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inciso ii – proporcionalidade, transparência e isonomia

3. A NEUTRALIDADE DA REDE NO MARCO CIVIL: UM GUIA PARA

3.2. O art 9.º, CAPUT – a regra geral de neutralidade da rede

3.4.2. inciso ii – proporcionalidade, transparência e isonomia

Em virtude de a utilização do termo isonomia já ter sido discutida no item 3.2.2, trataremos especificamente do mandamento de transparência no item 3.4.3 a seguir. Nessa parte, vamos explorar o conceito de proporcionalidade, ainda não dissecado neste trabalho.

O uso do mandamento “agir com proporcionalidade” não pode ser tomado simplesmente como linguagem laica; a partir do momento em que se encontra positivado no ordenamento, faz-se relevante que se assuma uma conotação técnica-jurídica para o uso do termo proporcionalidade. Para investigar esse conceito, precisamos dividir a explicação em

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Art. 14. “O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos; § 1.º O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I – o modo de seu fornecimento; II – o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III – a época em que foi fornecido. § 2.º O serviço não é considerado defeituoso pela adoção de novas técnicas. § 3.º O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar: I – que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste; II – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. § 4.º A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa”.

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Vale aqui um exemplo ilustrativo sobre quais práticas seriam consideradas “culpa exclusiva” do usuário no contexto da neutralidade da rede. Como referimos no item 3.3.2, ataques DDoS se utilizam de diversos computadores para realizarem os ataques; caso determinado usuário seja infectado com um malware que torne seu computador um desses servidores sem que o usuário tenha ciência, esse usuário não poderia alegar quebra da neutralidade da rede e responsabilizar o provedor de acesso por danos em caso de bloqueio de seu terminal para acesso à internet.

duas partes: distinguir este do conceito de razoabilidade para, em seguida, compreender a aplicação da proporcionalidade enquanto regra hermenêutica.

A distinção entre proporcionalidade e razoabilidade faz-se relevante na medida em que este último conceito é bastante frequente na literatura sobre neutralidade da rede (Frieden, 2006; Lennett, 2009; Jordan e Ghosh, 2010). O conceito de reasonable traffic

management é extremamente defendido tanto por aqueles que sustentam a regulação do

princípio da neutralidade da rede de forma não absoluta, devendo haver certo grau de liberdade que permita práticas razoáveis de discriminação de tráfego (Van Schewick, 2015), como por acadêmicos contrários à regulação ex ante da neutralidade, devendo a razoabilidade, para estes, ser o parâmetro decisório para juízes e aplicadores do direito (Thompson, 2012c). Critérios de razoabilidade também foram debatidos durante o processo legislativo do Marco Civil, cujas posições basearam-se claramente nos conceitos discutidos na literatura estadunidense229.

Todavia, na redação final do Marco Civil, o conceito de razoabilidade não foi incluído, sendo seu substituto implícito a proporcionalidade. Ainda que alguns estudos apontem esses conceitos como equivalentes (Barros, 1996; Barroso, 1998), um olhar sobre suas origens históricas, estrutura e objetivos demonstrou que tais conceitos, do ponto de vista jurídico, são bastante diferentes (Da Silva, 2002). A razoabilidade é um conceito de origem no common law anglo-saxão, utilizado para descrever a noção do que seria racional ou equilibrado em determinado caso concreto, cujo objetivo é impedir a prática de atos que fujam da “razão comum”230. A razoabilidade, nesse sentido, abre uma margem maior de subjetividade ao julgador – que possui um papel mais central dentro da lógica da common

law. A regra de proporcionalidade, como aponta Da Silva (2002), possui como origem a

doutrina e jurisprudência alemãs, com uma estrutura metodologicamente organizada para reduzir a subjetividade do julgador (por meio de três sub-regras), e busca aferir a adequação e a necessidade de determinado comportamento perante a regulação posta.

A estrutura da regra de proporcionalidade utilizada na literatura constitucional também pode ser aproveitada como ferramenta para interpretação e subsunção de determinado comportamento à regra de neutralidade vigente. O método compreende três sub-regras que devem ser metodologicamente aplicadas em ordem: adequação, necessidade

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Ver itens 2.2.1 e 2.2.2.

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e proporcionalidade em sentido estrito. Pela sub-regra de adequação, determinado comportamento é identificado como adequado se o objetivo legítimo pretendido com aquele comportamento é alcançado ou pelo menos promovido, sendo inadequado caso em nada contribua para o objetivo pretendido. Por sua vez, um comportamento é necessário quando o objetivo pretendido não possa ser atingido, com a mesma eficácia, por meio de outro comportamento. Finalmente, a sub-regra da proporcionalidade em sentido estrito consiste em “sopesamento entre a intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da realização do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoção da medida restritiva” (Da Silva, p. 20).

Essa regra pode ser aplicada a diversas situações de exceção à neutralidade da rede. A seguir, indicamos três exemplos de práticas de discriminação de tráfego e a aplicação da regra de proporcionalidade para esses casos:

Tabela 12. Exemplos de aplicação da regra de proporcionalidade a situações de confronto com a neutralidade da rede

Exemplo Adequação Necessidade Proporcionalidade (em

sentido estrito)

Bloqueio de terminais servidores de spam

Sim (com o bloqueio, os usuários destinatários do

spam não serão prejudicados)

Sim (atrasar a entrega de spam não resolve o

problema, sendo o bloqueio a medida

necessária)

Sim (é mais importante garantir a segurança da rede do que o direito de envio de e-mails não

desejados de um remetente cujos fins não

são legítimos) Priorização de pacotes de live streaming em relação a pacotes de POP3 (mensagens de e- mail padrão) Sim (a priorização aumenta a qualidade de experiência do usuário)

Sim (o aumento da banda não necessariamente

resolveria de forma eficaz, visto que pode haver latência mesmo que não haja congestão)

Sim (o atraso de alguns segundos na entrega de uma mensagem de e-mail

dificilmente pode ser visto como algo prejudicial à qualidade de

experiência do usuário)

Bloqueio, por iniciativa do provedor de acesso,

de pacotes de video streaming em momentos

de congestão da rede

Sim (como os pacotes de vídeo são pesados, seu bloqueio provavelmente levará a um aumento de capacidade da infraestrutura) Não necessariamente (a mera redução de velocidade de entrega de pacotes pesados e menos

sensíveis pode ser suficiente para reduzir a

congestão sem afetar a experiência de usuários

de vídeo)

Não (a escolha sobre quais conteúdos devem

ou não ser bloqueados deve ser alocada exclusivamente ao usuário, sob o risco de reduzir sua autonomia e