• Nenhum resultado encontrado

Para abordar melhor a relação dos imigrantes brasileiros com a sociedade portuguesa, escolhemos alguns conteúdos do jornal Sabiá, produzido pela associação imigrante Casa do Brasil de Lisboa, durante a década de 1990. A associação e o jornal serão objeto d uma investigação mais detalhada na segunda parte da tese. No entanto julgamos ser importante, ainda neste capítulo, utilizar algumas informações para alargar o tema da interação dos imigrantes brasileiros que viveram a década de 1990 em Lisboa. Por essa razão, selecionamos questões relacionadas com o espaço e os imigrantes brasileiros, para aumentar as possibilidades de análises, a partir desse tema durante o período determinado. Por meio de partes diferentes do jornal podemos problematizar estas questões.

A História enquanto disciplina tem dado pouca atenção a essas relações entre os lugares e as sociabilidades, como foi referido, todavia, novos estudos têm abordado mais seriamente estas questões. Leituras realizadas por outras ciências têm despertado novas interpretações como no caso do livro A Invenção do Cotidiano, de Michel de Certeau. Utilizado por muitos antropólogos e geógrafos para tratar as questões do espaço, destacamos aqui um trecho rico dessa obra sobre o assunto:

"Os lugares são histórias fragmentárias e isoladas em si, dos passados roubados à legibilidade por outro, tempos empilhados que podem se desdobrar mas que estão ali antes como histórias à espera e permanecem no estado de quebra-cabeças, enigmas, enfim simbolizações enquistadas na dor ou no prazer do corpo. “Gosto muito de estar aqui” é uma prática do espaço este bem-estar tranquilo sobre a linguagem onde se traça um instante como um clarão" (Certeau pp.189-190).

Os lugares e os sentimentos, como afirmou Certau, fazem parte da vida cotidiana dos seres humanos, independentemente de quaisquer condições em que eles se encontram, sejam escravos, como no seu estudo, ou imigrantes. Cada indivíduo traz, dentro de si, as mais variadas referências e

histórias que tornam um local agradável ou desagradável. Por exemplo, na banda desenhada ao lado do personagem Juca Brasuca55:

55 Na década de 1990 houve uma banda desenhada, publicada no jornal associativo da CBL, chamada Juca

Brasuca que será apresentada e analisada com mais detalhes no segundo capítulo. Entretanto, devido ao tema das

relações entre os imigrantes e o espaço em que ele está inserido, vamos analisar algumas de suas histórias. Figura 2 Jornal Sabiá número 18, dezembro/janeiro 1993/1994, p.8

119 Vemos o personagem se relacionando com a sua memória afetiva despertando nele o sentimento de saudade ao flanar pela Área Metropolitana de Lisboa. A calçada de ladrilho em calcário branco e preto e a casa são associadas a Ouro-Preto, em Minas Gerais, cidade com herança colonial portuguesa que mantém a mesma arquitetura da época da mineração. No quadro seguinte o personagem está em frente ao Cristo-Rei em Almada e lembra-se do Cristo Cordovado no Rio de Janeiro.

Na último quadro Juca diz “Rio-Niterói”, fazendo referência à ponte que liga as cidades do Rio de Janeiro e Niterói, comparando-a com a ponte 25 de Abril que liga as cidades de Lisboa e Almada. Esta relação estabelecida entre o personagem Juca Brasuca e a arquitetura ao redor é um tipo de estratégia para lidar com a estranheza do novo lugar, buscando na memória afetiva ligações ou pontes com um passado confortável. A história acima reflete este aspeto, pois de alguma forma esses locais lhe traziam saudade. Em relação ao prazer relacionado com o lazer vamos analisar outra história do Juca Brasuca publicada em junho de 1992.

Nos dois primeiros quadros dessa banda desenhada apresentam-se momentos de interação do personagem com a sociedade ao seu redor, se alimentando e depois num estádio de futebol. No terceiro quadro ele se encontra em sua vida privada, vendo uma novela, Pantanal, cuja a personagem principal se chamava Juma, produzida pela rede de televisão brasileira Manchete. No final da história, a satisfação do personagem ao dizer “Adoro Portugal” poderia contrastar com as atividades ligadas ao Brasil que ele realizou durante a história.

120

Como foi mencionado na introdução, devemos analisar as fontes históricas sem distinção, um texto não é melhor do que uma foto, ambos são registros históricos produzidos por seres humanos. Além do humor na situação de fazer “coisas brasileiras” em Portugal e gostar disso, podemos interpretar esta banda desenhada como um diálogo do autor com os imigrantes brasileiros que liam o jornal, dizendo-lhes que existem opções para manter os laços com o Brasil e assim gostar mais de estar em Portugal ou de que existem muitas semelhanças os dois países.

Porém propomos pensar que estas foram estratégias desenvolvidas pelo imigrante brasileiro Juca para se relacionar com Portugal de uma maneira que lhe proporcionasse prazer56. Ele não teve que abrir mão de antigos padrões, da sociabilidade, da alimentação e lazer, por estar fora do Brasil. A criação dessas estratégias de adaptação ao lugar imigrado são importantes formas de conseguir vencer a solidão existente na vida de alguém novo naquele território.

Ainda utilizando o jornal da associação Casa do Brasil de Lisboa, mencionamos uma coluna chamada Pé na Estrada no Sabiá, que abordava lugares turísticos a serem visitados por brasileiros, mas também em relação aos costumes e a sexualidade, como podemos notar no trecho selecionado:

"Vem aí o verão. Finalmente. Um conforto para os milhares de brasileiros que tão dificilmente se adaptam às situações climatéricas das terras de Cabral e Camões. O inverno nem é tão rigoroso assim, mas é longo. Aos primeiros raios de Sol da primavera se nota uma sensação de alívio na galera. Fica todo mundo louquinho pra ir pra praia ver a moçada de topless. E o pior é que nenhum português acredita que no Brasil não tem topless" (Sabiá, maio de 1992, p.4).

Antes de convidar o leitor para um passeio nas praias alentejanas, o autor destaca duas questões em que a sociedade portuguesa em geral não se imagina tão diferente em relação ao Brasil. Primeiro, a dificuldade dos imigrantes brasileiros em se adaptar ao longo inverno português contrariamente ao que acontece nas suas terras de origem. Além disso, existe uma crítica do autor sobre outro assunto ligado ao clima e à maneira de agir: a prática do topless no Brasil é crime. A legislação brasileira tipificava tal ato como atentado violento ao pudor57,

56 Isaías era um futebolista brasileiro que se destacou por grandes atuações pelo Sporting Lisboa Benfica,

participando em 178 jogos e fazendo 71 golos entre os anos de 1990 e 1995.

57 O código penal brasileiro de 1940, que esteve em vigor ate 2009, define "Ato obsceno" - Art. 233 - Praticar

ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.

121 mas existe o senso comum de que os brasileiros têm uma sexualidade mais latente do que os portugueses.

Esta herança colonial presente na mentalidade portuguesa sobre a sexualidade dos povos colonizados hipersexualizados é um estereótipo. O topless ajuda a desconstruir estas afirmações de que o colonizado é naturalmente mais sensual que o colonizador, o qual seria mais puritano e moralista. Nestes pequenos exemplos podemos perceber a complexidade dessas imagens e de como existem várias ações que desconstroem esses estereótipos.

Outro texto da coluna Pé Na Estrada retrata o sentimento de tentar estabelecer conexões entre a paisagem portuguesa e a deixada no Brasil. Aloizio Filho convidou o leitor para uma visita ao Parque Nacional do Gerês, justificando como aquele lugar poderia estar em uma montanha de Minas Gerais58:

"Pela fotografia eu já podia imaginar que uma cachoeira assim tão bela, digna de enfeitar qualquer montanha de Minas Gerais, tinha de estar localizada num lugar muito especial. Assim, como um mineiro saudoso tentando reviver felizes emoções do seu passado, encontrei um dos recantos mais bonitos do país: a serra do Gerês, bem no alto de Portugal, na divisa com a Galiza" (Sabiá, nº 2, junho, de 1992, p.6).

Ao estabelecer a visita à cachoeira do Parque do Gerês, com a possibilidade de reviver as emoções do passado, o autor reafirma a questão discutida em relação ao Juca e à paisagem, de que existe na composição da memória e do ato de lembrar a questão do espaço onde o imigrante se encontra e daí as tentativas de estabelecer relações entre as paisagens portuguesas e brasileiras

O Sabiá criou um box no final da sua edição para divulgar lugares a visitar em Lisboa, chamou tal secção de: “Dando um rolê” (passeando, “dando uma volta”). Ele funcionou por apenas cinco edições seguidas. Apesar da sua brevidade, se levarmos em conta outras secções que tiveram mais de 30 ou 40 edições, chamamos atenção para esta parte do jornal, para a dimensão espacial desta lista de lugares onde o imigrante brasileiro deveria dar um rolê: dentro desta lista estão restaurantes, bares, danceterias, galerias de arte e ginásios onde praticar capoeira. Existe uma relação direta entre esses nomes e os anunciantes no jornal Sabiá, deixando transparecer que até a sua linha editorial, por vezes, cedeu espaço a angariar fundos para a produção do jornal.

58 Na geografia brasileira não existe nenhuma montanha e sim apenas algumas serras, mas no senso comum

122

Mesmo que essas sugestões tenham sido motivadas em troca de pagamentos de alguma quantia de dinheiro, aqui destaca-se a questão de que essas atividades comerciais, como restaurantes, bares, danceterias, buscaram ou aceitaram vincular sua imagem com a comunidade de imigrantes brasileiros em Portugal. A maioria dos anúncios tem atividade em Lisboa, mas existe também outros lugares para além da capital do país. Por exemplo, Cascais aparece em segundo lugar no número de locais para se dar um rolê.

O jornal Sabiá, ao colocar essas informações, possibilitava ser uma ponte entre os imigrantes brasileiros em Portugal, ao disponibilizar locais de sociabilidade que poderiam ser compartilhados. Este exemplo de serviço ou informação no jornal da CBL, permite questionar os autores que o classificam apenas como um jornal político ou engajado na luta por direitos dos imigrantes brasileiros. Do mesmo modo, como a comunidade de imigrantes brasileiros em Portugal é diversificada, o mesmo acontece em relação à produção do Sabiá e também das atividades da CBL, como iremos explorar na segunda parte da tese. O espaço e o imigrante são dois temas que podem ser explorados de diversas formas, como foi demonstrado. Aliás, existem dimensões pouco trabalhadas como a questão da saudade e da construção de novos locais que tenham significado para esses imigrantes que devido ao seu deslocamento se encontram em uma situação latente de busca por novas relações.