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"Eu não sou imigrante. Sei que você tá fazendo a entrevista comigo, como sendo imigrante. Não é que eu seja superior, longe disso, mas eu não sou imigrante é que eu não sou aquele imigrante, que não paga a Globo porque é 16 euros, não vai no cinema por que são 5 euros. Eu sempre fui de férias pro Brasil." (João, 49 anos, em Lisboa desde 1991)

Além das já referidas questões económicas relativas à década de 1990 em Portugal, buscamos também outro tipo de análise para explicar esse período e o modo como os imigrantes brasileiros se relacionaram com essas mudanças. Selecionámos três momentos para demonstrar as grandes mudanças pelas quais o país atravessou ao longo da década. O primeiro refere-se a uma campanha publicitária financiada pelo Governo português para combater os invícios dos portugueses, em 17 de fevereiro de 1992. Nela o Estado tentava mudar os hábitos dos cidadãos, que julgava equivocados. O segundo momento ocorre com o grave assassinato de Alcindo Monteiro no Bairro Alto por skinheads, em 1995, em uma clara demonstração de racismo exacerbado de uma parte da sociedade e as consequências disso. O terceiro momento refere-se à a abertura da EXPO98, que inaugurou a modernidade no país, segundo a imprensa e a propaganda estatal.

Esses acontecimentos não podem ser vistos como definidores de tudo o que aconteceu na década, entretanto nos ajudam a exemplificar quais foram as situações pelas quais Portugal passou então. E também como isso afetou o cotidiano dos imigrantes brasileiros no país. Ao

42 No Japão houve uma verdadeira invasão de bancos brasileiros buscando atender os imigrantes brasileiros, como demonstra (Dias, 2014), nos EUA também houve essa mesma questão (Gláucia, 1997), em Portugal houve um investimento do Banco do Brasil nessa área e a realização de acordos dos bancos brasileiros com os portugueses.

103 longo dessa década ocorreram muitas transformações e o discurso sobre o sucesso do país foi sendo construído em torno da realização desse evento internacional.

Na década de 1980, os brasileiros não eram tão presentes na sociedade portuguesa, mas isso começa a mudar. Em 1991 ocorreu a fundação da Casa do Brasil de Lisboa, primeira associação de imigrantes brasileiros em Portugal. Outra importante iniciativa foi a criação da Associação Brasileira de Odontologia secção Portugal (ABO-P) destinada a auxiliar os profissionais de odontologia no país e tomar posição sobre esta questão em relação ao governo português e também ao governo brasileiro. Estas duas entidades civis foram bastante ativas ao longo da década, como vamos verificar ainda nesta tese de doutoramento.

A representatividade dessas associações não é total, como nunca poderia ser. Como procurámos descrever no primeiro capítulo, as identidades são múltiplas e contraditórias, logo elas nunca poderiam abarcar todo o contingente de brasileiros residentes em Portugal. Entretanto as duas conseguiram na disputa pública por negociações de identidades serem uma voz que repercutiu nos meios de comunicação. Essa quebra da invisibilidade foi fruto de uma batalha dessas entidades e também dos personagens envolvidos durante esse processo de afirmação do imigrante brasileiro, enquanto participante da sociedade portuguesa.

Após a sua entrada na CEE, Portugal passou a se preocupar em realizar comparações entre a sociedade portuguesa e a Europa, nos mais variados quesitos, económicos, sociais, culturais, entre outros indicadores. Apesar da pujança económica do período, Portugal ainda estava longe dos parâmetros dos outros parceiros europeus. Afinal a herança histórica do Estado Novo, de altas taxas de analfabetismo, censura e perseguição política, criaram grandes diferenças de hábitos e cultura entre a população portuguesa.

Fazer parte da CCE, e depois da futura moeda única, implicava para Portugal cumprir uma longa lista de exigências em relação a índices económicos e de desenvolvimento, entre outras coisas. Horta reflete sobre as implicações dessa adesão de Portugal à União Europeia em relação aos PALOP: “Para Portugal, a harmonização das políticas europeias relativas à

imigração implicou, inicialmente, a imposição de medidas rígidas relativamente à entrada de cidadãos das ex-colónias. Neste novo contexto, os que tinham sido considerados membros de pleno direito e “parte integral” da Nação portuguesa eram, agora, ironicamente, o “Outro”, cujos laços históricos e culturais com Portugal eram negados” (2008 p.348).Essa mudança e a criação desse “outro” como

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Durante o governo de Aníbal Cavaco Silva, de acordo com João Pedro George houve uma sistemática tentativa de integrar Portugal no resto da Europa, por meio da propaganda.

“A necessidade de internacionalização e a perspetiva da cultura como um dos grandes fatores de integração da cultura como um dos fatores de integração do país na CEE (e no mundo) levaram os governos a conceber a cultura como uma espécie de «embaixada» ou como um instrumento político de prestígio externo e, simultaneamente, de propaganda interna.” (2015, p.184). Umas dessas tentativas foi o revelador caso da campanha publicitária financiada pelo governo, chamada «Portugal não é só teu». O jornal Público de 17 de fevereiro de 1992, utilizou duas páginas (18 e 19) para explicar a campanha que constituiria em 30 spots (10 para cada humorista) com o seguinte parágrafo de conclusão:

"Figura fundamental num “Portugal de sucesso”, o português ainda mantém costumes pouco condizentes com a “modernidade”. Que vão do simples cuspir na rua, ao jogar à bola nas praias, passando pelo mau comportamento nos transportes públicos ou no dia-a- dia no trânsito nas cidades. Preocupado com estas faltas de civismo mais vulgares, o Governo decidiu investir numa campanha televisiva que possa alterar um pouco as mentalidades. O humor de Herman, Solnado, Nicolau é a arma contras os "incívicos»" (Público. 17 de fevereiro de 1992, p.18).

O jornal em nenhum momento discorda da campanha, muito pelo contrário, incentiva a ideia de que existe um “Portugal de sucesso” que é moderno e, por outro, lado um tipo de português que não é moderno por não ter civismo. Esse exemplo, reforça a postura do Governo do Primeiro-Ministro Cavaco Silva como provedor dessa nova imagem de Portugal enquanto participante da Europa sendo tudo isso sinónimo de modernidade. E também como a crítica ao desfasamento de alguns portugueses com a modernidade, e exigência de mudanças na população serem aceitas por meios de comunicação nacional, como o jornal Público.

Ainda sobre a relevância de Portugal conseguir ser comparado com os países europeus, existe outro caso que pode ser utilizado enquanto paradigma de evolução ou involução enquanto sociedade moderna. Foi a mudança no papel das migrações transnacionais: o país deixou de ser maioritariamente um país de emigração, para ser um país de imigração. Como escreve Rui Ramos: “Só a partir de 1993 se atingiu saldos migratórios positivos, juntando-se Portugal finalmente aos países da Europa Ocidental atractivos para o resto do mundo. Entraram brasileiros (14,9% do total de imigrantes), cabo-verdianos (14,3%) e angolanos (7,9%) – numa inversão da direção dos fluxos populacionais no espaço do antigo império” (p.767).

105 Esse facto ocorreu em 1993, uma data pouco utilizada nos estudos migratórios, a maioria dos quais utiliza o momento de maior fluxo de imigrantes como baliza temporal43.

Além dessa transformação, acontecida em 1993, o autor fez uma construção de raciocínio segundo a qual receber imigrantes é um fator positivo e consequentemente ceder imigrantes é algo negativo. Um dos fatores da modernidade portuguesa é receber imigrantes e não mandar emigrantes para outros lugares, como apresentámos na introdução. Até no debate político que antecede as eleições, quando apenas as questões de mais relevância são colocadas em jogo esta ideia está presente. Na introdução da obra Os imigrantes e a imigração aos olhos dos portugueses (2012) escreve-se:

"País de navegadores, de oceanos e de sonhos, Portugal olha de forma persistente e nostálgica para o seu passado, em busca de uma identidade a um tempo heroica e melancólica. Neste imaginário identitário, o mar surge como a grande metáfora do risco e do desconhecido, que os portugueses, a despeito da sua reduzida dimensão, souberam resgatar ao domínio do inconquistável. Metáfora das qualidades de um povo que, ao partir, afinal se encontra. Hoje, o vasto e desconhecido mar do século XV reveste-se de outros significados: os grandes mercados internacionais, a sociedade digital, a industrialização e a produtividade, a sobrevivência na (e da) zona Euro… Tal como então, vivemos tempos de crise e transição, não só económica como simbólica, de auto-estima e identitária. E também como então, partir é a forma de muitos portugueses se reinventarem: a diáspora portuguesa no mundo, tão antiga, assume hoje outros contornos, sendo protagonizada por novos actores, como os jovens mais escolarizados. Mas, e também como acontecia no passado, em que os navios inundaram Lisboa, porto comercial, com gentes de todo o mundo, Portugal é também um porto de chegada de muitos." (2012, p.15)

Neste trecho temos ricas referências ao passado heroico de Portugal e às navegações. Dessa forma a construção da memória e da identidade portuguesa consegue valorizar o passado, sem mencionar a consequência das navegações que foram a conquista de outros territórios e a exploração da população que lá vivia. Além dessa questão, verificamos a atualidade da questão migratória portuguesa, fazendo dos os emigrantes de novo um tema atual,44 motivado pela crise económica e a subida do desemprego. Como se diz na referida

passagem: “sendo protagonizada por novos actores, como os jovens mais escolarizados”.

43 Como destacamos anteriormente, as migrações são realizadas muitas vezes por meio de redes de contactos

entre os imigrantes que estão no estrangeiro e os que estão no país de nascimento. Por isso destacamos que a grande afluência de brasileiros na década de 2000 foi possível em grande parte por esses outros imigrantes que chegaram nas décadas de 1980 e 1990, nem sempre estudados nas obras sobre as migrações.

44 Essa questão em Portugal é muito importante, as emigrações e imigrações são temas de grande importância no

debate público, como destacamos na introdução, poderíamos privilegiar outros momentos como a missa dos imigrantes em 13 de agosto em Fátima. A Igreja Católica, devido ao grande fluxo de imigrantes portugueses, que retorna ao país no período das férias de verão europeu, realiza uma missa especial para este público, celebrando em 2015 foi celebrada a 43º Semana Nacional das Migrações.

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Este alerta para a importância dos emigrantes e sua importância política e social não nega de modo algum os fatos. De acordo com a especialista em migrações Lucinda Fonseca

“Os fluxos de entrada de imigrantes atingiram uma dimensão sem precedentes, verificando-se que, entre 1996 e 2006, o stock de estrangeiros documentados registou um aumento de 264.212 pessoas, ou seja, uma taxa de crescimento de 152,8%” (p.42). Muitos discursos de autoridades, políticos e jornalistas utilizam uma narrativa sobre as posturas dos portugueses em relação à receção dos imigrantes, baseada na obrigação de tratar bem os emigrados que chegam, tal como foram bem recebidos os emigrantes portugueses ao pelo mundo. Sobre a relação dos governos com a legislação do período a autora Sónia Pires, no seu capítulo “Imigração e governos constitucionais em Portugal” aponta o ano de 1993 como um ponto de viragem:

"Serão promulgados vários diplomas normativos que, por um lado, parecem demonstrar interesse por parte do governo em integrar os imigrantes, e, por outro lado, parecem demonstrar um certa desconfiança e vontade de controlar o “outro”. Há neste XII Governo Constitucional uma dupla abordagem: integração dos imigrantes com elevado grau de precarização e restrição às entradas" (Pires, 2012, p.104).

A proximidade com a assinatura do Tratado de Schengen levou o tema da imigração a ser abordado de outra forma, pelos governantes e também pelas associações de imigrantes, que se mobilizaram em torno desta questão. Gustavo Santos detalha este processo de maneira pormenorizada em seu texto: Encontros, alianças e desencontros: partidos, associações de imigrantes e o Estado Português nos embates em torno da política para imigrantes. (2006). De acordo com o autor houve uma grande mobilização que gerou o Secretariado Coordenador das Associações para a Legalização (SCAL), definido dessa forma:

"Seu objetivo era dialogar com o governo português, defendendo os interesses dos imigrantes “lusófonos” em Portugal, no contexto de um processo de regularização extraordinária instituído para legalizar a situação de milhares de imigrantes ilegais em Portugal. Estando prestes a integrar o “espaço Schengen”, o país passaria a subscrever uma série de políticas comuns – e deveras restritivas – no tocante ao controle de suas fronteiras internacionais, pelo que era necessário, em uma expressão bastante usada na época, “arrumar a casa” (2006, p.103).

O autor salienta que havia a necessidade de conseguir um acordo com o Governo antes de Portugal assinar o acordo de Schengen. Além disso, Gustavo Santos ainda considera que as associações que defendiam a “lusofonia” enquanto identidade cultural das ex-colónias e Portugal, se aproveitaram de um discurso preexistente, ressignificando algo que legitimava suas reivindicações. Para ele, houve um acordo com a Igreja Católica, por meio da Obra Católica Portuguesa das Migrações, e com o partido de oposição da época, o Partido

107 Socialista, especialmente nas figuras de Maria Celeste Correia, deputada suplente, e José Leitão, deputado (2006, p.119).

Sem entrar no mérito dos argumentos utilizados pelo autor, podemos considerar que o grupo “lusófono” inegavelmente teve mais privilégios que os outros grupos imigrantes em Portugal. Isso discutiremos posteriormente na segunda parte da tese, no capítulo seis, que aborda o Alto Comissariado para Imigração e Minorias Étnicas (ACIME). Criado no governo do Partido Socialista, em 1996, teve como seu primeiro Alto Comissário, José Leitão, e depois várias figuras ligadas à Igreja Católica Portuguesa. Gustavo Santos em nenhum momento trata estas questões em seu texto, ele foca-se muito no período do XIII e XIV Governos Constitucionais, silenciando os seguintes.