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3. A NEUTRALIDADE DA REDE NO MARCO CIVIL: UM GUIA PARA

3.2. O art 9.º, CAPUT – a regra geral de neutralidade da rede

3.2.1. Sujeito

A obrigação prevista no art. 9.º destina-se aos responsáveis pela transmissão,

comutação ou roteamento. Há de se observar, preliminarmente, que há uma insuficiência

semântica nesse trecho: quando falamos de transmissão, comutação ou roteamento, a que necessariamente estamos nos referindo? A transmissão de pacotes de dados pode, por exemplo, ocorrer dentro do contexto de uma intranet. Olhando para esse artigo em conjunto com o sistema regulatório estabelecido pelo Marco Civil, parece-nos que a interpretação desse complemento do sujeito deve concentrar-se unicamente nas atividades de transmissão, comutação e roteamento de pacotes de dados que trafegam por meio da internet, já que o Marco Civil, logo em seu primeiro artigo, deixa claro que “esta Lei estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil”. Como discutimos no quadro 9 a seguir, parece-nos claro que o conceito de internet utilizado pelo Marco Civil refere-se unicamente à “internet pública”; logo, exclui-se da obrigação prevista no art. 9.º redes domésticas e de acesso restrito, operadas por empresas e indivíduos176.

Ainda na investigação sobre o complemento do sujeito, o conceito das três atividades ali descritas pode ser resumido nas seguintes177:

(i) roteamento – é a forma de escolha de um caminho na rede por onde os pacotes

de dados irão percorrer, entre o remetente e o destinatário. A escolha da rota (caminho) pode ser feita antes mesmo de os dados serem transmitidos (roteamento estático) ou, pode ser realizada passo a passo, levando em consideração diversos aspectos para que seja tomado o melhor caminho na rede (roteamento dinâmico) (Sousa, 1999). Cronologicamente, é a primeira função de um hardware antes de ser executada a transmissão dos pacotes, motivo pelo qual sua função é vista como parte da camada 2 do modelo OSI178;

(ii) comutação – uma vez que o caminho seja estabelecido por meio do roteamento, a comutação estabelece de que forma os pacotes de dados serão trocados entre dois computadores em uma rede (ex.: por circuitos ou pacotes). A comutação tem a função de estabelecer uma conexão ponto a ponto estabelecida entre o

176

Essa dúvida não é banal. Caso da Holanda, dos trens e da dúvida jurídica que surgiu. Casos como os da Holanda estariam fora da aplicação – o dono da rede pode fazer o que quiser.

177

Disponível em: < http://goo.gl/pBsFLk>. Acesso em: 12 dez. 2014

178

Sobre o modelo OSI, ver <http://goo.gl/OGY8l9>. Sobre uma simplificação do modelo OSI para aplicação em ciências sociais, ver nota 27.

remetente e o destinatário, antes do início da transmissão dos dados (Sousa, 1999). Ocorre na camada 3 do modelo OSI;

(iii) transmissão – uma vez que a rota e a conexão end-to-end sejam estabelecidas, tem início a transmissão do pacote de dados em si, que pode ocorrer por meio de diversas tecnologias – sendo a tecnologia utilizada na internet o TCP/IP. Ocorre na camada 4 do modelo OSI.

Com os conceitos mencionados, pode-se inferir que o objetivo do Marco Civil foi estabelecer como sujeito da obrigação da neutralidade não somente os responsáveis pela transmissão final dos pacotes, mas todos os que executarem funções relacionadas com a camada lógica da rede. Portanto, um hardware ou software que atue tão somente no roteamento dos pacotes de dados deve também prever que, em suas funções, não poderá discriminar pacotes de dados de acordo com sua origem e destino. Em termos práticos, o Marco Civil estabelece que não só provedores de acesso, mas todos os envolvidos no provimento de conexão à internet na camada de infraestrutura da rede (incluindo provedores de trânsito), devem respeitar a neutralidade da rede e a obrigação endereçada no art. 9.º.

Com base no exposto supra, podemos utilizar essas conclusões para inferir quem não é sujeito da obrigação prevista no art. 9.º. A obrigação não atinge intranets, extranets ou redes domésticas e empresariais, ainda que permitam o acesso de terceiros. Logo, se uma empresa de ônibus oferece a seus usuários wi-fi grátis, essa empresa pode limitar o acesso a determinadas aplicações ou conteúdos. Da mesma forma, é legítimo que empresas possam usar software para bloqueio de sites e aplicações específicas quando usuários conectarem-se em sua rede. Ainda, é importante pontuar que a obrigação de neutralidade também não atinge os próprios usuários: caso determinada pessoa deseja limitar o acesso a determinados conteúdos em seu terminal (utilizando, e.g., software de controle parental), essa prática também será legítima e não será alcançada pela obrigação prevista no Marco Civil.

QUADRO 9. O QUE É INTERNET?

A discussão sobre o conceito de “o que é internet” é bastante relevante para nosso trabalho. Regras sobre neutralidade da rede buscam preservar a inovação e caráter aberto da internet, mas essas regras não se aplicariam a outros serviços de telecomunicação que estão fora da internet e, portanto, são regidos por outros estatutos e princípios. Na legislação estadunidense, o conceito de internet foi definido pela primeira vez em 1998 pelo Internet Tax Freedom Act, que conceitua internet como “the myriad of computer and

telecommunications facilities, including equipment and operating software, which comprise the interconnected world-wide network of networks that employ the Transmission Control Protocol/Internet Protocol, or any predecessor or successor protocols to such protocol, to communicate information of all

kinds by wire or radio”179 (grifos nossos). No Brasil, a primeira definição legal relevante surge em 1995 por meio da Norma n. 004/1995, publicada pelo Ministério das Comunicações (aprovada pela Portaria n. 148/1995 do Ministério da Ciência e Tecnologia), que dispõe que internet é o “nome genérico que designa o conjunto de redes, os meios de transmissão e comutação, roteadores, equipamentos e protocolos necessários à comunicação entre computadores, bem como o software e os dados contidos nestes computadores”. Essa definição pouco precisa foi mais bem desenvolvida no Marco Civil, o qual dispõe que internet é “o sistema constituído do

conjunto de protocolos lógicos, estruturado em escala mundial para uso público e irrestrito, com a finalidade de possibilitar a comunicação de dados entre terminais por meio de diferentes redes” (grifos

nossos).

Os grifos utilizados constituem o que nos parece ser os fundamentos essenciais do conceito de internet: (i) trata-se de um conjunto de redes de telecomunicações, (ii) interconectadas por um protocolo lógico comum, (iii) para uso público e irrestrito e (iv) com o objetivo de possibilitar comunicações entre seus usuários. Não à toa, tem sido cada vez mais comum em trabalhos acadêmicos adotar a denominação “internet pública” (ou public internet) para referir-se a rede mundial de computadores, em contraste a redes particulares ou de finalidade específica, categoria em que, a nosso ver, serviços como IPTV e VoIP que sejam oferecidos de forma dedicada e em separação lógica ou estrutural da rede estão compreendidos, como veremos no item 4.1.5.

3.2.2. O VERBO E SEU COMPLEMENTO – O “DEVER DE TRATAR DE FORMA