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Miguel Mahfoud

4. alma conStitutiva do corpo Social

A alma de uma pessoa é dinamismo constitutivo de sua corporeidade (ativo em cada uma das partes do corpo) e também fonte de sua identidade pessoal; assim também aquela dinâmica constitutiva pulsa em cada mínimo elemento de seu ser como dinamismo de força vital-espiritual, inclusive na dimensão psíquica da pessoa, como fator fundante da contínua formação, âncora para a construção de uma identidade autêntica, permitindo consolidar persona- lidade e caráter. Uma personalidade toma posições pessoais diante de sua comunidade, contribuindo com sua constituição; por outro lado, a própria comunidade (constituída por forças vitais-espirituais e psíquicas) pode for- mar-se com personalidade própria e se tornar capaz de sustentar a vida das pessoas que a constituíram. Uma comunidade viva pode chegar a contribuir

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com a formação e estruturação funcional da sociedade e do Estado. Inclusive, um enfraquecimento da vida das comunidades, bem como da relação entre elas, tenderia a levar a um enfraquecimento da funcionalidade da sociedade e do Estado. A fragilização ou enrijecimento da dinâmica constitutiva de um corpo material levaria à sua desintegração; igualmente, a falta de vitalidade e inter-relação das comunidades como vida poderia ter como consequência a fragilização da sociedade por enrijecimento de suas estruturas, mantidas por força de poder extrínseco, mas tendendo à desintegração. Pessoa, comu- nidade, sociedade e Estado dependem do fluir da força sutil e intimamente constitutiva da vida (stein, 1993, 1999d).

Podemos, então, tomar a cidade viva como corpo social vivo, em que sua dinâmica sutil e sua força vital-espiritual constitutiva pulsam em cada mínima parte dele, pulsam nas diversas formas de ação e de tomadas de posição enraizadas. Também no corpo social vivo da cidade certas áreas re- presentam funcionalidades específicas; podemos conceber – como recurso compreensivo – as áreas da cidade como partes de um corpo humano. Vejamos, neste sentido, o caso de Belo Horizonte.

A cidade tem um pólo intelectual que pode representar a cabeça do corpo social da cidade, lócus da produção de conhecimento e valorização do pensamento. Em Belo Horizonte, podemos considerar que a ufmg seja esse pólo: a cidade tende a admirá-lo e valorizá-lo por isso e também pelo seu potencial de gerar ascensão socioeconômica. Juntamente com o reco- nhecimento nacional e internacional como instituição de excelência (bem qualificada no ranking das universidades brasileiras), vem sendo valorizada cada vez mais pela própria cidade devido a sua presença e participação na vida da sociedade. É valorizada como força construtiva e recurso para en- frentamento de questões vitais (culturais, técnico-científicas, econômicas, sanitárias, sociais, etc.). A instituição agrega pessoas oriundas de todo o es- tado, tornando Belo Horizonte um centro de formação de grande alcance. O risco e o paradoxo a ser enfrentado é o de ser um polo responsável pela ascensão social e consolidação de poder de intervenção na realidade sociopolítica, mas – também por isso – gerador de elitismo. Em nossa

cultura ocidental, o risco é a cabeça ter sua funcionalidade desintegrada do resto do corpo; risco de valorizar sua atividade como destacada das demais, permanecendo isolada no estilo “torre de marfim”. A frequente crítica que se utiliza dessa expressão parece indicar que o risco esteja de algum modo sendo enfrentado e questionado.

Nos últimos anos, a ufmg vem protagonizando importante movi- mento de articulação da universidade com as esferas municipais e esta- duais. Tal postura de integração de forças políticas diversas caracteriza esse dinamismo como construtivo dentro dos paradoxos e dos riscos tão comuns na nossa sociedade.

Um aspecto interessante da participação da ufmg na vida da cidade é o fato de a universidade ter autorizado a construção do estádio de futebol apelidado de “Mineirão” no terreno de seu principal campus, evidenciando uma abertura da universidade para a vida da cidade em seus aspectos amplos, não estritamente educacionais ou científicos. Assim como se mantém a com- preensão cindida entre cabeça e outras partes do corpo, também no nosso caso poucos belo-horizontinos conhecem essa participação da universidade; as ocasiões de jogos resultam em certa tensão no campus (por receio de que a área possa sofrer algum dano ou por dificuldades de locomoção na região).

Nesses aspectos todos, notamos que permanece o paradoxo: há abertura (viabilizando a participação da universidade na vida da cidade) convivendo com cisão (entre o campo intelectual e a vida do cidadão comum da cidade).

Continuando a associar o corpo social da cidade ao corpo humano, o

coração de Belo Horizonte seriam os bairros populares, e as favelas, centros

de cultivo de vida comunitária: ali as relações pessoais estão vitalizadas e são fundamentais para a humanização do cotidiano. Revelam-se vitais em termos de criatividade que brota dos enfrentamentos conjuntos dos problemas de sobrevivência, inclusive em termos de produção artística e cultural. Mas, sobretudo, são vitais quanto à radical necessidade humana de relacionamentos pessoais.

Pe. Pigi Bernareggi frequentemente evidenciava a todos de Belo Ho- rizonte que a cidade vive graças ao fluxo de vida humana emanado coti-

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dianamente, desde os bairros populares e favelas como os rios fecundando todo o campo social, como veias embebendo de vida o tecido social de todo o corpo-cidade. Aquelas pessoas simples, vivendo de relações pessoais e comunitárias, valorizando relacionamentos e vida humana no presente, saindo diariamente de seus bairros periféricos e se inserindo na cidade toda, vitalizam as relações humanas, sem as quais a cidade se tornaria sem- pre mais inóspita (bernareggi; resi, 1982).

Os paradoxos nesse âmbito são imensos. Por um lado, há vitalidade reconhecida; por outro, os bairros e favelas permanecem espaços de invi- sibilidade: aquelas pessoas espalhando-se pela cidade são, muitas vezes, tomadas como invisíveis, sem considerar a força construtiva cotidiana que efetivamente são. É muito fácil, em nossa sociedade, que se tomem esses sujeitos puramente por seu aspecto instrumental (bons cuidadores de crianças, doentes e idosos; boas cozinheiras, etc.; quase a substituir o trabalho que fora próprio de escravos domésticos). São tomados pela ex- ploração de suas capacidades instrumentais, mas, paradoxalmente, mesmo nesses campos ressequidos eles os irrigam com a vida característica do mundo de relações comunitárias. Tal paradoxo grave, coloca em evidência que não sabemos lidar com o mundo de relações do qual dependemos.

Sendo os bairros populares o coração pulsante da vida relacional pro- priamente humana da cidade, podemos tomar como mãos os campos de ação e trabalho operativo, os campos de lidar com a materialidade. As mãos ficam um bocado apartadas do corpo, assim como em Belo Horizonte os espaços de trabalho rural, operário e industrial são alocados em torno da cidade, na região metropolitana. O trabalho manual ainda é tomado, na nossa sociedade, pela alienação.

Por um lado, as grandes empresas são vistas pelos belo-horizontinos como concedendo certo prestígio à cidade; por outro, são mantidas à distância e à margem. É o caso da empresa de mineração, da indústria automobilística, da produtora de gás e gasolina, e inclusive do produtor rural. Em todas essas áreas de produção, notamos aquele paradoxo: a ação-trabalho – que poderia ser especial campo de tomada de posição no mundo-da-vida, grande campo

de participação na vida da sociedade com seus dramas próprios – é frequen- temente tomada como alienação. Evidentemente, há interesses econômicos e políticos a manter o trabalho como alienado, a sustentar a instrumentalização contra os interesses vitais dos sujeitos, a acentuar a alienação não enfrentando problemas e contradições evidentes do sistema produtivo. Assim, inclusive a alienação é instrumentalizada e funcional ao esquema de trabalho alienado.

Mas mesmo o fato de ser proposto como alienado não impede a pos- sibilidade de o trabalho ser o grande campo de ação e responsabilidade diante dos dramas vitais de nosso tempo. Na dramática situação ecológica em que globalmente nos encontramos, as mineradoras bem próximas da região urbana de Belo Horizonte são mantidas como se estivessem aparta- das, mas, na verdade, estão comprovadamente ameaçando a existência da cidade mesma, com riscos gravíssimos à população. A estratégia de manter as empresas apartadas abre espaço para que elas continuem, a despeito de certa consciência de risco por parte da população. É um drama imenso, um desafio enorme, que escancara a necessidade radical e urgente de in- tegração da totalidade dos elementos em questão.

O corpo social da cidade tem também um peito onde amor e ira se manifestam e são expostos. Em Belo Horizonte, podemos localizá-lo na “Praça da Liberdade”: campo de manifestações políticas e artísticas; ali se expõem apoios à vida da cidade, amor à comunidade local, solidariedades várias; ali, divulgam-se ações sociais das mais diversas. É também espaço de manifestação da ira, de protestos, de tentativa de conter o fluxo habi- tualmente violento da cidade grande. Ali, junto do “Palácio do Governo”, as manifestações públicas vislumbram incidência política.

É também local onde memórias afetivas são cultivadas. A Praça da Liberdade está marcada pela memória coletiva de Tancredo Neves: de sua presença como político, dos acontecimentos dramáticos para a história do país, quando de sua morte em 1985. Naquela ocasião, a Praça da Liberdade foi tomada pela população como espaço-chave de manifestação popular de amor e ira. E nunca mais aquela praça, aqueles edifícios, aqueles jardins e fontes, aquelas grades, aqueles espaços amplos deixaram de manifestar

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aos belo-horizontinos aquele amor e aquela ira. Continua solicitando, re- petidamente, as tomadas de posição em relação ao país e à política.

Interessante notar a dificuldade encontrada, pelos últimos governado- res, para mudar a sede do governo do estado, saindo do Palácio do Governo da Praça da Liberdade, indo para a nova e moderna Cidade Administrativa, construída segundo projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer, na região metropolitana. Há vários anos, a polêmica permanece. Do ponto de vista da ligação da população belo-horizontina com a Praça da Liberdade, esta se mantém lócus de poder, ainda que esteja sendo transformada em mega- centro cultural. Reedição da força cultural e política desse peito aberto em que a vida se apresenta com sua dramaticidade. Paradoxo vivo do espaço antigo e novo, que resiste à mudança e inventa novas manifestações públicas.

Por fim, esse corpo social da cidade que tem cabeça, coração, mãos e peito aberto, tem também um núcleo, alma da alma: o núcleo mais identitário, onde todas as dimensões e elementos constitutivos da pessoa estão integra- dos, pelo qual o corpo pessoal, intimamente integrado à sua psique e a seu espírito, corpo constituído por uma dinâmica vital-espiritual sutil e íntima, referência para a formação não meramente acidental, viabilizando elaborar sentidos efetivamente pessoais, permitindo que o eu não se perca de si mes- mo na dinâmica constitutiva de abertura para dentro e para fora de si, nem nas constantes e múltiplas mudanças durante o fluir da vida no mundo. O núcleo ou centro da pessoa permite que o viver seja ancorado não apenas nas próprias vivências, mas no alto, de modo que inclusive as próprias vivências não se detenham em seu emaranhado de elaborações e eventual escassez de luz de significado. É ancorado no alto: o próprio eu pode livremente aceitar ancorar-se, desejando fundamentar-se na fonte de seu próprio ser e fonte de suas características autênticas (stein, 1999b, 1999c, 2003, 2013).

Considero que o núcleo da cidade não esteja em seu centro geográfico, comercial ou de poder. Antes, reúne todos eles. O núcleo da cidade de Belo Horizonte, o localizo na chamada “Praça do Papa”.

A “Praça do Papa” integra os diversos elementos da vida da cidade: ali os diversos âmbitos de experiência dos cidadãos se apresentam integrados, todos

partilhando da mesma íntima dinâmica vital-espiritual que constitui todos eles. A “Praça do Papa” está junto de uma favela e de um centro de poder (o “Palácio das Mangabeiras”, casa oficial do governador de Minas Gerais); é ladeada por casas luxuosas, pérolas arquitetônicas; está literalmente ao pé da “Serra do Curral”, que tem grande importância ecológica para cidade, símbolo de amor às montanhas e foco de resistência às empresas mineradoras para impedir a alteração dos contornos dos picos da serra ao explorarem minério na região...

A Serra do Curral é justamente o berço histórico da cidade, original- mente construída nas terras do antigo “Curral del Rei”, fazenda do governo imperial, dedicada sobretudo à reprodução de cavalos para as forças poli- ciais e transportes oficiais: grande fazenda produtiva, que tem a ver com a raiz rural e uma história local associada ao período colonial e imperial. Assim, a Serra do Curral tem grande significado sob diversos ângulos da vida da cidade – e do país – e se constitui como força solicitadora de toma- da de posição ante as diversas questões ligadas à raiz de Belo Horizonte.

A “Praça do Papa” fica ao lado do grande “Parque Municipal das Man- gabeiras”, importante área de preservação ecológica contendo extensa floresta preservada, orgulho dos cidadãos. O Parque é utilizado pelos belo- -horizontinos para caminhadas junto da mata, piqueniques com familiares e amigos, muitas manifestações culturais, espontâneas ou organizadas: é lugar de relacionamento, convivência, e também símbolo da preservação ecológica e da importância dos espaços verdes para a vida da cidade.

O amor à cidade, à montanha, à natureza e a resistência à mineração se integram ali, na Praça do Papa. Numa praça, o amor, a história e a po- lítica se apresentam intimamente articulados. Ali, as pessoas se reúnem para manifestações culturais de grande público, ou de som intimista, num espaço capaz de conter diversidades e condensar múltiplas vivências.

Para todos, é a “Praça do Papa”, embora ela tenha outro nome oficial, por todos ignorado e dispensado. Aquele local está marcado pela presença do pró- prio João Paulo II (*1946 -†2005): ao visitar Belo Horizonte, em sua primeira visita ao Brasil, em 1980, justamente ali ele teve um encontro com os jovens. E não só eles subiram a montanha para encontrar-se com o Papa: a cidade esteve lá

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e ficou marcada com a figura afetiva e religiosa de João Paulo II. Sobretudo uma frase permanece vivamente presente para o povo de Belo Horizonte: enquanto João Paulo II lia um discurso em português, espontaneamente interrompeu a leitura, olhou para a grande concentração de jovens emoldurada pelo horizonte totalmente aberto ao infinito, e segredou: “Olho para vocês e vejo um belo hori-

zonte!”. A frase marcou profundamente a identidade do povo belo-horizonti-

no, por uma valorização simples e espontânea do Papa, em plena sintonia com a sensibilidade do povo local, apontando a unidade sutil e íntima entre povo, montanha, horizonte de totalidade, abertura para o infinito; passado, presente e futuro integrados e pulsando em uníssono. Continua sendo a “Praça do Papa” para o povo que ali solidifica a memória coletiva daquele encontro de almas.

A vinculação entre essa memória coletiva e aquele local ficou especial- mente evidente quando da morte do Papa João Paulo II, em 2005: grande quantidade de pessoas se dirigiu para lá, mais do que para igrejas ou ce- lebrações em homenagem a ele. Ali deixaram flores, sobretudo brancas e amarelas (as cores do Vaticano), tomando posição, confirmando o valor da figura de João Paulo II para a vida da cidade de Belo Horizonte.

Naquela praça, de diversas maneiras, história, natureza, política e religiosidade estão vivamente integradas.

Não à toa, na “Praça do Papa” há um grande crucifixo e junto dele outro monumento, simbolizando, justamente, a integração de dois movi- mentos: da terra em direção ao céu e do céu em direção à terra – síntese total em um lugar onde as pessoas vão simplesmente para contemplar o horizonte infinito, admirar do alto a vista da cidade na sua totalidade, ficar quietos, sozinhos, ou ao lado de amigos.

Nessa atitude de certo silêncio e experiência de quietude é que se che- ga a colher o elemento sutil que une, e reúne, os elementos todos. E como Edith Stein escreve ao explanar sobre o núcleo da pessoa, nesse âmbito de experiência, não apenas reconhecemos os elementos fundamentais de bem, beleza e justiça, mas os aninhamos em nós e vivemos deles (stein, 2013). Podemos dizer que reconhecemos o elemento sutil e vital-espiritual, cons- tituinte de nós mesmos, e da realidade, como um valor. Reconhecemos o

valor da própria história, e da própria vida, mas sobretudo, com quietude e gratidão, admiramos nossa pessoalidade ativada como vida mesma.

Lá do alto, na “Praça do Papa”, olhando a cidade no seu conjunto, reconhecemos uma integração de todos os elementos, e reconhecemos também o valor e a força de elementos sutis para a constituição da vida pessoal e social.

5. mobilizar aS forçaS que orientam a dimenSão