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1. NEUTRALIDADE DA REDE: UMA INTRODUÇÃO AO DEBATE

2.1. A matriz institucional da neutralidade da rede no Brasil

2.1.1. Ambiente regulatório

Até a primeira metade dos anos 1990, o setor de telecomunicações brasileiro era composto predominantemente por empresas estatais. Telecomunicações, assim como diversos outros setores de infraestrutura, era um setor considerado parte da estratégia de “segurança nacional” que se iniciou nos anos 1930 e desenvolveu-se ao longo do período militar, e que se baseava essencialmente no papel ativo do Estado na economia (Pinheiro, 2000). A partir dos anos 1980, os setores de infraestrutura no País passaram por uma fase de colapso econômico; conforme referido por Pacheco (2008), esses setores demandavam investimentos para o aumento de sua capacidade, inalcançáveis por um Estado endividado e em crise fiscal. Em 1995, a Emenda Constitucional n. 8 alterou esse cenário, abrindo espaço

para o fim do monopólio estatal no setor de telecomunicações, permitindo que empresas privadas pudessem operar por meio de autorizações, concessões ou permissões, em uma estratégia que aproveitou elementos da reforma empreendida nos EUA (como a quebra da AT&T e criação das baby bells) e no Reino Unido (como a regulação assimétrica entre empresas incumbentes e novos atores)110.

No mesmo ano de 1995, o Ministério das Comunicações emitiu a Norma n. 004/1995, dispondo sobre o uso de meios da rede pública de telecomunicações para acesso à internet. Por meio dessa regra, surge pela primeira vez no ordenamento nacional o conceito de serviço de valor adicionado aplicado à internet. Pela regulação brasileira, os serviços de telecomunicação abrangem a “transmissão, emissão ou recepção, por fio, radioeletricidade, meios ópticos ou qualquer outro processo eletromagnético, de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza”111. Esse tipo de serviço não se confunde com os serviços de valor adicionado, que são as atividades que “acrescentam, a um serviço de telecomunicações que lhe dá suporte e com o qual não se confunde, novas utilidades relacionadas ao acesso, armazenamento, apresentação, movimentação ou recuperação de informações”112.

A Norma n. 004/1995 tratou de considerar o serviço de conexão à internet como um serviço de valor adicionado; tal classificação revelou-se importante no período pré-abertura do setor, visto que afastou essa atividade do monopólio estatal (até então restrito a serviços de telecomunicação), permitindo que a iniciativa privada pudesse explorar serviços de conexão à internet sem a necessidade de autorizações do poder público. Para garantir que empresas que exercessem atividades de conexão à internet pudessem enviar e receber, livremente, pacotes de dados por meio da infraestrutura física de empresas de telecomunicações, a Norma n. 004/1995 estabelecia que era vedado que estas empresas discriminassem diferentes provedores de acesso à internet quando do uso de suas redes113, o que pode ser visto como a primeira regra geral de não discriminação de dados prevista no ordenamento brasileiro (nesse caso, diretamente direcionada a PCI que se utiliza das redes de infraestrutura).

110

Para uma visão ampla sobre o processo de desestatização do setor de telecomunicações no Brasil, ver Pereira Neto (2005).

111

Lei n. 9.472/1997 (Lei Geral de Telecomunicações – LGT), art. 60, § 1.º.

112

LGT, art. 61.

113

Com a publicação da Lei n. 9.472/1997 (Lei Geral de Telecomunicações – LGT), há a definitiva transição entre um Estado participante no setor de telecomunicações e o Estado regulador que, por meio da Anatel, passou a exercer um papel indutor do desenvolvimento no setor, estimulando a competição e a diversidade dos serviços. Nessa lei, o conceito de não discriminação aparece agora diretamente voltado a usuários de telecomunicações, que passam a ter o direito de não serem discriminados quanto às condições de acesso e fruição do serviço114.

Com o avanço da banda larga no Brasil e a convergência entre aqueles que detêm a infraestrutura de rede e aqueles que possibilitam o acesso à internet, começam a surgir, no âmbito da Anatel, preocupações a respeito de discriminação do tráfego de dados por provedores de acesso, que foram incorporadas aos regulamentos da Anatel que tratam do Serviço de Comunicação Multimídia (SCM) e do Serviço Móvel Pessoal (SMP), que podemos resumir da seguinte forma:

Tabela 5. Obrigações de não discriminação previstas nos regulamentos da Anatel

Obrigação legal Referência legal Resolução 614/13 (SCM) Resolução 477/07 (SMP)

Obrigação de disponibilizar o uso das redes SCM e SMP para provimento de SVA de forma não discriminatória e a preços e condições justas e razoáveis

art. 7.º e art. 8.º art. 60 Obrigação de fornecer o serviço em condições não discriminatórias a

todos os usuários

art. 38, art. 56,

III e art. 47, VII art. 6.º, II Obrigação de oferecer os serviços a preços justos, equânimes e não

discriminatórios (podendo variar em função de características técnicas, de custos específicos e de comodidades e facilidades ofertadas aos usuários)

art. 68 art. 35

Em suma, o ambiente regulatório brasileiro, antes do Marco Civil, trazia disposições sobre não discriminação entre usuários, entre provedores de acesso, entre diferentes serviços de valor adicionado e no contexto de interconexão; ainda que essas regras sejam bastante amplas, sua interpretação isolada não permite inferir que havia, no Brasil, uma regra geral de neutralidade da rede, visto que nenhum desses regulamentos traz especificamente uma regra de não discriminação e bloqueio de pacotes de dados trafegados por meio da internet. Há, nas regulações sobre não discriminação emitidas no âmbito da Anatel, uma preocupação maior com a competição e a isonomia entre os usuários, e não necessariamente com a

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preservação de um modelo aberto de internet. A inclusão genérica da neutralidade da rede no regulamento do SCM em 2013 pode ser considerada um primeiro passo à introdução desse conceito na moldura regulatória brasileira.

QUADRO 7. QUALIDADE DE SERVIÇO E A REGULAMENTAÇÃO DA ANATEL

Os níveis de Qualidade de Serviço que devem ser garantidos por provedores de acesso são regulados pela Anatel. As Resoluções n. 574 e n. 575 de 2011 definiram o processo de aferição dos indicadores de qualidade das redes de telecomunicações que suportam o acesso à internet em banda larga no Brasil.

A partir de 2014, os provedores de acesso à internet via SCM ou SMP devem garantir que, durante o período das 10 horas às 22 horas, a taxa de transmissão instantânea115 e a taxa de transmissão média116 sejam, respectivamente, maiores que 40% e 80% que a velocidade contratada pelo usuário, conforme as medições feitas pela Entidade Aferidora da Qualidade (EAQ). Na banda larga fixa, também são avaliadas a latência, jitter, a perda de pacotes e a disponibilidade do serviço117. Ainda que provedores de acesso sejam alvo de muitas reclamações de usuários118, as metas na banda larga têm sido em sua maioria cumpridas (a tabela 6 a seguir mostra a aferição de QoS dos quatro principais provedores de acesso de banda larga fixa do País em setembro de 2014, destacando em vermelho as metas não atingidas, segundo dados da Anatel); ainda que haja déficits regionais de infraestrutura e capacidade de rede, não há atualmente evidências de que existe, por exemplo, uma congestão sistêmica nos centros mais povoados119. Situação semelhante é encontrada na banda larga mobile120, ainda que, nas capitais, a Anatel tem apontado falhas das operadoras em cumprir as metas estabelecidas121.

115

Mediana dos valores de velocidade das amostras coletadas em cada medição, considerando para aferição da meta 95% das medições.

116

Média aritmética simples dos resultados das medições de Velocidade Instantânea, realizadas durante um mês.

117

Segundo definições da Resolução n. 574/2011: latência – período de transmissão de ida e volta de um pacote, entre a casa do voluntário e o servidor de medições; jitter (variação de latência) – instabilidade na recepção da informação (pacotes de dados); perda de pacotes – ocorre quando, por falha ou baixa qualidade da conexão, um dos pacotes não encontra seu destino ou é descartado pela rede; e disponibilidade – período durante o mês em que o serviço ofertado pela prestadora esteve disponível para o usuário.

118

Segundo o Procon, os grupos Telefônica, Claro/América Móvil, TIM e Oi ocupam, respectivamente, o 1.º, 2.º, 7.º e 8.º lugares no ranking de empresas mais reclamadas de 2014 (Disponível em: <http://goo.gl/LD1N1H>. Acesso em: 15 jan. 2015). O cenário é semelhante se usarmos como referência o ranking do site Reclame Aqui, em que o grupo Claro/América Móvil, Telefônica, Oi e TIM ocupam respectivamente o 1.º, 2.º, 3.º, e 5.º lugares (Disponível em: <http://goo.gl/fbjg> Acesso em: 15 jan. 2015).

119

É preciso destacar o importante papel que o CGI.br tem exercido no controle de tráfego nos centros mais povoados, especialmente o projeto PTTMetro, que promove a infraestrutura de Pontos de Troca de Tráfego (Internet Exchange Points – IXP) entre as redes dos principais provedores de acesso e provedores de trânsito (Disponível em: <http://goo.gl/efeBvT>.Acesso em: 15 jan. 2015). O uso de infraestruturas públicas de PTT, conforme apontado constantemente pela literatura especializada, tem desempenhado um papel importante na promoção do desenvolvimento da banda larga, reduzindo o custo transacional entre provedores de acesso e provedores de trânsito e aumentando as eficiências das redes locais. Nesse sentido, ver Jensen (2009).

120

Nesse sentido, ver: <http://goo.gl/FKGylR>. Acesso em: 15 jan. 2015.

121

Tabela 6. Cumprimento de Qualidade de Serviço na Banda Larga Fixa UF Indicador Velocidade Instantânea Velocidade Média Latência Variação da Latência (jitter) Perda de Pacotes Disponibilidade Meta 95,00% 70,00% 90,00% 90,00% 90,00% 90,00% AC OI 90,16% 79,82% 68,68% 98,90% 88,88% 92,85% AL GVT 100,00% 99,02% 95,62% 99,78% 95,05% 94,44% NET 95,65% 92,86% 99,07% 99,85% 93,25% 100,00% OI 95,46% 81,41% 77,84% 98,58% 63,43% 90,62% AM NET 96,05% 96,48% 98,17% 99,84% 91,98% 96,42% OI 99,37% 84,25% 93,50% 98,96% 94,29% 100,00% BA GVT 100,00% 102,38% 96,29% 99,21% 92,73% 100,00% NET 97,66% 101,60% 97,30% 97,66% 94,85% 100,00% OI 95,23% 81,62% 81,18% 95,76% 65,16% 95,45% CE GVT 100,00% 101,25% 98,57% 99,40% 98,31% 96,87% OI 95,60% 79,02% 88,50% 96,85% 83,90% 100,00% DF GVT 100,00% 98,81% 99,59% 100,00% 86,78% 100,00% NET 100,00% 100,70% 98,42% 99,35% 95,91% 100,00% OI 97,97% 85,60% 89,41% 96,75% 91,80% 95,65% ES GVT 99,74% 101,51% 97,62% 97,93% 94,66% 100,00% NET 99,87% 103,62% 98,71% 98,85% 95,34% 100,00% OI 97,71% 85,19% 92,15% 98,61% 89,38% 96,00% GO GVT 98,84% 102,86% 99,86% 100,00% 89,18% 100,00% NET 99,47% 98,71% 98,59% 98,82% 97,19% 100,00% OI 99,77% 89,94% 96,15% 97,85% 92,69% 95,65% MA NET 97,00% 93,77% 97,39% 99,30% 96,58% 95,83% OI 93,32% 81,10% 81,63% 98,87% 75,03% 93,75% MT GVT 98,56% 101,92% 99,44% 100,00% 91,26% 100,00% NET 100,00% 99,32% 98,79% 100,00% 93,63% 100,00% OI 96,85% 81,76% 82,02% 98,96% 86,89% 90,47% MS GVT 100,00% 100,90% 98,69% 100,00% 94,89% 100,00% NET 99,68% 101,67% 96,21% 98,49% 89,66% 100,00% OI 99,49% 87,98% 83,45% 97,15% 91,20% 100,00% GVT 98,56% 103,37% 99,86% 100,00% 98,14% 96,42% NET 100,00% 102,27% 98,95% 100,00% 97,46% 100,00% OI 96,92% 85,26% 94,34% 98,66% 85,20% 98,43% PA NET OI 99,49% 96,32% 99,39% 79,52% 89,13% 65,82% 99,61% 97,51% 91,97% 88,18% 100,00% 95,00% PB GVT 100,00% 96,61% 97,40% 99,84% 93,17% 100,00% NET 95,05% 94,51% 97,41% 99,00% 95,94% 100,00% OI 99,46% 83,25% 96,47% 99,59% 81,30% 96,55% PR GVT 99,72% 101,51% 99,49% 99,46% 93,68% 93,33% NET 100,00% 102,83% 99,28% 99,72% 95,79% 100,00% OI 95,54% 80,34% 97,50% 100,00% 88,77% 93,75% PE GVT 99,01% 96,99% 98,56% 99,73% 94,05% 95,00% NET 85,71% 80,03% 95,91% 100,00% 95,33% 100,00% OI 89,76% 69,55% 84,91% 97,38% 54,33% 94,11% PI NET 99,56% 101,18% 99,34% 100,00% 96,51% 100,00% OI 95,19% 81,76% 83,47% 96,57% 84,32% 96,15% RJ RN GVT 97,85% 100,79% 98,29% 99,42% 92,66% 100,00% NET 99,43% 101,47% 98,66% 99,29% 97,19% 98,11% OI 98,48% 84,32% 95,97% 99,36% 85,15% 92,00% NET 99,07% 98,95% 99,77% 100,00% 86,26% 100,00% OI 96,02% 79,07% 95,56% 99,82% 67,91% 100,00% RS GVT 95,68% 93,13% 94,52% 98,04% 92,34% 100,00% NET 99,44% 97,11% 97,76% 99,15% 97,24% 100,00% OI 98,03% 80,97% 91,35% 99,40% 80,63% 91,89% RO OI 92,76% 80,45% 71,90% 95,30% 83,92% 95,65% RR OI 87,82% 75,37% 0,00% 98,41% 84,37% 93,54% SC GVT 98,74% 98,62% 97,07% 98,75% 89,61% 96,55% NET 98,31% 102,45% 98,69% 99,27% 98,09% 100,00% OI 99,68% 87,34% 92,70% 98,46% 94,67% 94,87% SP GVT 95,44% 99,99% 95,54% 94,52% 94,82% 100,00% NET 99,95% 101,19% 98,01% 99,57% 97,47% 98,75% VIVO 99,27% 90,60% 93,80% 98,92% 91,05% 97,63% SE OI 98,57% 83,76% 76,97% 97,12% 88,73% 100,00% TO OI 91,53% 79,64% 90,39% 99,50% 89,90% 100,00%