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"Fim dos anos noventa a importação começou a trazer produtos brasileiros, antes no Jumbo tinha, na época que era Pão de Açúcar, tinha de vez enquanto produtos brasileiros, mas não era tudo. Uma lojinha no mercado da Ribeira as vezes tinha algumas coisas também, mas era só isso" (Mariana, 61 anos).

A década de 1990 foi o momento em que a imigração brasileira em Portugal ganhou maior visibilidade nos jornais dos dois países. Os dentistas brasileiros e a atuação da Igreja Universal do Reino de Deus alcançaram grande destaque nos meios de comunicação do Brasil de Portugal. Este subcapítulo procura perceber como os imigrantes brasileiros na década de 1990, quando não eram a maior população estrangeira vivendo em Portugal com documentação, conseguiram ganhar essa visibilidade.

Neste período Portugal e Brasil alcançaram um desenvolvimento económico considerável em situações opostas financeiramente e houve uma aproximação comercial internacional entre os dois países. Portugal viveu mesmo um período de grande prosperidade, Luciano Amaral classifica como mini-idade do ouro os anos de 1986-1992, devido ao grande crescimento alcançado. No Brasil, com os governos de Fernando Collor e Itamar Franco, o país viu desacelerar o crescimento do PIB e também descer posições entre as economias mais ricas do mundo. Apenas em 1995, no primeiro ano do governo de Fernando Henrique Cardoso, o Brasil voltou a crescer economicamente, devido à paridade cambial artificial da nova moeda (o real) em relação à moeda norte-americana (o dólar).

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A presidência de Fernando Collor de Mello, em seu primeiro ano de governo, manteve a política de planos económicos profundos, mas feita com o congelamento das poupanças dos brasileiros nos bancos39. Além dessa mudança houve uma série de medidas coerentes com o modelo neoliberal, proposto na campanha eleitoral e que foi posto em prática, como o início dos processos de privatizações. De acordo com Amann e Baer: “Em 1990, durante o primeiro

ano da administração Collor, a maior parte das barreiras não-tarifárias também foram abolidas, sujeitando as firmas domésticas à intensa competição estrangeira” (2006, p 272).

Essas alterações permitiram que uma série de produtos importados especialmente na área da tecnologia, onde houve um grande crescimento, na área dos produtos alimentícios, entrassem mais facilmente no Brasil. Os computadores e a batata americana Pringles se tornaram ícones dessa época, por serem representantes do novo consumo da classe média. Todavia, esses produtos que passaram a estar disponíveis no Brasil não podiam ser comprados pela grande maioria da população.

A conjunção de fatores relacionados com o congelamento das poupanças e um novo tipo de consumo de produtos importados aumentou a sensação de desigualdade de poder de compra dentro da classe média. Como já foi apresentado na introdução, muitos estudos relacionam o início da imigração brasileira para o exterior com o sentimento de perda de poder aquisitivo motivado pelo Plano Collor.

No início da década de 1990, a classe média urbana manifestava um sentimento de fracasso e deceção muito forte como por exemplo, se exprime nos versos das canções de rock de grande sucesso da banda RPM (1992) “Desse Brasil que não quer e nem sabe escutar/Certos problemas que nunca vão passar/Passar na hora do Brasil/Na hora do Brasil/Moeda podre, pobreza, recessão/Projetos faraonicos, inflação/Decreto-lei, ato institucional, medidas provisórias coisa tão normal/Em toda hora do Brasil.”O mesmo sentimento é expresso pela banda mineira Skank, que compôs In(dig)nação: “Eu fiquei indignado/Ele ficou indignado/A massa indignada/Duro de tão indignado/A nossa indignação/É uma mosca sem asas/Não ultrapassa as janelas/De nossas casas”.

Esses exemplos de canções produzidas por uma juventude proveniente da classe média urbana dos grandes centros refletem bem este momento de frustrações. Torresan entrevistou

39 Durante a campanha eleitoral, o candidato do PRN Collor acusou o candidato Luiz Inácio Lula da Silva, do

PT, de comunista, dizendo que ele iria confiscar todas as economias dos cidadãos de bem. Porém, vencidas as eleições para cumprir a prometida receita rápida e eficaz, segundo Collor, ele iria “matar o tigre da inflação com um só tiro”. O confisco de todos os rendimentos bancários pegou o Brasil inteiro de surpresa e em menos de sete meses o governo admitiu o erro e lançou o Plano Collor II que também não obteve êxito.

97 uma série de imigrantes brasileiros que vieram na década de 1990 para Portugal e apontou para esse sentimento de frustração como motor para a imigração. Utilizamos este trecho para exemplificar esta afirmação:

"These Brazilian immigrants were estranged by and from it. Leaving their parents’ home, gaining independence from the family, being able to travel, having access to entertainment, being able to consume quality goods, and being able to live in a country without intense social inequality, where they would be entitled to a sense of citizenship and personal safety: these were the important issues to people escaping not only from relative economic hardship but from a class position that was in collusion with a political and economic system they regarded as corrupt. International migration was a project of personal emancipation and a political response to the sense of estrangement produced by the interruption of their assumed natural middle-class cycle, the misrepresentation of democracy, and the skewed modernity of the 1980s and 1990s" (2012, p.126).

Analisando essa relação entre as insatisfações com as condições existentes no Brasil e as aspirações a projetos de realização de vida podemos entender melhor as motivações destes imigrantes, relacionadas com o consumo de bens materiais e culturais em alguns casos. O ato de migrar para outro país surgiu na vida de muitos jovens da classe média urbana como uma estratégia de manutenção, ou até aumento, do seu padrão de consumo e status. Este tema da realização pessoal por meio do consumo na migração para o exterior foi pouco desenvolvido na bibliografia existente.

Em relação à música, nesta década houve ainda dois grandes géneros regionais que ganharam projeção nacional: a musica sertaneja e o axé music. Com raras exceções, essas músicas eram desprovidas de crítica, seja ela social, política ou cultural. O mundo rural brasileiro ganhou destaque, remodelado por duplas novas, com roupas mais modernas semelhantes ao estilo consagrado do country norte-americano. Chitãozinho e Xororó, Zezé de Camargo e Luciano e Leandro e Leonardo foram as duplas de maior sucesso e começaram a fazer parte das trilhas sonoras de telenovelas, alcançando uma grande quantidade de vendas de discos e concertos no país e também no mundo.

O outro género musical regional de grande sucesso na década de 1990 foi o axé music. As bandas e cantores (as) que atuavam no Carnaval da cidade de Salvador, em camiões equipados com potente aparelhagem de som, chamados “trio elétrico”, foram apresentados como grandes representantes da “alegria brasileira”. O consumo desse produto cultural foi tão grande, que foi criado o “carnaval fora de época”, que consistia em apresentações desses artistas em outras cidades do país, em qualquer época do ano, simulando o Carnaval de Salvador com concertos realizados em cima do “trio elétrico”.

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Esses dois géneros musicais foram difundidos como representantes do gosto brasileiro, pela indústria fonográfica. José Machado, em seu trabalho sobre os imigrantes brasileiros no Porto, destaca como o axé music fazia parte integrante dos restaurantes brasileiros, especialmente nas churrascarias. Essa associação entre uma música baiana (Nordeste) e um restaurante típico de comida gaúcha (Sul) seria pouco provável no Brasil, por envolverem duas culturas regionais distantes e diferentes. No entanto, na modernidade híbrida, passa a fazer sentido a mistura dessas duas culturas, para criar uma cultura nova “brasileira” para os portugueses consumirem.

Os próprios imigrantes brasileiros espalhados pelo mundo relatam a experiência da aquisição de novos gostos culinários, musicais, estéticos e até de vestuário. Ser brasileiro no exterior, para alguns, significou a incorporação de outras formas de identidades, como forma de se afirmar em relação ao outro e também como uma questão de pertença de grupo. (Sasaki, 1998, Oliveira, 1999, Magalhães, 2008, Dias, 2014). Dias, ao analisar uma revista produzida para os imigrantes brasileiros no Japão, escreveu:

"Antes os brasileiros chegavam ao desespero de levar um quilo de feijão e café na bagagem, tamanha era a dificuldade de encontrar esses produtos. Hoje as lojas vendem de tudo: desde o último lançamento do CD de Zezé di Camargo e Luciano até um quilo de picanha para o tradicional churrasco de fim de semana” (Made in Japan, n.º 67, ano 6, p. 22). Além dessa constatação de que a rede de vendas de produtos brasileiros está mais estruturada do que antes, outra parte do trecho é muito importante em relação às novas territorialidades criadas pelos dekasseguis, ou seja, a maneira como, uma vez chegados ao novo território, esse grupo de pessoas se reidentifica e se relaciona com a nova sociedade em que está inserido. Por meio de estratégias diversas, o consumo de produtos ligados à nova identidade pretendida, como, por exemplo, a comida." (2014, pp.119-120)

Os imigrantes brasileiros com descendência japonesa preferem comer a picanha no Japão ao invés de comer a comida japonesa, que no Brasil era a mais consumida. Da mesma forma alguns imigrantes brasileiros não consomem alguns tipos de comidas portuguesas, como bacalhau ou doce de ovos, e acabam procurando a sua afirmação identitária por meio da maneira como se alimentam. Outra relação pode ser a de rejeição de algum tipo de comida muito ligada ao costume dos portugueses, como podemos perceber neste trecho:

"- O pessoal aqui como muito porco, é mano.

- Mas em Minas Gerais também se come bastante carne de porco. - Não cara, lá em Minas a gente come vaca, carne de boi.

- E ai chegou aqui e foi muita carne de porco, porco, porco, porco e galinha, galinha, galinha. Por que a carne de vaca era cara, muito cara. E meu pai sempre foi muquirana (forreta) de fazer a compra do mês sempre economizando. Ai era foda!

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- Até uma coisa engraçada, Entremeada já comeu? - Já, tem muita gordura

- Aquilo é horrível, tipo Entremeada e Febras eu comi tanto disso que eu comecei a ter alergia, me deu alergia de comer carne de porco, umas pelotas assim grandes. Ai meu tio, me falou a isso é alergia a carne de porco, isso me deu também quando eu cheguei aqui em Portugal.

- Ai comecei a comer só frango e passou.

- Hoje não, como onde quero é tranquilo" (Daniel, 29 anos, em portugal desde 2003).

Eeste trecho aponta para algumas das questões financeiras e alimentícias dos imigrantes brasileiros em Portugal. O preço do alimento interfere diretamente na dieta desses imigrantes trabalhadores, uma vez que seu objetivo, de ganhar dinheiro para guardar ou para enviar para o Brasil, depende dos seus gastos. A música e a alimentação, como nos exemplos utilizados, auxiliam a compreender que as negociações de identidades são travadas no cotidiano dos imigrantes das mais variadas formas.

Em relação aos temas consagrados nos estudos sobre as migrações brasileiras para o exterior, existe a forte associação da motivação para migrar, como resultado das indefinições económicas no Brasil e também as deceções causadas com a redemocratização são consideradas por diversos autores como os principais motivos para a imigração de brasileiros a partir da década de 1990. Teresa Sales relata este sentimento desta forma:

“[…] a década de 90 coincide com todo o desengano com o Brasil da inflação e da falta de oportunidades, desengano esse acentuado pela decepção com a era Collor de Mello. Uma de minhas entrevistadas me mostrava um recorte do Jornal o Globo que ela tinha guardado, com um artigo de Marcio Moreira Alvez publicado em 12 de outubro de 1995, em que ele classificava os atuais imigrantes brasileiros como expatriados, em comparação com os exilados do golpe militar de 1964. Ela se sentiu muito ofendida com o conteúdo desse artigo, argumentando que se via também como exilada pois, havia saído do Brasil por causa do Governo Collor” (Reis, 1999, p.18).

O Brasil passou por um processo cívico de impeachment, que mobilizou a sociedade civil e culminou na renúncia de Fernando Collor de Mello, levando o vice-presidente Itamar Franco a assumir o comando do país em 29 de dezembro de 1992.40 Itamar Franco, político mineiro de longa data, rompeu relações com o Presidente Collor depois de uma reforma ministerial, em março de 1992 trocando de partido, deixando o PRN e indo para PMDB.

Seu governo foi marcado pela tentativa de conciliação política e na economia pelo chamado Plano Real, que incluiu cortes nos gastos estatais, privatizações e a criação de uma

40 Sobre esse processo de impeachment é feita uma análise mais detalhada no quarto capítulo, aproveitando para

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nova moeda brasileira: o Real. Este plano resultou em uma queda acentuada da inflação, mas não garantiu melhorias significativas ao PIB brasileiro.

As eleições seguintes foram marcadas pelo sucesso do Plano Real atribuída ao ex- ministro da fazenda, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, que usou durante sua campanha a expressão “pai do real”, conseguindo se eleger em 1994 e se reeleger em 1998. Para além da estabilidade inflacionária conquistada, a concentração de rendimentos no Brasil do Real aumentou muito, mas milhões de brasileiros não tiveram qualquer melhoria em suas condições de vida.

O crescimento da economia brasileira foi chamado por alguns economistas de “voo de galinha” devido ás suas altas moderadas, seguidas de quedas. Como podemos e constatar pela tabela abaixo produzida pelo Banco Nacional do Desenvolvimento Económico e Social (BNDES), relativa à evolução da taxa de crescimento do Brasil de 1971 até 2006:

Uma das medidas adotadas para implementação do Plano Real foi a equiparação forçada da cotação da moeda norte-americana, o dólar, com à moeda brasileira. Foi esta medida propagada pelo Fundo Monetário Internacional que possibilitou a entrada de uma série de produtos importados devido ao baixo custo do dólar, e também uma considerável

101 facilidade na aquisição de compras de passagens áreas devido à falsa paridade da moeda, situação económica que afeta diretamente a vida das famílias imigrantes.

Ao mesmo tempo que as passagens aéreas internacionais se tornam mais baratas devido à queda da moeda norte-americana, há também uma queda no poder de compra das famílias que recebem transferências internacionais. Por isso não se pode analisar esta questão apenas por uma vertente, pois como referimos anteriormente, a imigração brasileira tem como característica a sua ligação com as redes de atração dos imigrantes.41 São vários os fatores responsáveis por uma imigração, os sujeitos são repletos de sentimentos envolvendo suas escolhas, no entanto, existem muitos trabalhos académicos que simplificam tudo em torno do aspeto financeiro.

Foi apenas no começo de 1999 que foi declarada a liberdade cambial, acarretando uma séria crise económica e abalando a economia do Brasil em vários setores. Alguns autores associam esse agravamento da questão cambial à motivação para compreender a saída de milhares de brasileiros para o exterior. Entretanto no caso de Portugal enquanto país de destino, temos a mesma questão abordada anteriormente: se por um lado o câmbio com a moeda portuguesa em alta favorece a imigração devido às remessas para o Brasil, por outro lado, Portugal já tinha passado o período de grandes construções motivadas pela EXPO 98 e a mão de obra já não era tão necessária. Com o aumento do dólar no Brasil as passagens aéreas para Portugal aumentaram consequentemente de preço. As questões económicas, como alertámos, nem sempre podem ser utilizadas como as únicas importantes para explicar as migrações no mundo.

Como foi mencionado anteriormente a década de 1990 foi o momento em que os imigrantes brasileiros em Portugal conseguiram vencer a barreira da visibilidade nos dois países. No Brasil houve a perceção, dos bancos públicos e privados, de que a diáspora

41 Em uma das minhas entrevistas realizadas com a imigrante Claudete em 2014, quando Portugal atravessava

uma grave crise e o desemprego aumentava, ela revelou que era a melhor época para estar em Portugal porque o Euro estava muito valorizado em relação ao Real. A entrevista foi interrompida várias vezes, pois seu telemóvel não parava de tocar. Eram seus amigos discutindo sobre a cotação e qual era a melhor taxa cobrada pelas empresas de envio de dinheiro para o Brasil. Facto que me surpreendeu uma vez que antes fazia a associação de que um país em crise não era um bom lugar para o imigrante trabalhador. Quando lhe perguntei sobre isso, ela disse que sim antes era mais fácil encontrar um emprego e que conseguia fazer mais horas extras, mas que agora devido ao câmbio, ela estava vivendo a sua melhor fase em Portugal depois de 10 anos.

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brasileira fazia volumosas remessas para o país, levando à criação de convénios e até mesmo à abertura de agências de bancárias no estrangeiro, para conseguir aproveitar essa demanda.42

No Brasil, os imigrantes brasileiros se tornaram notícia nos principais jornais do país devido à batalha dos dentistas brasileiros para conseguir a validação de seus diplomas em Portugal. Este tema será fruto de uma análise detalhada no sétimo capítulo, mas destacamos que foi o primeiro momento que os meios de comunicação brasileiros repercutiram conflitos de imigrantes brasileiros em Portugal.