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ALEGRIA E SERIEDADE NA ESCOLA: ENCONTRO ENTRE GENTEIDADES APRENDENTES

No documento EDUCAÇÃO BÁSICA E PESQUISA VOLUME 1 (páginas 35-39)

Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar

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estava na frente de seus olhos. E foi tanto a imensidão do mar, e tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: - Me ajuda a olhar! (GALEANO, 2014).

Prosseguimos nossas considerações a partir dessa pequena-grande história de Eduardo Galeano para refletir um pouco sobre a magia e o poder do papel do professor. Quantas crianças passam pelas trajetórias docentes e são conduzidas pela mão para, com elas, conseguir ver a realidade? Quantas crianças que, mesmo conduzidas pela mão, têm dificuldade de olhar o mundo porque é oriunda de um meio sociocultural onde lhe é abdicado, inclusive, o direito de olhar? Como olhamos para essas gentes estudantes da educação básica quando chegam à escola? Como elas olham para nós, professores, e para a escola?

A imagem que temos de escola, especificamente da sala de aula, ainda é de um espaço arquitetônico, fechado em quatro paredes, com carteiras enfileiradas, com um quadro à frente (seja negro, verde ou branco) e a figura de um ser iluminado que tudo sabe, chamado “Professor”. Nesse espaço, quase que sagrado, todos devem aprender o que lhes é ensinado, adequando-se ao ambiente escolar, embora esse não tenha nada a ver com o mundo da vida das classes populares. Por vezes, esquecemos que

as crianças provenientes das camadas médias e altas se comportam com toda a comodidade na escola, já que esta é a continuação de seu lar: fala-se da mesma maneira, os valores e hábitos são os mesmos de sua casa, a professora é alguém do seu meio. Uma criança da classe popular ou, mais ainda, que vive numa situação de marginalidade [...]

sente-se, ao contrário, em casa alheia. Uma casa alheia que exige outros comportamentos, outra linguagem. (NIDELCOFF, 2004, p. 42).

Sentir-se em casa alheia faz com que, muitas vezes, crianças, adolescentes e jovens sintam que a escola não faz parte da sua realidade, ou pior, que a escola não é para eles. Não se sentem acolhidos nesse espaço estrangeiro, frente ao qual manifestam seu sentimento de não pertencimento por meio da agressividade, da indisciplina, do desinteresse, da marginalidade ou, até mesmo, do abandono escolar.

Nesses casos, na maioria das vezes, o estudante é responsabilizado pelo seu próprio fracasso, o qual não é uma opção, mas uma condição quando se trata de crianças, adolescentes ou jovens que tiveram o direito de aprender negado pela sua condição social.

Esses homens e mulheres, crianças e jovens, mesmo tendo acesso à escola, são silenciados e excluídos por dentro quando estigmatizados, desde o seu ingresso, como terríveis, indisciplinados, desatentos, marginais. Melhor, eles são marginais!

Marginais, sim! Marginais que estão à margem das condições mínimas e dignas de

uma vida decente; marginais às prioridades políticas; a uma educação pública e de qualidade; marginais ao acesso às tecnologias; marginais pela não escuta sensível e olhar aguçado, sem o direito de dizer a sua palavra (FIORI, 1987). Dentre esses e outros motivos é que Freire (2014, p. 210) afirma que:

As crianças populares brasileiras não se evadem da escola, não a deixam porque querem. As crianças populares brasileiras são expulsas da escola. A estrutura da sociedade cria uma série de impasses e dificuldades, uns em solidariedade com os outros, que resultam em obstáculos enormes às crianças populares não só para chegar à escola, mas também, quando chegam, para nela ficar e nela fazer o percurso a que tem direito.

Essa realidade nos desafia a uma ação-reflexão-ação que busca tornar o ambiente escolar um lugar motivador, digno, acolhedor, procurando envolver a todos pela afetividade e o diálogo, na construção de uma escola gente. Isso implica que, com e a partir dos conteúdos conceituais, tenham a possibilidade de reescrever sua própria história, serem escutados e reconhecidos; que tenham, sobretudo, o direito de aprender, a partir do seu “saber de experiência feito” (FREIRE, 2000), mas não para nele permanecer. Talvez assim, estudantes e professores aprendam a olhar o mundo com olhos curiosos e críticos, sem perder a leveza e a alegria.

Nessa perspectiva, a seriedade do trabalho docente e a responsabilidade do professor vão se construindo na sala de aula e para além dela, pois “a escola que o povo recebe é muito mais a escola que os professores organizam com sua maneira de ser, de falar e de trabalhar, do que a escola criada pelos organismos ministeriais e pelos textos escolares” (NIDELCOFF, 2004, p. 19). Vivenciando mais intensamente as dimensões de diálogo e afetividade, com seriedade e alegria, nos aproximamos mais da propositiva de “professor povo” como aquele que se propõe a “ajudar as crianças a se desenvolverem como seres capazes de liberar-se das estruturas opressivas da sociedade atual” (NIDELCOFF, 2004, p. 29). Assim contribuímos para que, junto conosco, crianças e adolescentes, assumam seu compromisso diante da realidade, para serem livres e aprenderem a organizar-se (NIDELCOFF, 2004).

Quando se trata da escola pública, necessariamente, algumas perguntas precisam ser feitas: a serviço de quê e de quem a escola pública se coloca? Que escola pública é essa que queremos? O significado da palavra “público” refere-se a tudo o que é pertencente ou relativo a um povo ou ao povo; que refere-serve para uso de todos; a que todos têm direito. Na escola pública isso não é, ou ao menos não deveria ser, diferente! Garantir o direito à escola pública deve ser assegurado a todos. O que precisa ser diferenciado são as formas de garantir que essas crianças, adolescentes e jovens possam ingressar e permanecer na escola, que se sintam parte dela, que os seus contextos, saberes, linguagens sejam respeitados, valorizados e

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não rechaçados. Afinal,

queremos uma escola pública popular, mas não populista e que, rejeitando o elitismo, não tenha raiva das crianças que comem e que vestem bem. Uma escola pública realmente competente, que respeite a forma de estar sendo de seus alunos e alunas, seus padrões culturais de classe, seus valores, sua sabedoria, sua linguagem. Uma escola que não avalie as possibilidades intelectuais das crianças populares com instrumentos de aferição aplicados às crianças cujos condicionamentos de classe lhes dão indiscutível vantagem sobre aquelas. (FREIRE, 2000, p. 42).

Rejeitar o elitismo é dizer “não” a todas as formas de discriminação, repressão ou silenciamentos; é respeitar e valorizar os diferentes contextos e realidades. É construir uma escola que não continue a reproduzir conteúdos e rituais que nem sempre se sabe a serviço do quê e de quem estão. Isso requer outra práxis do professor, com uma metodologia que vá ao encontro das necessidades e realidades que se apresentam, valorizando e respeitando os saberes da experiência feito dos estudantes; e, a partir deles, trazer e trabalhar os conhecimentos científicos histórica e socialmente construídos, estimulando a curiosidade, a criatividade, a consciência crítica, a autoria e autonomia dos educandos.

Pensar certo (FREIRE, 1998), com afetividade e seriedade, é ter clareza da responsabilidade que o professor tem para com as pessoas que, com ele, querem aprender para ser mais na sua genteidade, com autoria e autonomia. Esse comprometimento requer uma permanente práxis dialógica que seja significativa para além da escola, através das (inter)relações, das trocas e aprendizados que vão sendo construídos, onde todos ensinam-aprendem sob diferentes óticas, de diferentes formas, mas todos aprendem, uns em comunhão com os outros.

É o compromisso com uma escola que não negue o direito a qualquer menino ou menina, de qualquer etnia ou classe social, ter condições de aprender, de conhecer, de estudar, de aprofundar seus conhecimentos; mas que também instaure uma práxis em que as crianças, adolescentes e jovens das classes populares possam ter seus saberes respeitados, valorizados para, a partir deles, ir transformando seus saberes e suas vidas. Nesse sentido, Freire defende que

é preciso deixar claro, porém, que a escola que queremos não pretende, de um lado, fazer injustiça às crianças das classes chamadas favorecidas, nem, de outro, em nome da defesa das populares, negar a elas o direito de conhecer, de estudar o que as outras estudam. [...]

Sem esta reformulação curricular não podemos ter a escola pública municipal que queremos: séria, competente, justa, alegre, curiosa.

Escola que vá virando o espaço em que a criança, popular ou não,

tenha condições de aprender e de criar, de arriscar-se, de perguntar, de crescer. (FREIRE, 2000, p. 42).

Talvez oportunizar e propiciar na escola espaços para a criação, para o risco, para a pergunta, para a novidade seja um dos caminhos possíveis para se educar com alegria e seriedade, onde os conhecimentos são aprendidos e construídos com esforço, dedicação, comprometimento, sem ser enfadonho, pesado e triste.

PARA NÃO FINALIZAR: O SONHO POR UMA ESCOLA SÉRIA E ALEGRE É

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