• Nenhum resultado encontrado

Conexões diretas: as rotas de fuga das Interconexões

4. OS CONFLITOS TELEOLÓGICOS DA NEUTRALIDADE DA REDE: A

4.1. Neutralidade da rede e liberdade de modelos de negócio

4.1.2. Conexões diretas: as rotas de fuga das Interconexões

Como discutido no item anterior, a internet é composta por uma série de Sistemas Autônomos, cuja interconexão é necessária para o funcionamento da rede. Ainda que haja grande nível de competição entre provedores de trânsito, nada impede que um provedor de aplicações contrate diretamente a própria rede do provedor de acesso para entregar seu conteúdo aos usuários. Com provedores de acesso com redes cada vez mais vascularizadas e os diversos movimentos de fusões e aquisições no setor, grandes provedores de acesso conseguem atingir grande parte de um território, muitas vezes sem a necessidade de outros acordos de interconexão, diminuindo as rotas e aumentando a eficiência dessas redes – o que não significa que a presença de conexões diretas levaria à extinção do papel de provedores de trânsito e das interconexões, dado que a integração por meio de uma conexão direta não significa necessariamente um ganho de eficiência, pois provedores de trânsito podem utilizar-se de tecnologias e sistemas de otimização de tráfego que tornariam as interconexões de sua rede mais rápidas do que uma conexão direta. Além disso, disputa por preços entre provedores de acesso e provedores de trânsitos para oferecer serviços para grandes provedores de aplicações é um elemento importante para garantir o nível de competição no

backbone da rede.

Gráfico 16. Modelo explicativo de conexão direta entre provedor de aplicação e provedor de acesso

Nem o Marco Civil tampouco o regulamento da Anatel impedem conexões diretas entre provedores de acesso e provedores de aplicação. No caso brasileiro, essas conexões diretas são ainda mais comuns, tendo em vista que parte relevante dos backbones de grande distância no País é controlada direta ou indiretamente por provedores de acesso253. Ou seja, do ponto de vista de um grande provedor de aplicação ou de um grande provedor de hospedagem de aplicações, pode ser economicamente interessante contratar diretamente

253

uma conexão direta com um grande provedor de redes de backbone. Isso não possui, em tese, qualquer relação com a neutralidade da rede e discriminação de pacotes.

Todavia, pode haver situações em que uma decisão sobre contratar um provedor de trânsito que irá realizar interconexões ou contratar uma conexão direta com um provedor de acesso pode conflitar com a regra de neutralidade da rede disposta no Marco Civil. Pode haver situações em que determinado provedor de acesso utiliza-se de sua posição de

gatekeeper da rede para distorcer a competição no nível do backbone, por meio de

discriminações de tráfego que neutralizem ganhos de eficiência de tecnologias de provedores de trânsito, diminuindo a qualidade de entrega de conteúdo para usuários e estimulando que provedores de aplicações possam conectar-se diretamente às redes do provedor de acesso – o que levaria a maiores ganhos de rentabilidade, pois o provedor de acesso não precisaria pagar pela estrutura de interconexão de provedores de trânsito.

A situação hipoteticamente descrita supra tornou-se um exemplo real nos EUA em 2014, com grande repercussão na mídia especializada. No início de 2014, clientes do provedor de acesso Comcast, que eram usuários da Netflix – que, em termos de volume de tráfego de dados, é hoje o maior provedor de aplicações dos EUA –, estavam experimentando uma baixa qualidade de conexão ao acessar filmes e séries da Netflix, com excesso de buffering e baixa qualidade de resolução (Sottek, 2014).

Em fevereiro de 2014, a Netflix fechou um acordo para a conexão direta entre os servidores da empresa e as redes da Comcast (Musil, 2014)254. O anúncio recebeu grande cobertura da imprensa estadunidense, que adotou um tom crítico para referir-se ao acordo como uma fast lane que estava sendo desenvolvida entre as duas empresas para a entrega preferencial do conteúdo da Netflix (Wu, 2014). A própria Netflix soltou uma série de comunicados oficiais, em que se colocava na posição de “refém” da Comcast, argumentando que o acordo foi a única forma encontrada para entregar o conteúdo com qualidade para seus usuários (Sottek, 2014)255. Em resposta, a Comcast afirmou que a baixa qualidade para acesso ao conteúdo Netflix de seus usuários era causada por uma congestão sistêmica em

254

Acordos semelhantes foram posteriormente executados com a AT&T e Verizon ( Disponível em: <http://goo.gl/bFOJTC>. Acesso em: 10 dez. 2014).

255

O ativismo do Netflix nesse tema também foi percebido durante o processo de análise, pela FCC, da fusão entre Comcast e Time Warner, em que o Netflix enviou um documento de 256 páginas demonstrando as consequências adversas que essa fusão poderia causar para o mercado de vídeos online (Disponível em: <http://goo.gl/ihFeSg>. Acesso em: 20 nov. 2014).

suas redes desde o fim de 2013, e que a conexão direta era a única forma de resolver esse problema de congestão (Thielman, 2014).

Duas revelações importantes colocaram mais evidência nesse acordo. A Level 3, principal provedor de trânsito dos EUA e que, com a Cogent, oferecia desde 2012 serviços de conexão para a Netflix antes do acordo com a Comcast (e que, portanto, foram as empresas prejudicadas com o acordo), publicou uma série de gráficos comprovando que não havia evidências de uma congestão crônica, sugerindo que a Comcast teria provocado intencionalmente uma redução na qualidade da internet de seus usuários256. Em março de 2014, Welch (2014) apontou que, logo após a assinatura do acordo, a qualidade de acesso aos servidores da Netflix aumentou muito rapidamente em poucos dias – o que foi apontado como atípico por diversos especialistas, pois, se houvesse uma congestão crônica, essa melhora seria observada somente depois de muito tempo, uma vez que seriam necessárias diversas implementações técnicas e de infraestrutura para viabilizar uma mudança tão brusca, caso realmente houvesse um problema de congestão sistêmica nas redes da Comcast.

Gráfico 17. Comparativo entre a qualidade de vídeo experimentada por usuários da Comcast entre janeiro de 2013 e junho de 2014, comparando com usuários de outro provedor de acesso, a Cablevision

(Seward, 2014)

No segundo semestre de 2014, dois trabalhos tentaram responder melhor a essas questões em aberto. Como apontaram Clark et al. (2014), a análise preliminar dos níveis de tráfego da Comcast nos últimos anos não sugere que havia uma congestão sistêmica em suas

256

redes; esse resultado indicaria que pode ter havido uma decisão arbitrária, por parte da Comcast, em degradar a qualidade da conexão de seus usuários propositalmente, sempre que a conexão desses usuários passasse por Sistemas Autônomos da Level 3 ou Cogent (Gross, 2014). Outro estudo desenvolvido pelo M-Lab chegou ao mesmo resultado no que se refere às redes da Comcast, afirmando ainda que os demais grandes provedores (Time-Warner Cable, Verizon, AT&T, e CenturyLink) também degradaram a qualidade de serviço da Netflix entre o fim de 2013 e início de 2014, ainda que não houvesse congestão sistêmica em suas redes, elevando a qualidade de serviço rapidamente após a Netflix estabelecer com esses provedores acordos semelhantes ao firmado com a Comcast257.

A análise desse caso reforça nossa hipótese de que, ainda que a interconexão e acordos de conexão direta não sejam vedados dentro de uma regra de neutralidade da rede, é preciso entender em que contexto esses contratos são firmados, de forma a investigar o comportamento dos atores previamente à assinatura desses acordos, o que pode sugerir ou não que houve práticas discriminatórias e de degradação de tráfego que incentivaram a tomada de determinada decisão.