• Nenhum resultado encontrado

Neutralidade da Rede: uma revisão da literatura

1. NEUTRALIDADE DA REDE: UMA INTRODUÇÃO AO DEBATE

1.2. Neutralidade da Rede: uma revisão da literatura

Os primeiros trabalhos acadêmicos sobre o tema vieram do Direito, com forte influência da tradição de Law & Economics (Speta, 2000; Wu, 2003; Yoo, 2004). Como aponta Cooper (2013a), grande parte da literatura sobre neutralidade da rede resume-se a trabalhos no campo do Direito, buscando avaliar aspectos econômicos da neutralidade da rede, e trabalhos no campo da Economia, que buscam entender as implicações econômicas de uma potencial regulação da discriminação de dados.

A neutralidade da rede é um tema longe de ser uma unanimidade no debate acadêmico. Van Schewick (2010a) menciona que a literatura se divide basicamente em duas vertentes – cujas molduras teóricas levam a resultados bastante diferentes.

De um lado, uma posição minoritária (Schewick, 2015; Cooper 2013a) defende a aplicação de uma moldura analítica de antitruste para análise do problema da discriminação de dados. Para essa corrente, o núcleo central da problemática sustentada pelos defensores da neutralidade da rede não deve ser a arquitetura da rede, e sim as condições de mercado das empresas de telecomunicação (Yoo, 2004; Hahn e Wallsten, 2006). Para estes, o mercado de telecomunicações enfrenta altas barreiras de entrada, integração vertical e alta

44

A base de dados completa está disponível em: <http://netneutralitymap.org/json/>. Acesso em: 12 fev. 2014.

45

Protocolo de rede cujo modelo permite a realização de downloads fracionados e de forma partilhada com outros usuários, permitindo altas taxas de transferência, motivo pelo qual tem sido utilizado como uma alternativa gratuita para o download de jogos, músicas e filmes livremente disponibilizados na Internet por meio de sites como Pirate Bay, e que costumam concentrar uma grande quantidade de arquivos que são disponibilizados à margem das leis de direito autoral.

46

Tecnologia utilizada pela maior parte dos sites de video streaming disponíveis na internet (como YouTube, Netflix e Vimeo) e que, em virtude de uma maior fiscalização e de acordos com as distribuidoras, concentram a maior parte de conteúdo legal de filmes e séries de televisão.

47

concentração econômica; esse cenário sugere que a introdução de condições de competição e a diminuição de entraves regulatórios para o provimento de acesso à internet é o caminho adequado para garantir o acesso dos usuários a serviços melhores e com menos restrições de tráfego. Para diversos defensores dessa moldura teórica, não há evidências concretas de que provedores de acesso estão deliberadamente bloqueando ou discriminando dados cujo conteúdo ou volume são nocivos a seus interesses econômicos, nem que há potenciais incentivos para que essas empresas possam adotar esse tipo de política (Thierer, 2004), e que os estudos econômicos conduzidos nesse campo sugerem que não há potenciais incentivos para a discriminação (Faulhaber, 2011). Finalmente, argumenta-se que a neutralidade da rede fere a livre-iniciativa ao impor restrições às práticas comerciais dos provedores de acesso; essas restrições constituem uma violação dos direitos de propriedade que as operadoras possuem sobre sua rede de infraestrutura, bem como violam sua liberdade contratual. Sustenta-se, nesse sentido, que as operadoras devem possuir a liberdade para definir suas políticas de acesso, velocidade e conteúdo, e a demanda do mercado seria um filtro natural entre as operadoras que podem oferecer serviços “neutros” e àquelas que proporcionariam serviços otimizados para determinados conteúdos e aplicações (Thierer, 2004; Krim, 2005).

Para defensores da neutralidade da rede, a moldura teórica que a enxerga como um problema de natureza antitruste é muita estreita, e que há vários outros fundamentos econômicos e externalidades que devem ser incorporados à análise do tema, como eficiência de mercado, incentivos à inovação, crescimento econômico, educação e participação cultural e política (Frischmann e Van Schewick, 2007). Cooper (2013a) aponta que essa visão majoritária apoia-se fortemente no conceito de interesse público (public interest): para a autora, o paradigma do interesse público parte da premissa de que a regulação deve proteger os consumidores de falhas de mercado, como monopólios, informações assimétricas e externalidades. A autora revela, ainda, que essa corrente da literatura apresenta uma influência implícita da tradição do institucionalismo (institutionalism, também conhecida pela máxima institutions matter) nas ciências sociais, na medida em que esses trabalhos buscam apresentar respostas para modelos de comportamento humano fundamentadas em premissas de comportamento racional dos atores, baseado em como estes se comportam sob pressão de diversas instituições formais e informais (North, 1990).

Na ampla moldura teórica defendida por essa corrente, reconhecem-se os problemas de verticalização e concentração de mercado existentes no setor de telecomunicações, e não

se veem, em seus trabalhos, quaisquer oposições a ações regulatórias nesse sentido. No entanto, diferente das visões defendidas pela posição baseada na moldura antitruste, essa corrente acredita que o foco da regulamentação da neutralidade da rede não deve ser somente solucionar a problemática concorrencial entre os provedores de acesso, mas regular a própria arquitetura da internet, que naturalmente coloca provedores de acesso em uma posição privilegiada de gatekeepers da rede48.

Para esses autores, a neutralidade da rede serve para uma série de objetivos diferentes. Em primeiro lugar, a neutralidade da rede busca preservar um modelo de arquitetura aberta, genérica e que possa “servir aos valores econômicos e não econômicos da sociedade” (Van Schewick, 2010, p. 10). Nesse sentido, argumenta-se que o objetivo da neutralidade da rede deve ser privilegiar e induzir a inovação na camada de conteúdo da rede (Wu, 2003; Lessig, 2001; Van Schewick, 2007). Como argumentamos em Ramos (2014b), em uma arquitetura baseada em um núcleo central de controle (core-centred architecture), a inovação será guiada pelos interesses e motivações dos operadores da rede, que terão a habilidade de controlar a taxa e o tipo de inovação que desejam, bloqueando e restringindo a adesão de novas tecnologias a suas redes e, em última instância, escolhendo àquelas tecnologias que serão vencedoras e àquelas que não serão sequer participantes da rede; já em uma arquitetura em que não há um núcleo central de controle (end-to-end architecture), as decisões serão fundamentalmente guiadas pelos novos participantes no nível de aplicações, o que certamente traz maior diversidade de tecnologias e incertezas sobre quais irão ter sucesso ou não – um ambiente ideal inclusive para o próprio conceito de investimento de

venture capital. Assim, esses trabalhos partem da premissa de que incentivar o setor de

aplicações é mais crítico para o interesse público do que o setor de provisão de acesso à internet (Schewick, 2010a).

Segundo, para esse grupo, a neutralidade da rede preserva a habilidade de escolha dos usuários, sendo esta aptidão vital para a expansão das capacidades individuais dos

48

Essa linha argumentativa tem como marco referencial comum o trabalho de Lawrence Lessig a respeito da interação entre a arquitetura da rede (code) e o direito: para Lessig, a forma como se organiza arquitetura da rede possui um potencial supletivo em relação às regras jurídicas, especialmente no equilíbrio das forças de mercado no setor de internet (Lessig, 2006a). Sendo o Direito, por excelência, a modalidade preponderante de regulação da arquitetura da rede, e sendo essa “plástica” por natureza, é possível afirmar que a regulação da arquitetura permite efeitos imediatos e com grande grau de eficácia, visto que os entraves tecnológicos impostos por determinada regulação moldam de forma absoluta o comportamento dessas redes, de modo que “a organização do conjunto da infraestrutura física e lógica que compõe a Internet determina normativamente o seu funcionamento” (Leonardi, 2011, p. 172).

usuários (Frischmann, 2012; Benkler, 2001 e 2006)49. Essa visão da autonomia e liberdade dos usuários relaciona-se diretamente com as próprias naturezas de arquitetura e funcionamento da rede: a heterogeneidade de agentes de comunicação possibilitada por sua arquitetura, em contraponto ao modelo unidirecional e controlador prevalecente nos meios de comunicação tradicionais, pauta-se essencialmente pela capacidade de intervenção dos seus usuários e pelas possibilidades de interação destes com os serviços e aplicações disponibilizados, provocando o surgimento de novos símbolos de riqueza desmaterializados, baseados em atividades, conhecimentos, direitos e ideias. Essa autonomia, somada às ferramentas tecnológicas disponíveis, é, para esses autores, talvez o principal fator para que a internet seja considerada um dos principais instrumentos para o exercício de liberdades substantivas e expansão das capacidades individuais (Benkler, 2006).

Finalmente, essa corrente também identifica na neutralidade da rede como um instrumento para exercício de liberdades políticas e aperfeiçoamento de discursos democráticos (Ammori, 2013a; Mackinnon, 2012; Benkler, 2006). Para esses autores, a liberdade de os usuários de internet se conectarem entre si sem restrições deve ser o princípio de política pública orientador (guiding policy principle) para a regulação da arquitetura da internet (Ammori, 2013a, loc. 283), sendo a internet um meio essencial para a organização política e a manutenção de um ambiente descentralizado de participação democrática.

Tabela 2. Valores preservados pela neutralidade da rede

Abertura da rede (open internet)

As decisões a respeito de que tipo de aplicação ou conteúdo pode circular na rede ficam fundamentalmente alocadas na camada de conteúdo; interoperabilidade de padrões tecnológicos; possibilidade de inovações na camada de conteúdo sem necessidade de “permissão” ou “pagamento de pedágios” para provedores de acesso; manutenção dos baixos custos de inovação na camada de conteúdo.

Autonomia e escolha do usuário

Possibilidade de os usuários escolherem de forma independente que conteúdos e aplicações desejam utilizar, sem interferência arbitrária dos operadores da rede no que se refere a escolhas por uma aplicação ou conteúdo específico.

49

Implicitamente – e explicitamente, no caso de Benkler (2006) –, essas posições aproximam-se da corrente do “desenvolvimento como liberdade”, representada pelo trabalho de Sen (1999). Para essa escola crítica, as políticas de desenvolvimento devem voltar-se primordialmente para a ampliação da autonomia individual dos cidadãos, de forma a explorar suas potencialidades e expandir suas capacidades nas escolhas de seus objetivos particulares. Em outras palavras, o indivíduo é um fim em si próprio: a função do direito no desenvolvimento é garantir a liberdade de escolha dos indivíduos; nessa abordagem, o direito deixa de ser visto como mero veículo, e passa a ser considerado finalidade própria para o desenvolvimento.

Liberdade de expressão

Liberdade para que os usuários possam se conectar com qualquer outro usuário, aplicação ou conteúdo; preservação de ambiente descentralizado de participação política e social.

QUADRO 5. A RELAÇÃO ENTRE NEUTRALIDADE DA REDE E O PRINCÍPIO END-TO-END

Um dos conceitos mais discutidos dentro do debate acadêmico sobre neutralidade da rede é o princípio end-to-end, que passou a ganhar relevância após um célebre artigo escrito por Lemley e Lessig (2001), e que fazia referência a um trabalho de Saltzer, Reed e Clarck (1984). Partindo de um exemplo real de um gateway que estava cumprindo funções adicionais e acabou danificando os arquivos de uma rede, Saltzer, Reed e Clarck formularam o argumento de que, como paradgima de arquitetura, os componentes técnicos de redes de comunicação devem preferencialmente ser implementados nas pontas (end), e não no centro da rede (core), como forma de manter a simplicidade da rede e preservar sua capacidade generalista, devem-se preservar as mínimas funcionalidades básicas no core50. Baseados nessa premissa, Lemley e Lessig desenvolveram o argumento de que uma arquitetura cujo controle seja descentralizado traz benefícios à concorrência, na medida em que permite que vários players diferentes possam se conectar na rede, bem como propicia a inovação ao preservar um modelo genérico de rede, em que poucos requisitos técnicos são exigidos para que novas aplicações possam ser conectadas à rede, tendo em vista a simplicidade de seu core (2001, p. 7- 8) – argumento este que é constantemente utilizado dentro do conceito de “internet aberta” que vimos anteriormente.

Todavia, o argumento end-to-end nunca foi um paradigma absoluto para tecnologias de comutação por pacotes e internetworking e, do ponto de vista técnico, não há uma relação direta entre end-to-end e não discriminação de dados. Essa confusão ocorre muito pela desvirtuação dos trabalhos originais de Cerf e Kahn (1974) e de Saltzer, Reed e Clarck: esses autores baseavam-se em um argumento técnico, e em nenhum dos trabalhos os autores utilizam-se de argumentos de ciências sociais para fundamentar suas escolhas51. Preservar a arquitetura end-to-end significa, para esses autores, preservar uma estrutura de rede em que haja um modelo em que as funções específicas de cada aplicação sejam alocadas nos ends, e não no core52; esse conceito original, por exemplo, não veda que o proprietário do core da rede realize, a seu próprio critério, práticas de gerenciamento de tráfego que discriminem aplicações, prática que era inclusive prevista pelos engenheiros responsáveis pelos primeiros trabalhos de internetworking (nesse sentido, ver Leiner et al., 2009, p. 25; CIP Working Group, 1990; USC Information Sciences Institute, 1981; e ST2 Working Group, 1995).