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SuStentadoreS da dinâmica vital comunitária na cidade

Miguel Mahfoud

3. SuStentadoreS da dinâmica vital comunitária na cidade

Podemos identificar em Belo Horizonte alguns sustentadores de sua carac- terística dinâmica vital. Um deles, certamente, é o Grupo Galpão. O grupo teatral nasce em 1982, aliado à tradição do teatro de rua, mantendo-se como trupe de teatro popular mesmo em peças bastante sofisticadas. Com “A rua da amargura: 14 passos lacrimosos sobre a vida de Jesus” (adap- tação da clássica peça O Mártir do Calvário de Eduardo Garrido), ganha grande notoriedade e reconhecimento na cidade no início da década de 1990 com a proposta de estilo circo-teatro, fortemente ancorada na reli- giosidade popular. Na peça “Romeu e Julieta”, o Grupo Galpão (2003) se torna provocação à valorização da cultura local com evidente abertura à

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integração viva e autêntica com outras culturas: tomam o texto clássico de Shakespeare com uma estética popular e rural, bem ao gosto de Belo Horizonte e Minas Gerais, integrando cantigas de roda e serestas tradicio- nais que ganham sentido todo próprio, ao mesmo tempo em que fecundam de familiaridade e sensibilidade local aquela história clássica da literatura universal, com uma conjugação plenamente harmônica entre erudito e popular. Tal capacidade de articulação – com potência de gerar sínteses novas e ancoradas na cultura local e universal – sintoniza-se de forma especial com a dinâmica vital própria de Belo Horizonte, favorecendo-a. Interessante também o fato de o Grupo Galpão ter chegado a apresentar essa peça no Globe Theatre (o histórico teatro em que Shakespeare apre- sentava suas peças, em Londres) em duas ocasiões, sempre com grande sucesso, ainda que representando em português, com cantigas de nossa tradição, com instrumentos rústicos populares locais, atuando sobre e em torno de um automóvel como nos teatros de rua. A força que o Grupo Galpão tem para a vida da cidade é evidente quando este se apresenta em praças públicas, sempre reunindo milhares de pessoas numa sintonia e silêncio comovedores.

Outro personagem significativo de Belo Horizonte, que podemos considerar um sustentador da comunidade local, é o compositor e instru- mentista Toninho Horta (*1948), membro do famoso grupo “Clube da Esquina” (composto também por Milton Nascimento, Wagner Tiso, Lô Borges, Beto Guedes e Márcio Borges) que, reunindo-se no bairro Santa Teresa na década de 1960, marcou a história da música popular brasileira ao gerar um movimento musical com características originais e enraiza- das na cultura local. Toninho Horta tem incidência no jazz internacional e muitos admiradores inclusive no Japão; com musicalidade altamente sofisticada, é ao mesmo tempo reconhecido pelo grande público como um ícone da música local. Um notável exemplo da complexidade aliada à simplicidade, tão característica da cultura belo-horizontina, é o fato de há anos Toninho Horta ser encontrado tocando violão num boteco da família, bem rústico, no bairro de Santa Teresa: simplesmente tocando em

roda com tantos músicos que se reúnem pelo gosto de tocarem juntos a autêntica música local, reunindo sempre grande número de admiradores em torno deles, mesmo em pé, participando do acontecimento cultural e comunitário.

Os contadores de histórias e causos são outros sustentadores da di- nâmica vital da cidade de Belo Horizonte. São vários os grupos de conta- dores, e frequentes eventos e cursos os agregam à cidade. Numa dinâmica de intenso e vivo relacionamento com o público, a contação busca tornar presença o conteúdo narrado. Grandes projetos sociais integram os con- tadores de história como recurso vitalizador de seus processos. Mesmo na Universidade Federal de Minas Gerais (ufmg), um projeto da Faculdade de Letras utilizou por muitos anos contadores de histórias para levar os mitos gregos às escolas públicas da cidade; e a Faculdade de Medicina por várias vezes incorporou o “Grupo Miguilim”, de jovens e adolescentes con- tadores, da cidade natal de Guimarães Rosa, especializados em declamar contos roseanos na dinâmica de contação de histórias, com grande força de enraizamento (miziara; maHfoud, 2006). Através de histórias tra- dicionais e relatos autorais, repetição de causos conhecidos ou originais, a contação veicula certa sofisticação técnica com elementos proposital- mente simples, tornando-se força construtiva da cultura local segundo sua dinâmica característica e seu modo próprio de lidar com paradoxos.

Outro personagem, muito significativo para a cidade de Belo Hori- zonte, que podemos considerar como sustentador, é Pe. Pigi Bernareggi (*1939-†2021), missionário italiano que, chegando ao Brasil no início da década de 1960, inseriu-se desde logo na periferia belo-horizontina. Por muitíssimos anos se dedicou às comunidades locais enfrentando o problema de moradia urbana em favelas e bairros populares, apoiando movimentos sociais dos sem-casa. Sua presença mobilizadora junto à co- munidade, sempre explicitamente baseada na Doutrina Social da Igreja, incluía sua participação ativa nos trabalhos de pedreiros nos mutirões de construção de casas ou capelas nos bairros populares, ainda que conti- nuasse a trabalhar como professor de filosofia na Pontifícia Universidade

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Católica de Minas Gerais. Pode-se afirmar, sem receio de errar, que todo o bairro Primeiro de Maio e o Jardim Felicidade se estruturaram a partir dos movimentos populares sustentados pela presença de Pe. Pigi ao longo de muitos anos. A experiência comunitária naqueles bairros teve grande impacto nos movimentos populares brasileiros na década de 1980, período de final da ditadura militar e início da redemocratização do país (projeto HistÓria viva, 2008).

Muito interessante notar que, mesmo sendo estrangeiro, Pe. Pigi se tornou um sustentador da comunidade na cidade. O modo como ele se introduziu em bairros periféricos e favelas, parece indicar um fator- -chave para isso. Em certa ocasião, perguntaram-lhe como ele lidava com o estranhamento cultural, sendo estrangeiro e originário de outro nível socioeconômico. A resposta foi surpreendente: o que ele estranhava era aquela pergunta, porque a experiência que ele fazia não era de chegar à comunidade local levando algo externo – o que justificaria certo choque, incompreensão – e exigiria um trabalho para superar o distanciamento en- quanto ele afirmaria elementos importantes para si e sua cultura. Pelo con- trário, o que ele encontrava era uma profunda sintonia humana numa vida comunitária efetiva, deixando-o tão à vontade, que às vezes se sentia mais em casa do que em sua própria casa e em seu próprio país. Responde que era possível construir a partir do reconhecimento de um elemento de valor no outro, ao qual você deseja sinceramente se associar, ser comunidade; e não se constrói quando se quer colocar ali algo que não está, entrando em relacionamento para modificar o outro, quando se instaurou a dinâmica de estranhamento, distanciamento e luta contra a realidade. Pelo contrário, Pe. Pigi entrava na relação viva; ele é quem era introduzido naquela dinâmica comunitária, e por isso tinha condições de ajudar pessoas e comunidades a crescerem; podia contribuir para que aquela dinâmica sutil, construtiva, vital e decisiva para que relações pessoais e sociais significativas se confi- gurassem sempre mais. Assim, ele foi formador da vida social cotidiana, formador de movimentos sociais, a ponto de incidir na constituição física da cidade com a estruturação e urbanização dos bairros populares.

Com tal disposição humana radicalmente simples e profunda, Pe. Pigi mostrou à cidade que a favela não era algo a ser eliminado, mas valorizado pela capacidade construtiva e geradora de vida e humanidade, como fenô- meno humano que tem a contribuir com toda a sociedade (bernareggi; resi, 1982).

Ele é sustentado não por autoridade formal ou cargo funcional, mas por compartilhar intimamente a vida na comunidade, ajudando a consti- tuir a realidade que também o gera.

Vale aqui destacar que os movimentos sociais nos bairros Primeiro de Maio e Jardim Felicidade originaram propostas oficiais da Prefeitura de Belo Horizonte como o Pró-Favela, buscando favorecer o mundo de relações já existentes naquele contexto comunitário popular, gerador de vida e organização social durante os processos de urbanização, tomando as vivas relações comunitárias como recursos sociais (freitas, 2018).

Vê-se como a sensibilidade e as tomadas de posição enraizadas em al- guém pode se tornar gerador de dinamismo comunitário e social, chegan- do a formular leis específicas sistematizando, de modo original, políticas públicas de enfrentamento de problemas concretos e graves da população.