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Como destacámos no terceiro capítulo, no Brasil, a década de 1980 foi marcada pela tentativa de grandes planos económicos executados pelo Governo Federal, que buscava resolver a questão da inflação alta e do baixo crescimento económico do país. Esses planos criaram muita expectativa na população, os meios de comunicação e o governo incentivaram a população a participar das mudanças, houve durante um período os chamados “fiscais do Sarney”, um movimento civil de controle dos preços praticados pelos estabelecimentos comerciais. No entanto, nenhum desses planos económicos conseguiu cumprir suas metas a longo prazo, gerando mais problemas à economia, que estava em dificuldades desde a crise do petróleo na década de 1970.

Em função deste cenário de desilusão, poucas oportunidades de emprego e crescimento, os estudos migratórios brasileiros elencam a presidência de Fernando Collor como o momento chave na história do Brasil para o início da saída dos brasileiros para o mundo86. Esta primeira vaga de imigrantes brasileiros deixou o país em busca de novas oportunidades, processo, como já mencionámos, complexo e diverso. Outro fator importante nessa questão foi a dimensão da primeira eleição direta para presidente da República no Brasil – depois de 29 anos – no imaginário de todos os brasileiros. Mesmo à distância, esse evento teve uma penetração e repercussão muito forte na mentalidade dos brasileiros.

Essas referências nos auxiliam a compreender as motivações da preocupação dos imigrantes brasileiros da CBL em acompanhar a política nacional. Especialmente no caso do processo de impeachment de Collor, as páginas do Sabiá foram repletas de repercussões envolvendo esta questão. Cronologicamente, a primeira vez que este tema apareceu no jornal foi na edição número 3, em julho de 1992, na coluna Nós da política, de autoria de Carlos Viana. Com subtítulo Ética & Política: o “Collorgate” existe uma breve introdução argumentando que não se pode fugir das denúncias sobre a corrupção no Brasil que estampam os jornais portugueses. O autor destaca que enquanto brasileiro “é vergonhoso ver o nome do Brasil associado a tanta roubalheira” (p.3) e continua uma série de críticas a essa situação, mas termina o texto dizendo que existem pontos positivos a serem destacados, que reproduzimos aqui:

86 Nas minhas entrevistas, dois dos imigrantes citaram o confisco de Collor como motivação para imigrar em

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"Em primeiro lugar, o papel da imprensa e de quem tem coragem de denunciar. Contra o mar de lama, insurgem-se muitas forças dignas da sociedade brasileira, que sabem que a grande meta é acabar com o fim da impunidade dos poderosos. Assiste-se atualmente a um fenómeno importante: a CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) encarregada de investigar o escândalo PC está sendo na verdade empurrada pela opinião pública e pela crescente avalanche de denúncias canalizadas pela imprensa. Os deputados, muitos dos quais (se não a maioria) tendo o "rabo preso", são forçados a prosseguir os trabalhos de investigação e tomada de depoimentos" (Sabiá, ano 1, número 3, julho de 1992).

A imprensa brasileira teve neste processo de impeachment um papel muito destacado, como já foi mencionado no primeiro capítulo, e Carlos Viana teve a sensibilidade de perceber este papel. Na sua coluna no mês seguinte, além de explicar mais detalhes sobre os acontecimentos do processo, o autor conclui com a seguinte sugestão aos seus leitores:

“Economize uns escudos e aplique-os em imprensa brasileira em especial, Veja e Isto É. Mantenha-se informado. Grandes mudanças podem estar se gestando no nosso sofrido Brasil. Há luz no fim do túnel. Sempre há.” (Sabiá, ano 1, número 4, agosto de 1992, p.3).

Essa proposta de economizar escudos para se informar melhor por meio da imprensa brasileira é reveladora de que havia em 1992 locais onde se podia comprar essas revistas. Para Carlos Viana, o leitor da sua coluna deveria estar mais atento às notícias do Brasil através da leitura das revistas semanais Veja e Isto É. No editorial deste mesmo número, houve o elogio à atuação da imprensa na investigação e crítica durante a apuração da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). Além disso, houve a introdução de um outro tema, muito caro ao imigrante, a desistência desse em relação ao Brasil, com contra-argumentação do editorial feita da seguinte forma:

"Mas já vimos muitos sinais de que não é assim. Já vimos que até nos intervalos de silêncio há sempre um sintoma involuntário de cidadania. Pode ser o requebrado distraído à cadência mais próxima do samba ou a procura instintiva de uma caixa de fósforos com que se diga "tou aí" à batucada. Pode estar na cumplicidade com que se fala a mesma gíria, se conta a velha piada ou se pendura em algum canto uma fitinha do Senhor do Bonfim" (Sabiá, ano 1, número 4, agosto de 1992, p.1).

Durante o mês de agosto de 1992, no Brasil, houve uma série de eventos desencadeados pelos trabalhos desenvolvidos pela CPI. Em 13 de agosto, o então presidente Collor conclamou os seus seguidores a vestirem verde e amarelo em apoio ao seu governo no domingo seguinte. Entretanto os adversários do presidente vestiram preto e pintaram os rostos de verde e amarelo, e iniciaram uma série de manifestações públicas de milhares de pessoas nas grandes cidades do país, pedindo o impeachment do presidente. Tais manifestações foram acompanhadas de repercussão na imprensa ao redor do mundo. A comunidade imigrante

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brasileira se manifestou no dia 7 de setembro, aniversário comemorativo da independência do Brasil de Portugal.

A Casa do Brasil de Lisboa também participou deste evento e convocou uma manifestação em frente à Embaixada do Brasil em Lisboa, na Estrada das Laranjeiras. Com este momento de ação pública na sociedade portuguesa, proposto e realizado pela CBL, existiu uma tomada de posição firme em relação à política no Brasil. Na edição do Sabiá de setembro de 1992, o editorial na primeira página intitulava-se Emigrar não é desistir:

"Uns dizem que foram 150. Outros, 200. Outros, mais de 300. Entre números, um grupo de brasileiros exerceu o seu direito de cidadania. Saiu do limbo, que é o mesmo que dizer de cima do muro. Gritou indignação, juntou o seu protesto ao coro que, cada vez mais alto, se faz ouvir no Brasil e mostrou ao povo português que tem vergonha de ter um presidente ao tamanho e à grandeza do país.

Sendo apartidária, a Casa do Brasil não é apolítica D. Paulo Evaristo Arns, Cardeal- Arcebispo de São Paulo, disse uma vez que tudo na vida é um ato político. Omitir-se não é um ato menos político do que dizer sim ou não. Calar é tão carregado de sentido quanto manifestar-se.

A Casa do Brasil também não é só figura jurídica para aparecer nos jornais. Ela é gente, representa já um grande número de pessoas, que dizem o que esperam dela e que querem que ela faça. Por isso, a manifestação do 7 de Setembro foi decidida em reunião geral e por esmagadora maioria dos participantes. A sua legitimidade vem daí.

Nenhuma atitude é uma atitude isolada. Qualquer que seja a sua dimensão, vai fazer parte de um todo. A vontade coletiva acaba sendo o somatório de pequenas vontades individuais.

Não importa qual tenha sido o número de manifestantes neste 7 de Setembro em Lisboa. Este Protesto somou-se ao de muitos milhares de brasileiros que, no Brasil e fora dele, repudiam a impunidade e o abuso de poder. E mostrou que emigrar não é desistir.

Somos brasileiros, provamos o quanto o Brasil tem importância para nós, sabemos dizer "presente" quando é preciso e continuamos a cantar o Hino Nacional com muito orgulho." (Sabiá, n.° 5, setembro, 1992, p.1)

Com um forte teor emocional, o texto reafirma a ideia de que o imigrante que saiu do Brasil não abandonou o país ou o ama menos. Sentimento este talvez ligado às campanhas nacionalistas da época da ditadura civil-militar, que usava massivamente slogans do tipo “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Existe uma clara glorificação da manifestação e uma afirmação de sentimento de amor pelo país e de que se pode lutar, mesmo estando fora do Brasil. Esse sentimento é também compartilhado na banda desenhada de Juca Brasuca nesta mesma edição, que passamos a analisar.

185 O personagem é intersetado por um português que lhe pergunta se a camisa preta se referia ao luto pela morte de alguém, quando na verdade a camisa preta era motivada pelos acontecimentos no Brasil que transformaram a cor preta no sinónimo de luta contra o governo Collor. Como já foi mencionado, Juca Brasuca não lhe responde diretamente e diz: “Se tiver um bom motivo, lute!”. O autor estabelece assim uma relação entre o preto do luto e a luta do imigrante quando este decidir que existe uma motivação para tal ação.

Vale lembrar que, de acordo com a entrevista já citada do personagem Juca Brasuca, o seu motivo para imigrar foi o congelamento das poupanças realizado pelo presidente Fernando Collor no seu primeiro plano económico. Em 29 de setembro de 1992, foi aprovada a votação para o impeachment do presidente Fernando Collor na Câmara dos Deputados Federais. Esse momento de vitória dos “caras pintadas” foi retratado de uma maneira mais cética nas páginas do Sabiá, ao contrário da empolgação da edição número 5 de setembro, a edição seguinte. O tema do editorial foi sobre a nova lei de residência de estrangeiros em Portugal, o de Nós da política foi sobre a chacina ocorrida no Centro Prisional do Carandiru em São Paulo, o único texto analisando o momento foi “Vale a pena acreditar na mudança” e também manteve o tom de ceticismo e deceção ao constatar no final que Paulo Maluf liderava as sondagens para a prefeitura de São Paulo.

O personagem Juca Brasuca também reflete sobre todos os acontecimentos posteriores ao momento histórico em que, pela primeira vez no país, um presidente eleito foi afastado do poder de maneira democrática respeitando as leis do Estado democrático em vigor. E ainda parodiando o poema de Carlos Drummond de Andrade "E agora José", Jô faz a reflexão do personagem se dirigindo diretamente ao leitor.

A euforia da vitória foi também deixada de lado por ele e os problemas em relação a Portugal voltam a ser tema quando o personagem, com a Ponte 25 de Abril às margens do

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Tejo em fundo, diz: "Bom, não adianta vir pra cá, porque vai ficar sem visto de residência...." (Sabiá, n.° 6, outubro, 1992, p.8). Agora a luta dos imigrantes brasileiros voltou a ser a batalha pelo visto de residência, uma vez que acabavam de sair novas diretrizes sobre o assunto.

Este estudo de caso, relacionado com o processo de impeachment do Governo Collor, foi realizado para melhor podermos interpretar a ação da CBL. Analisando este período podemos perceber que não existiu uma postura rígida da associação. Ela e seus integrantes, nomeadamente os autores de colunas no Sabiá, foram-se posicionando de acordo com os acontecimentos do Brasil. Motivados por eles, atuaram na esfera pública portuguesa quando entenderam que era necessário na manifestação em frente a Embaixada do Brasil em Lisboa. Entretanto foi relevante, como um mês após a vitória do impeachment, o Sabiá, enquanto unidade editorial, voltou suas atenções para as questões relativas aos imigrantes, como a do visto de residência. Existiu uma coerência de todos neste aspeto, mesmo não existindo uma redação enquanto espaço onde se construía o jornal. A convivência dos imigrantes nos momentos de lazer e de trabalho na Casa do Brasil de Lisboa serviu neste caso para cristalizar uma opinião geral da associação sobre os desdobramentos do impeachment de Collor.

Este breve estudo sobre o Sabiá nos permite refletir os complexos sentimentos dos imigrantes em relação à política interna de seu país de origem. Pois ao mesmo tempo em que existe o interesse e a preocupação com o que está acontecendo, há uma urgência nos assuntos ligados à nova vida deste sujeito em deslocamento. A ausência destes sujeitos na sua terra natal abre possibilidades para serem vistos como desertores ou desistentes em relação às questões internas. No caso da CBL, houve uma grande preocupação para informar o imigrante brasileiro que consumia o Sabiá, e principalmente criar uma imagem de que emigrar não é desistir, por meio dos textos, de atividades, de banda animada, entre outros conteúdos do jornal.