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4. OS CONFLITOS TELEOLÓGICOS DA NEUTRALIDADE DA REDE: A

4.1. Neutralidade da rede e liberdade de modelos de negócio

4.1.1. Interconexões

Uma imprecisão comum no debate é o fato de a internet ser muitas vezes reduzida a uma “rede única”. O modelo descrito no Gráfico 13 a seguir (e que também reproduzimos na Introdução deste trabalho) é muitas vezes utilizado para representar o papel de provedores de acesso e o seu papel como gatekeeper da rede (Wu, 2010), mas não é suficiente para descrever os conflitos e relações comerciais existentes no mercado de conexão à internet.

Gráfico 13. Visão geral da internet (próprio autor, baseado em Wu, 2010)

Essa visão desconsidera que a internet é, na verdade, uma “rede de redes”. Isso significa que a internet é um conjunto de redes particulares, interconectadas a partir de um mesmo protocolo (o TCP/IP) e seguindo os mesmos padrões técnicos de interoperabilidade249, o que permite a comunicação entre diferentes localidades. Cada uma dessas redes é administrada por entes privados ou públicos, como governos, universidades e provedores de conexão (tanto provedores de acesso como provedores de trânsito), e são denominadas de Sistemas Autônomos – grupo de redes de comutação por pacotes sob o protocolo TCP/IP, abaixo de uma única gerência técnica e que compartilham uma mesma política de roteamento, sendo autônoma em relação à tomada de decisões sobre interconexões com os demais Sistemas Autônomos250.

Gráfico 14. Visão detalhada do funcionamento da internet

Para que determinada comunicação atinja o seu destino, é necessário que os pacotes de dados trafeguem por diferentes Sistemas Autônomos; isso não significa necessariamente que determinado pacote de dados adotará o caminho mais curto, dado que sistemas de roteamento gerenciados por provedores de acesso podem buscar caminhos mais eficientes que, embora possam ser mais longos, procurarão evitar pontos de congestão, escolhendo

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Nesse sentido, ver a lista de Standards oficiais da internet, de acordo com a IETF (Disponível em: <http://goo.gl/OyEhei>. Acesso em: 8 dez. 2014).

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Sistemas Autônomos em que há maior capacidade de banda ou infraestrutura mais eficiente para o transporte de dados com a melhor qualidade de serviço. Para que esse caminho seja realizado, é necessário que diferentes Sistemas Autônomos façam interconexões, isto é, ligações entre Sistemas Autônomos funcionalmente compatíveis, de modo que os usuários de determinado provedor de acesso possam comunicar-se com usuários e provedores de aplicações que contratem outro provedor de conexão. Caso não houvesse interconexões, usuários do provedor de acesso A somente poderiam se comunicar com usuários do mesmo provedor e que estivessem conectados na mesma rede. Por meio de interconexões, um provedor de acesso pode comunicar-se com Sistemas Autônomos de propriedade de outras empresas que atuam no backbone da rede, com o objetivo de enviar e receber a comunicação de um determinado provedor de aplicação – que, em geral, é cliente de outro provedor de conexão.

Gráfico 15. Modelo explicativo de interconexões

Para gerenciar interconexões, são utilizados os chamados pontos de troca de tráfego (Internet Exchange Points) – PTTs. Por meio dessas estruturas, diferentes Sistemas Autônomos podem trocar o tráfego de suas redes, reduzindo custos de consumo de banda e latência251. No Brasil, os principais PTTs são gerenciados pelo Comitê Gestor da Internet por meio do projeto PTTMetro, que aloca essas infraestruturas próximo de locais em que há grande volume de dados (como a região Sudeste), permitindo assim que a interconexão ocorra de forma regional, sem a necessidade de utilizar infraestruturas de locais distantes do local do usuário. Além dos PTTs gerenciados pelo CGI.br, é comum que diferentes provedores de conexão firmem contratos entre si para regular a interconexão entre suas redes e desenvolver PTTs entre si. Esses contratos são normalmente classificados em duas diferentes categorias (Cooper, 2013a; Clark et al., 2014):

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(i) peering agreements são contratos de parcerias bilaterais, em que determinado provedor de conexão compromete-se a transmitir, nos Sistemas Autônomos de sua propriedade, os pacotes de dados originados do outro provedor, e vice-versa. Em geral, esse tipo de contrato não possui contrapartidas financeiras, tendo em vista que os custos de tráfego entrante (isto é, de transportar pacotes de dados da outra parte) tendem a ser equivalentes aos custos de tráfego sainte (de envio de pacotes para que a outra parte possa transportar) – adicionalmente, pode haver

fees devidos quando essa equação não se zerar, pagando unicamente pelo saldo

de tráfego;

(ii) transit agreeements são contratos de prestação de serviços tipicamente firmados

entre provedores de acesso e provedores de trânsito que atuam no backbone da rede. A principal atividade de provedores de trânsito é construir e operar Sistemas Autônomos que atuam no backbone da rede, transportando, mediante contrapartida financeira, pacotes de dados de provedores de acesso cujos Sistemas Autônomos não são capilarizados o suficiente para atingir diferentes localidades.

Como mencionado anteriormente, a interconexão nunca foi uma preocupação direta dos estudos sobre neutralidade da rede. Muitas das preocupações relacionadas com o princípio da neutralidade da rede já se encontravam reguladas em diferentes legislações nacionais, que receavam, desde a era da telefonia tradicional e passando pelas primeiras regulações sobre a internet, que as interconexões fossem realizadas de forma não discriminatória. Ainda, o mercado de provedores de trânsito, diferente do mercado de provedores de acesso, é extremamente competitivo e pulverizado: segundo dados do Center

for Applied Internet Data Analysis, há cerca de 45.658 titulares de Sistemas Autônomos

registrados e, ainda que haja empresas com grande capilaridade (especialmente Level 3 e Cogent), não há evidências de que exista uma concentração global de Sistemas Autônomos252.

De qualquer forma, é claro que a neutralidade da rede também é uma preocupação no

backbone. Caso o titular de determinado Sistema Autônomo trate de forma diferenciada

pacotes de dados, essa diferenciação poderá gerar efeitos em cascata dentro da cadeia de

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interconexões. Ao mesmo tempo, avanços tecnológicos desenvolvidos no nível de backbone podem ser neutralizados pela ação de um provedor de acesso. Finalmente, discriminações podem ser utilizadas para forçar negociações comerciais, prejudicando direitos dos usuários – semelhante ao que ocorreu no caso da Netflix com a Comcast, como se verá adiante.

No Brasil, as restrições para discriminações na provisão de interconexões são mais antigas do que o Marco Civil. Ainda que a regra do art. 9.º estabeleça que o sujeito da obrigação de tratamento isonômico também pode atingir provedores de trânsito e outras empresas que não necessariamente atuam na última milha, uma série de regulações já traz disposições específicas sobre interconexões. Na Lei Geral de Telecomunicações, o art. 152 dispõe que “o provimento da interconexão será realizado em termos não discriminatórios, sob condições técnicas adequadas, garantindo preços isonômicos e justos, atendendo ao estritamente necessário à prestação do serviço”.

No mesmo sentido, o Regulamento de SCM da Anatel dispõe que: “Art. 7.º É assegurado aos interessados o uso das redes de suporte do SCM para provimento de SVA de forma não discriminatória e a preços e condições justos e razoáveis; Art. 8.º As Prestadoras de SCM têm direito ao uso de redes ou de elementos de redes de outras Prestadoras de serviços de telecomunicações de interesse coletivo, de forma não

discriminatória e a preços e condições justos e razoáveis”.

Finalmente, o Regulamento Geral de Interconexão da Anatel dispõe:

Art. 8.º Nas negociações destinadas a estabelecer os contratos de interconexão são coibidos os comportamentos prejudiciais à livre, ampla e justa competição entre prestadoras de serviço, no regime público e privado, em especial: I – a prática de subsídios, para redução artificial de tarifas ou preços; II – o uso não autorizado de informações obtidas de concorrentes, decorrentes de contratos de interconexão; III – a omissão de informações técnicas e comerciais relevantes à prestação de serviço por outrem; V – a exigência de condições abusivas para a celebração do contrato de interconexão; V – a obstrução ou demora intencional das negociações; VI – a coação visando à celebração do contrato de interconexão; VII – a imposição de condições que impliquem uso ineficiente das redes ou equipamentos interconectados.

[...]

Art. 11. As prestadoras de Serviço de Telecomunicações, ao fixar as condições para Interconexão às suas redes, devem observar os seguintes princípios: I – tratamento não discriminatório dos solicitantes.