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As propostas de privatização da rede estadual e suas consequências para a educação

No documento EDUCAÇÃO BÁSICA E PESQUISA VOLUME 1 (páginas 48-52)

RELAÇÕES ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO NA EDUCAÇÃO BÁSICA: AS ESTRATÉGIAS DE PRIVATIZAÇÃO NA REDE

2.3 As propostas de privatização da rede estadual e suas consequências para a educação

As informações sobre a parceria foram encontradas somente em sites do governo e em citações ao acordo veiculadas na mídia. Segundo a fala de Mara Zuraski, superintendente da Suepro (Superintendência da Educação Profissional do Estado), que pode ser acessada na matéria “Veja como vai funcionar o convênio para alunos e professores da rede estadual com o Sistema S” (disponibilizada na página da Secretaria de Educação), os cursos melhorariam a empregabilidade dos alunos, qualificando seu currículo, e os professores da rede estadual poderiam fazer relações entre suas aulas e o conteúdo oferecido. Quanto à formação disponibilizada aos profissionais, de acordo com a página do Sesi (http://www.sesiead.com.br/cursos/

gestao-educacao-qualidade), que é o responsável pelo curso, um dos objetivos é a melhoria de indicadores educacionais.

2.3 As propostas de privatização da rede estadual e suas consequências para a educação

Como vem sendo discutido no decorrer deste estudo, as redefinições no papel do Estado alteram as relações entre o público e o privado e favorecem a privatização da educação pública. Assim como nos casos citados neste estudo, a privatização não implica necessariamente a alteração de propriedade das instituições, mas mudanças na execução, no financiamento e no conteúdo da educação (PERONI, 2013). Além de estratégias distintas, a privatização também é induzida por diferentes sujeitos, e, conforme as três iniciativas aqui explicitadas, tiveram como interlocutor um governo que, através do próprio aparelho estatal, propôs políticas públicas a fim de se desresponsabilizar de seu compromisso com a educação.

O Programa Escola Melhor: Sociedade Melhor, primeiro projeto abordado na seção anterior, é datado de 2015, no início do Governo Sartori, quando já havia um discurso de crise de Estado propagando-se, justificado pelo pagamento da dívida do Rio Grande do Sul com a União, pelos gastos com o pagamento de servidores e pela baixa arrecadação, entre outros argumentos. Nesse contexto, a aprovação de um projeto que visava parcerias com o setor privado para financiar a manutenção das escolas não gerou polêmicas nem críticas na sociedade, o que não significa que essa iniciativa não traga consequências para a educação.

Por mais que, em um primeiro momento, possa parecer que o projeto apenas redireciona a fonte de parte do financiamento das escolas estaduais, é necessário que se perceba que há a privatização do provimento da educação pública, o que impacta de forma direta a autonomia das instituições. Como traz Paro (2016), a omissão do Estado no provimento dos recursos necessários à realização dos objetivos educacionais demonstra, além de uma forma de autoritarismo, uma ameaça

à autonomia das escolas, já que ter autonomia implica ter poder de decidir e também condições concretas de alcançar os objetivos definidos pela comunidade escolar.

Dessa forma, deixar de responsabilizar-se com o provimento da educação representa um descompromisso do poder público com essa política social, deixando-a vulnerável e à mercê dos interesses de mercado.

Outro ponto desse projeto que causa preocupação é com os valores capitalistas, como a publicidade e o consumo, que se materializam na rotina das escolas com a adesão ao Programa. E isso também se reflete na maneira com que as escolas podem ser financiadas, ou não, de acordo com essa lógica. Afinal, como o retorno que os empresários ou as pessoas físicas obtêm com o financiamento das necessidades das escolas é a publicidade, é importante que se questione se as escolas localizadas em regiões mais isoladas, em áreas de vulnerabilidade social, com uma comunidade com um menor potencial de compra ou com um número reduzido de alunos possuem as mesmas chances de financiamento do que aquelas em situações mais favoráveis e com mais visibilidade em dado contexto social. Esse ponto é crucial porque reflete como esse programa pode aprofundar as desigualdades entre as escolas, intensificando situações de fragilidade vivenciadas em escolas públicas devido ao descaso histórico do poder público com a educação.

Já o Projeto de Lei 44/2016 busca a privatização por meio de outra estratégia:

retira a gestão da escola de uma construção democrática e a repassa para entidades consideradas de terceiro setor. Por meio dessa proposta, contudo, contraria uma lei anterior, a Lei nº 10.576, de 14 de novembro de 1995 (atualizada em 2012), que estabelece os seguintes preceitos para a Gestão Democrática no ensino público no estado do Rio Grande do Sul:

I - autonomia dos estabelecimentos de ensino na gestão administrativa, financeira e

pedagógica;

II - livre organização dos segmentos da comunidade escolar;

III - participação dos segmentos da comunidade escolar nos processos decisórios em

órgãos colegiados;

IV - transparência dos mecanismos administrativos, financeiros e pedagógicos;

V - garantia da descentralização do processo educacional;

VI - valorização dos profissionais da educação;

VII - eficiência no uso dos recursos.

O modelo de gestão buscado no PL 44/2016, popular nos Estados Unidos (charter schools), contraria várias das prescrições citadas na Lei da Gestão Democrática citada acima, como a autonomia das instituições de ensino, também ameaçada pelo Programa Escola Melhor: Sociedade Melhor, e a organização e a participação

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da comunidade escolar nos processos decisórios. Como trazem Oliveira, Moraes e Dourado (2010), além da eleição da equipe diretiva, do financiamento público da educação e da autonomia (financeira, jurídica, administrativa e pedagógica), a gestão democrática impõe um processo coletivo de participação, com instâncias colegiadas que possuem poder deliberativo e com atuação da comunidade escolar, representada em todos os seus segmentos, na construção do Projeto Político Pedagógico da escola, bem como na decisão sobre a aplicação de recursos financeiros. Entretanto, esse processo de construção da democracia não tem sentido diante da atuação de uma organização social no ambiente escolar, já que esta não possui vínculo com a comunidade e suas metas e seu planejamento financeiro não se configuram como questões discutíveis na esfera democrática, pois são definidos anteriormente em termos que envolvem a parceria.

É preciso que se considere também que o PL 44/2016 preserva o financiamento público da educação, no entanto, este é repassado para que organizações sociais façam a gestão das instituições públicas. Assim, os fundamentos que amparam tais projetos não se voltam à retirada do provimento público, mas buscam a inserção da lógica do setor privado no serviço do qual o Estado é responsável através da gestão gerencial. Esse aspecto está explícito na seção III, em que o alcance de metas e a avaliação de desempenho, próprias do modelo empresarial, são citadas como condições ao contrato de gestão. Dessa maneira, é possível inferir também que, além da gestão escolar democrática (preceito previsto também na Constituição Federal de 1988, na Lei de Diretrizes e Bases e no Plano Nacional de Educação), há interferência em questões pedagógicas, incluindo o currículo das instituições, já que o projeto busca a medição de resultados, o que acontece prioritariamente por avaliações externas.

Esse Projeto de Lei não voltou a tramitar desde as mobilizações causadas quando de sua proposição. Todavia, as estratégias de se privatizar o ensino na rede estadual não cessaram. Em 2017, a proposta atingiu o conteúdo da educação ao se firmar um convênio entre a Secretaria Estadual de Educação e Sesi, Senai e Senac. Esse tipo de acordo entre entidades do Sistema “S” e o poder público não é uma iniciativa exclusiva do Governo Sartori, já que, em nível federal, o Governo Lula realizou diversas parcerias a fim de oferecer formação profissional a estudantes da rede pública. Contudo, no caso gaúcho o objetivo também se voltou à formação de profissionais da educação.

O conteúdo dos cursos oferecidos no convênio da Seduc com órgãos do Sistema “S” aos discentes são afins aos objetivos das entidades que os oferecem:

disponibilizar formação rápida para o mercado de trabalho. As escolas da rede estadual se tornam coadjuvantes nesse processo, já que são estimuladas a fazerem interligações entre os saberes escolares e aqueles obtidos com a formação disponibilizada pela entidade, incorporando sua lógica e permitindo alterações em seu

conteúdo. Com a formação docente, é possível ampliar os valores mercadológicos propostos pelas entidades, além de, como exposto na página do curso Gestão para Educação de Qualidade, aumentar os indicadores educacionais, que partem de uma lógica quantitativa, própria dos modelos empresariais. Assim, nessa proposta também há a presença da gestão gerencial, que se opõe à democrática, interferindo na educação oferecida pela rede estadual

Com esse acordo, as estratégias de privatização que anteriormente buscaram atingir o financiamento e a gestão da educação, voltaram-se ao conteúdo, que obviamente também esteve ameaçado nas propostas anteriores, mas que é mais incisivamente afetado com a interferência na formação direta do estudante e dos docentes. Também é preciso que se considere que, por envolver alunos da Educação Básica, a estratégia também implica em um processo de formação precoce. Como discute Ramos (2016, p. 30):

[...] não faz sentido delimitar o horizonte de desenvolvimento humano precocemente, seja pela restrição de sua escolaridade, seja pela determinação seletiva dos tipos de conhecimentos a que o estudante poderá ter acesso, em quantidade e qualidade, pelo lugar ocupado na divisão social do trabalho.

Ao direcionar a formação de alunos da escola pública a uma formação profissional específica, voltada ao mercado de trabalho e a distância (considerando-se que essa modalidade exige autoestudo e responsabilização individual, sem necessariamente haver mediação direta de um adulto) para adolescentes, pode-se acabar restringindo suas possibilidades de desenvolvimento sem que seja propiciada uma educação elementar ampla e aprofundada. Além disso, como a educação pública dirige-se prioritariamente a filhos de trabalhadores, a insistência em se oferecer educação profissionalizante a esse grupo denota um preconceito de classe, que o entende como mão de obra para o capital.

Dessa maneira, as três propostas analisadas sinalizam investidas feitas por meio do próprio aparato do Estado de se privatizar a educação, delegando seu financiamento, sua gestão e seu conteúdo ao terceiro setor ou ao setor privado. Com consequências que envolvem a desresponsabilização do Estado com o provimento público da educação, a intensificação de valores de mercado nas escolas públicas, interferências no conteúdo da educação e graves ataques à gestão democrática - buscando substitui-la pela gestão gerencial -, as iniciativas mostram que, para haver a privatização do serviço público não é necessário alterar sua propriedade, basta oportunizar a interferência do setor privado nas políticas sociais.

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