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o ciclo daS políticaS públicaS: uma viSão complexa a partir doS municípioS

contribuições do ciclo de políticas públicas e da inovação

2. o ciclo daS políticaS públicaS: uma viSão complexa a partir doS municípioS

A ideia de ciclo de políticas públicas é extremamente útil para fins didá- ticos, mas profundamente insuficiente para uma compreensão realista e avançada das políticas públicas, por dois motivos: (1) os avanços dos estu- dos nas últimas décadas demonstram que cada uma das “etapas” do ciclo envolve complexidades próprias, e (2) as especificidades institucionais brasileiras (federalismo, regime constitucional de competências, centra- lismo do governo federal, disparidades entre as unidades da federação) acrescentam limitações e incertezas à autonomia dos agentes públicos.

Pensar que políticas públicas se estruturam de forma linear – seguin- do uma ordem cronológica e racional que começa com a formulação de uma política, tem seguimento com a implementação de programas e se conclui com a avaliação de resultados e eventual revisão da política (que é a ideia básica do ciclo de políticas públicas) – é uma forma excelente de se iniciar nos estudos com uma visão ordenada dos fenômenos a analisar. Entretanto, décadas de estudos já mostraram que linearidade e raciona- lidade (“racional” no sentido de domínio completo dos atores sobre to- das as variáveis intervenientes nos processos decisórios) não são a regra nos processos de desenvolvimento de políticas públicas (e nem na gestão empresarial privada, área em que vários desses estudos tiveram origem). A simplicidade da ideia do ciclo deve ser “temperada” com modelos analíticos mais complexos e com a compreensão sobre os constrangimen- tos institucionais que afetam os governos, permitindo aos estudiosos e gestores entender como as políticas públicas se estruturam na realidade e,

portanto, como podem atuar para criar, reorganizar e melhorar as políticas tendo em mente as necessidades dos seus concidadãos.

Sem pretender apresentar uma revisão completa da evolução dos modelos de análise de políticas públicas (para isso há excelentes manuais introdutórios, como saravia e ferrarezi, 2006; peters e Pierre, 2002) nem da com- plexidade das instituições e realidade brasileiras (abrucio, 2002; veloso et al., 2011; arretcHe, 2015), é importante pontuar algumas ideias centrais para dissipar a eventual ingenuidade de analistas e gestores novatos no setor público.

A formulação de políticas públicas geralmente é um processo muito mais baseado nas respostas/soluções/instrumentos disponíveis aos gestores do que em ideias totalmente originais ou planos realizados sem atenção às limitações organizacionais e às realidades locais e/ou setoriais. Essa é uma das ideias centrais do modelo “garbage can/lata do lixo” de escolha orga- nizacional e de decisão de política pública (coHen et al., 1972). O modelo não aponta que as decisões são ruins por natureza (por terem vindo da “lata de lixo”), mas que o processo de construção das decisões/políticas públicas depende da confluência de processos que se inter-relacionam sem o controle por parte de nenhum ator, como as preferências de diversos agentes (como políticos, técnicos, sociedade), tecnologias/recursos disponíveis no momen- to, e aportes de diferentes participantes (como os servidores e ocupantes de cargos públicos) em termos de conhecimento, experiência e competências.

Os fortes constrangimentos institucionais sobre os municípios brasileiros compõem parte significativa das restrições e também de várias possibilidades da “lata de lixo” à disposição dos formuladores de políticas públicas dessa esfe- ra federativa. Municípios maiores, como as capitais de estado, com orçamentos volumosos, disponibilidade de recursos humanos com maior especialidade de formação/experiência, com sociedade civil mais organizada e independente, sofrem, por sua vez, com problemas extremamente complexos e que, por isso, têm custo exponencialmente mais alto em termos financeiros e de desenho de soluções (como transporte urbano, promoção de igualdade de acesso no extenso território a serviços públicos essenciais como saneamento, coleta de lixo, emprego, saúde especializada, cultura). Municípios menores, a despeito

gestão municipal no brasil modernização, cooperação e humanização

da fragilidade orçamentária e da escassez de recursos humanos, têm um repo- sitório de programas federais (e, em algumas regiões, de programas estaduais) aos quais aderir e a partir dos quais construir conhecimento sobre a realidade municipal e as condições de aperfeiçoar estratégias dentro da margem de discricionariedade disponível aos gestores municipais.

A implementação das políticas públicas, por sua vez, é a etapa do ciclo que, talvez, esteja passando por maiores avanços analíticos no Brasil, devido aos estudos mais recentes (faria, 2012). Desde os anos 1970 já sabemos que a implementação não é simplesmente a execução linear e mais ou menos precisa de planos (pressman e WildavsKY, 1984 [1973]), mas um processo não sequencial, marcado por decisões incrementais de atores estatais e não estatais e influenciado por aspectos de diversas naturezas (políticos, organi- zacionais, legais, orçamentários, sociais, tecnológicos) (lindblom, 1979). A implementação de políticas públicas, portanto, não é mera execução de plano, mas um conjunto de decisões, tomadas por diversas instituições e atores, mais ou menos conflituosas (caso os conflitos não tenham sido “resolvidos” na formulação da política, e geralmente não o são). No Brasil, o principal exemplo de implementação como conjunto de decisões são as políticas sociais, que dependem de definições dos três níveis da Federação devido à competência constitucional comum: legislação geral e normativas e elaboração da política no nível federal, estruturação dos níveis de serviço no plano estadual/regional (e intramunicipal, no caso de municípios gran- des que descentralizam a política no território), e organização de serviços das mais variadas categorias na ponta, para os cidadãos, no nível municipal, coordenando burocracias, políticos (vereadores), organizações sociais e sociedade civil. Outro ator que interfere na implementação de políticas no Brasil é o Poder Judiciário, por meio da judicialização das políticas, principalmente na saúde, aportando alto grau de incerteza e conflito.

Em políticas de infraestrutura que afetam a maioria dos municípios, como saneamento, transportes e urbanização, fatores como coordenação entre os entes da federação, arranjos de financiamento, capacidade técnica e burocrática compreendem, em geral, o conjunto de decisões realizadas ao longo do processo

de implementação e com alto grau de conflito. Experiência recente sobre proje- tos de infraestrutura nacionais indica as dificuldades dos governos municipais para garantir capacidade técnica adequada, e dos governos federal e estaduais para coordenar equipes multidisciplinares e intergovernamentais e garantir a estabilidade do financiamento, o que afeta não só o resultado das políticas mas também aumenta o custo de sua implementação (gomide e pereira, 2018).

Finalmente, a etapa da avaliação das políticas públicas é tida como a últi- ma fase do ciclo, aquela que mede os resultados, julga a política em face desses resultados e permite sua melhoria e a responsabilização dos agentes públicos. Essa concepção instrumental pressupõe que a avaliação sempre tem como objetivo aperfeiçoar as políticas públicas, e que tal finalidade é exclusiva e in- dependente de constrangimentos políticos e institucionais. Como já mostrou a reflexão de países (como os eua) que realizam avaliação há muitas décadas, ela também serve a outras finalidades (como aprendizado técnico e institucio- nal, angariar apoio a mudanças já pretendidas/decididas na política) (faria, 2005), e depende fortemente de condições institucionais (conhecimento técnico, engajamento dos funcionários). No Brasil, seu desenvolvimento é bem mais recente e seu uso é pouco difundido para além de alguns ministérios e órgãos especializados (como ipea) do governo federal (jannuzzi, 2011), especialmente devido a seus custos administrativos e políticos.

Com o objetivo de inspirar gestores públicos e estudantes do campo de políticas públicas, realizamos a seguir o exercício de conectar o ciclo de políticas públicas com o tema da inovação e apresentar algumas expe- riências com viés prático. Pretendemos, com isso, ampliar a visão sobre o ciclo de políticas públicas e apresentar outras abordagens possíveis, dentre várias existentes (cavalcante, mendonça e brandalise, 2019).

3. o ciclo de políticaS e a inovação como conceito