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O público e o privado nas políticas educacionais brasileiras

No documento EDUCAÇÃO BÁSICA E PESQUISA VOLUME 1 (páginas 43-46)

RELAÇÕES ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO NA EDUCAÇÃO BÁSICA: AS ESTRATÉGIAS DE PRIVATIZAÇÃO NA REDE

2.1 O público e o privado nas políticas educacionais brasileiras

Ao realizar-se uma análise de políticas públicas, especialmente quando é dada ênfase ao processo de privatização da educação, é necessário que se considere, a priori, que Estado e sociedade civil não podem ser vistos em contraposição (PERONI, 2015), tendo-se em vista que, em uma sociedade capitalista, ambos são perpassados por uma correlação de forças em que o público age em favor das conveniências requeridas pelo privado. Como traz Harvey (2005, p. 81), “os interesses de classe são capazes de ser transformados em um ‘interesse geral ilusório’”, universalizando as ideias do capital como se estas fossem dominantes na sociedade. Assim, o Estado, em tese uma construção democrática, acaba tendo um papel decisivo nas ações que

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levam ao enfraquecimento do setor público e de seu constante redimensionamento ao setor privado.

A apropriação do diagnóstico neoliberal de crise por uma parcela significativa da população explicita esse processo. Nessa concepção, o Estado passa a ser culpabilizado pela crise “tanto porque gastou mais do que podia para se legitimar, já que tinha que atender às demandas da população por políticas sociais, o que provocou a crise fiscal, quanto porque, ao regulamentar a economia, atrapalhou o livre andamento do mercado” (PIRES, PERONI, 2010, p. 58). Dessa maneira, por meio da aceitação desse argumento, realizam-se reformas através do próprio Estado, mesmo que estas diminuam ou acabem com direitos sociais historicamente conquistados, por acreditar-se que não há outra alternativa, levando-se à “naturalização do possível”

(PERONI, 2013). Assim, por indução do mercado e da situação de crise, políticas universais são diminuídas e tornam-se focalizadas, sendo restritas a grupos em maior vulnerabilidade social.

Contudo, Mészáros (2011) retifica essa concepção de crise de Estado e afirma que esta não é a causa, e sim uma das consequências da crise estrutural do capital vivida nesse período específico. Para o autor, crises são naturais no capitalismo, todavia, a crise estrutural vivida na contemporaneidade tem novidades: é universal, seu alcance é global, tem escala de tempo contínua (não é limitada ou cíclica como as crises anteriores), e é "rastejante", pois não traz colapsos dramáticos esporádicos, sendo constante (p. 795). É reflexo da forma de crise endêmica assumida pelo capital, que tem, por si mesmo, um caráter “expansionista, destrutivo e, no limite, incontrolável” (p.18), que leva a uma “crise cumulativa, crônica e permanente, com a perspectiva de uma crise estrutural cada vez mais profunda”(p. 18). Dessa forma, essa crise estrutural acaba por afetar “todas as instituições do Estado e os métodos organizacionais correspondentes. Junto com esta crise vem a crise política em geral, sob todos os seus aspectos, e não somente sob os diretamente preocupados com a legitimação ideológica de qualquer sistema particular de Estado” (p. 106).

Esse dualismo na forma de se conceber a crise, com predominância ao primeiro modelo - de diagnóstico neoliberal de crise do Estado -, impacta na maneira com que as políticas sociais são articuladas. Como traz Vieira (2004), não se pode discutir política social dissociada de política econômica, bem como não se pode entender uma política social desvinculada dos reclames populares que a materializaram. Entretanto, os direitos sociais “não significam a consagração de todas as reivindicações populares, e sim a consagração daquilo que é aceitável para o grupo dirigente do momento”

(VIEIRA, 2004, p. 144), fazendo com que a política econômica se sobreponha à social e a submeta aos ditames do capital.

E os movimentos que levam o Estado, por meio de seu aparelho, a favorecer interesses privados, como já citado, são históricos no Brasil. No entanto, há um aprofundamento de suas iniciativas a partir das reformas neoliberais vividas no

país na década de 1990. Nesse período, devido ao contexto de crise, estratégias como a reestruturação produtiva, a globalização, o neoliberalismo e a terceira via foram elencadas, redefinindo as fronteiras entre o público e privado (PERONI, 2015).

Essas estratégias, além de uma diminuição da interferência do Estado na economia, também alteraram seu papel diante das políticas sociais, pois as prescrições se tornaram “racionalizar recursos e esvaziar o poder das instituições, já que instituições democráticas são permeáveis às pressões e demandas da população, além de serem consideradas como improdutivas, pela lógica de mercado”. (PERONI, 2006, p. 14).

A maneira mais eficiente, dessa maneira, para diminuir as interferências democráticas nas instituições públicas, foi a introdução da gestão gerencial. Através de reformas, o gerencialismo passou a fazer parte das atividades e das instituições governamentais e, como explicam Newman e Clarke (2012), mesmo os serviços públicos que não foram privatizados, passaram a ser cobrados para que tivessem um desempenho similar ao esperado pelo mercado competitivo. Com isso, valores como economia e eficiência passaram a se sobrepor aos preceitos do trabalho público, produzindo o que os autores citam como um “estado gerencial”.

Um documento decisivo nesse contexto e que se torna fundamental para compreender os processos de privatização no Brasil é o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, publicado em 1995, enquanto Fernando Henrique Cardoso estava na presidência do país. Esse plano foi responsável pela reforma articulada na época, partindo do diagnóstico de crise causada pela ineficiência do Estado, discutido anteriormente, e propondo que o Estado redefinisse seu papel, deixando de ser o

“responsável direto pelo desenvolvimento econômico e social [...] para fortalecer-se na função de promotor e regulador desse desenvolvimento” (MARE, 1995, p.12), repassando as atividades que pudessem ser controladas pelo mercado para o setor privado.

A partir desse momento, acirraram-se os processos de privatização, que também envolveram a educação. Nesse campo específico, destacam-se três formas pelas quais o privado passou a interferir no público:

Ou através da alteração da propriedade, ocorrendo a passagem do estatal para o terceiro setor ou privado; ou através de parcerias entre instituições públicas e privadas com ou sem fins lucrativos, onde o privado acaba definindo o público; ou, ainda, aquilo que permanece como propriedade estatal, mas passa a ter a lógica de mercado, reorganizando principalmente os processos de gestão e redefinindo o conteúdo da política educacional brasileira. (PERONI, 2015, p. 15).

Assim, os processos de privatização se tornaram mais frequentes e passaram a não exigir somente a alteração de propriedade, mas se configuraram de formas muito mais sutis. Ainda, é importante que se considere, como frisado por Peroni (2015),

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que esses movimentos de privatização não se dão em abstração, mas por meio de processos e de sujeitos, individuais e coletivos, organizados em rede, advindos de organismos internacionais, do mercado financeiro ou do próprio governo, e que exercem influência em níveis diversos. Ainda, se dão de formas variadas em distintos tempos e espaços. A partir dessas concepções é que serão descritas e, posteriormente, discutidas, as três iniciativas propostas em um plano recente no Rio Grande do Sul, intensificando os processos de privatização da educação ofertada na rede estadual de ensino. Por meio de estratégias diferentes, as ações influenciaram - e continuam influenciando - tanto o financiamento e a gestão, quanto o conteúdo da educação.

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