sendo consideradas ao mesmo tempo uma memória comum e uma caixa de ferramenta, cujo uso pode gerar, com o tempo, uma renovação nos modos de fazer, podendo ser fonte de controvérsias profissionais. Essas regras reúnem gestos genéricos relativos ao conjunto de professores e gestos específicos, por exemplo, da disciplina.

No caso das ferramentas, segundo Amigues (2004, p. 44), o professor utiliza mais ferramentas/artefatos concebidas por outros do que por ele mesmo, pois recorre a manuais, fichas pedagógicas, exercícios já construídos, tirados de arquivos, emprestados de colegas ou construídos por ele mesmo. O professor está inscrito em uma tradição pedagógica e na história do ofício, como, por exemplo, o uso do quadro negro, que pode ser diferente, de acordo com a disciplina ensinada. Assim, as ferramentas/artefatos que o professor utiliza estão a serviço das técnicas de ensino sendo, frequentemente, transformadas pelos professores para aumentar sua eficácia. Quando há a transformação dos artefatos em instrumento para a ação, ocorre o que Rabardel (1995) denomina gênese instrumental. Para o autor, os artefatos estão disponíveis no coletivo de trabalho e podem ser apropriados pelo trabalhador para o exercício de seu ofício, tornando-se instrumentos para a sua ação. Eles só se tornam verdadeiros instrumentos para a ação sobre o mundo e sobre o outro quando são apropriados pelo homem, podendo alcançar objetivos e finalidades por meio deles. Podemos citar o exemplo extraído de Lousada, Muniz-Oliveira e Barricelli (2010): as plataformas de ensino a distância (como o moodle, por exemplo) atualmente estão disponíveis para os cursos presenciais também. Observamos que muitos professores não utilizam essas plataformas de ensino para os cursos presenciais; alguns fazem uso mínimo da plataforma, recorrendo a apenas algumas de suas funções; outros exploram várias potencialidades das plataformas, transformando-as em verdadeiros instrumentos para o seu trabalho. Para Rabardel (1995), quando acreditamos que os artefatos ou algumas de suas funções são úteis, nós os transformamos em verdadeiros instrumentos para nossa ação sobre o mundo e sobre o outro.

Segundo Amigues (2004, p. 44), a análise da atividade ressalta a importância dos artefatos na interação entre um sujeito e uma tarefa não somente para aumentar a eficiência dos gestos, mas também como meios de reorganizar a própria atividade. Trata-se das dimensões subjetivas, relacionadas à história do indivíduo, a seu engajamento e ao desenvolvimento profissionais, sendo essas dimensões atravessadas por conflitos, dilemas e contradições, podendo-se falar em relação consigo mesmo. Mas essas dimensões subjetivas também estão atravessadas em relação aos valores, pois o professor, por exemplo, organiza o seu meio de trabalho para não deixar os alunos parados durante a aula, pensa em constituir grupos sem estigmatizar alunos em dificuldade etc.

Para Amigues (2004, p. 45), a atividade de trabalho do professor pode ser considerada o ponto de encontro de várias histórias (da instituição, do ofício, do indivíduo etc.), ponto este a partir do qual o professor estabelece relações com as prescrições, com as ferramentas, com a tarefa a ser realizada, com os outros (colegas, superiores hierárquicos, alunos), com os valores e consigo. Nesse sentido, podemos dizer que se trata de um “ponto de encontro convocado a se renovar sob o efeito da realização da ação e do desenvolvimento da experiência profissional” (AMIGUES, 2004, p. 34).

Nesse sentido, o trabalho do professor pode ser concebido como um ofício e um trabalho como qualquer outro, sendo uma atividade coletiva, que não pode ser limitada à sala de aula e às interações com os alunos, mas uma atividade em que há vários outros envolvidos, em que é necessário o uso de ferramentas, contando com uma tradição profissional, não sendo limitada à sala de aula, pois o professor realiza outros trabalhos como preparação de aula, correção de exercícios e avaliações em outro espaço que não a sala de aula.

Finalmente, apoiando-se em pesquisadores da Ergonomia da Atividade e da Clínica da Atividade e do ISD (CLOT, 2001, 2006; AMIGUES, 2004; SAUJAT, 2002; BRONCKART, 2004; entre outros), Machado (2008) desenvolve um estudo visando discutir o conceito de trabalho do professor. Para a autora, a atividade de trabalho é:

 uma atividade situada, sofrendo influência do contexto mais imediato e do mais amplo;

 prefigurada pelo próprio trabalhador, pois ele reelabora as prescrições, construindo prescrições para si e guiando-se por objetivos que constrói para si, comprometendo-se com a prescrições externas, com a situação específica em que se encontra e com os próprios limites de seu funcionamento físico e psíquico;

 mediada por instrumentos materiais e simbólicos, quando o trabalhador se apropria de artefatos socialmente construídos e disponibilizados pelo meio social;

 plenamente interacional, pois ao agir sobre o meio com a utilização de instrumentos, o trabalhador, ao mesmo tempo, é por ele transformado;

 interpessoal, havendo a interação com muitos outros indivíduos, ausentes ou presentes;

 transpessoal, pois ela é guiada por modelos do agir específico de cada ofício, sócio- historicamente constituídos pelos coletivos de trabalho;

 conflituosa, pois o trabalhador deve sempre fazer escolhas para redirecionar seu agir em diferentes circunstâncias, diante de vozes contraditórias, das prescrições etc. Por esse motivo, pode ser fonte tanto para a aprendizagem de novos conhecimentos e para o desenvolvimento de capacidades do trabalhador quanto para o impedimento dessa aprendizagem e dessas capacidades, quando o trabalhador se vê diante de situações que lhe tiram o poder de agir, o que o pode levar ao sofrimento, fadiga, estresse e até mesmo ao abandono de agir no seu trabalho.

Machado (2008), considerando essas características do trabalho em geral, apresenta, com base em Clot (2006), o esquema da Figura 1.2, que ilustra os elementos básicos do trabalho do professor em situação de sala de aula, considerando as múltiplas relações sociais existentes em determinado contexto sócio-histórico, inserido em um sistema de ensino e em um sistema educacional específico.

Contexto sócio-histórico particular

Sistema Educacional Sistema de Ensino Professor Objeto Outrem

FIGURA 1.2. Elementos constituintes do trabalho do professor em situação de sala de aula.

Fonte: Machado (2008).

Considerando que o objeto de trabalho do professor seja criar um meio propício para a aprendizagem de conteúdos disciplinares e o desenvolvimento de capacidades específicas, não se pode dizer que o trabalho do professor se limita ao espaço da sala de aula, como já mencionado, pois, para o seu trabalho, as tarefas de planejamento e avaliação são essenciais. Em vista disso, mais recentemente, Machado (2010) desenvolve o esquema da Figura 1.3, que representa sumariamente essas outras atividades em que os elementos constituintes do

Instrumento

Os alunos, os pais, os colegas, a direção, os outros Organizar um meio que

possibilite a aprendizagem de conteúdos disciplinares e o desenvolvimento de capacidades específicas. Sistema didático Materiais ou simbólico s Artefatos

trabalho podem ser ilustrados, considerando as múltiplas atividades que podem ser desenvolvidas pelo professor. Nesse esquema, OUT representa o outrem e OBJ o objeto.

FIGURA 1.3. O conjunto possível de atividades do trabalho do professor que pode

ser detectado nas pesquisas. Fonte: Machado (2010).

Cada triângulo representa uma atividade desenvolvida pelo professor que é mediada por um artefato que, ao ser apropriado como instrumento, influencia no agir do professor. Por exemplo, uma atividade de preparação de aula poderá ser mediada por livros, computador, lápis/caneta, tendo como outrem os alunos e outros professores presentes, os alunos e professores da memória do ofício, e o objeto poderá ser planejar uma aula que possibilite desenvolver determinadas capacidades específicas dos alunos. Assim, para cada tarefa desenvolvida pelo professor, os elementos serão ou poderão ser diferentes, havendo uma multiplicidade de elementos que fazem parte do trabalho do professor.

Desse modo, o trabalho do professor consiste em uma mobilização, pelo professor, de seu ser integral (físico, psíquico) nas situações de sala de sala, planejamento de aula, de avaliação, por exemplo, para criar esse meio “que possibilite aos alunos a aprendizagem de um conjunto de conteúdos de sua disciplina e o desenvolvimento de capacidades específicas relacionadas a esses conteúdos” (MACHADO, 2008, p. 93). Esse trabalho é orientado por um projeto de ensino prescrito por instituições superiores, com a utilização de instrumentos obtidos do meio social e na interação com “outros” envolvidos, direta ou indiretamente, na situação, sendo peculiar a esse trabalho uma cascata de prescrições hierárquicas.

Machado (2008) considera, então, que para o professor desenvolver de forma plena seu trabalho, com efeitos positivos para si, é essencial que tenha recursos materiais e simbólicos, internos e externos para reelaborar, frequentemente, as prescrições, readaptando- as de acordo com a situação, as reações, interesses, motivações, objetivos e capacidades de seus alunos; de acordo com seus próprios objetivos, interesses, capacidades e recursos – corporais, sociais, institucionais, cognitivos, materiais, afetivos etc. e, ainda, “de acordo com as representações que mantém sobre os „outros‟ interiorizados e sobre os critérios de avaliação que esses utilizam em relação a seu agir” (MACHADO, 2008, p. 93). Além disso, é necessário manter ou reorientar o seu agir, de acordo com cada momento, apropriando-se de artefatos, transformando-os em instrumentos por si e para si, quando considerá-los úteis e necessários para o seu agir, instrumentos esses selecionados para cada situação. Para a realização do agir, deve utilizar modelos de agir sócio-historicamente construídos pelo coletivo de trabalho, encontrando soluções para os diversos conflitos que possam surgir (MACHADO, 2008, p. 93-94).

Alguns elementos do trabalho do professor mencionados anteriormente parecem-nos ser mais específicos do professor da educação básica (nível fundamental e médio, no caso do Brasil), já que um dos elementos (outrem) são os pais. Acreditamos que no final desta pesquisa poderemos trazer uma definição específica para o trabalho do professor de nível superior, no caso, o de pós-graduação.

Foi com base nas concepções discutidas que desenvolvemos nossa tese com o objetivo de identificar as representações sobre o trabalho docente e as dificuldades para a realização de sua atividade, construídas nos e pelos textos que tratam do trabalho do professor de pós- graduação.

Concluída nossa definição dos termos trabalho e trabalho docente, no próximo capítulo faremos uma exposição do contexto sócio-histórico em que a pós-graduação no Brasil foi implantada e as transformações que vêm ocorrendo até os dias atuais, objetivando compreender melhor o trabalho do professor de pós-graduação. Além disso, trataremos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), que é o órgão avaliador do trabalho do professor de pós-graduação.