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Inciso IV – condições comerciais não discriminatórias e condutas anticoncorrenciais

3. A NEUTRALIDADE DA REDE NO MARCO CIVIL: UM GUIA PARA

3.2. O art 9.º, CAPUT – a regra geral de neutralidade da rede

3.4.4. Inciso IV – condições comerciais não discriminatórias e condutas anticoncorrenciais

O último inciso do § 2.º traz dois diferentes mandamentos: não oferecer serviços em condições comerciais não discriminatórias e abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais. Trata-se de dois mandamentos diferentes, que serão analisados em separado.

Condições comerciais não discriminatórias

A primeira pergunta que surge a partir desse mandamento é: qual seria o complemento dessa obrigação: condições comerciais não discriminatórias em relação a quê? Parece aqui que há um diálogo direto com o complemento do caput do artigo, que estabelece como objetos da discriminação conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação. Quando falamos de condições comerciais, pensamos diretamente no conceito de oferta comercial e no contrato estabelecido entre o fornecedor de serviços (o provedor de acesso) e o consumidor, usuário de internet. A liberdade de provedores de acesso para escolherem suas formas de cobrança de seus serviços é garantida pela legislação específica239, mas limitada a questões previstas em outros diplomas brasileiros: não se podem oferecer serviços somente a branco ou apenas a heterossexuais, e também não se pode estabelecer que o usuário só possa usar internet se contratar um plano de televisão a cabo, o que seria considerado uma venda casada.

Da mesma forma, o Marco Civil estabelece no caput do artigo e nesse inciso IV limitações para as condições comerciais ofertadas por provedores de acesso em seu relacionamento com usuários. A cobrança de tarifas adicionais ou diferentes planos de

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Os regulamentos dos serviços SMP e SCM trazem disposições idênticas em seus arts. 35 e 68, respectivamente: “Os preços dos serviços são livres, devendo ser justos, equânimes e não discriminatórios, podendo variar em função de características técnicas, de custos específicos e de comodidades e facilidades ofertadas aos assinantes”. O art. 57 do Regulamento dos Serviços de Telecomunicação também traz uma importante disposição nesse sentido: “O preço dos serviços explorados no regime privado será livre, reprimindo-se toda prática prejudicial à competição, bem como o abuso do poder econômico, nos termos da legislação própria. Parágrafo único. As prestadoras deverão dar ampla publicidade de sua tabela de preços, de forma a assegurar seu conhecimento pelos usuários e interessados”.

acesso baseados em critérios agnósticos, como a velocidade ou o total de dados consumidos, é plenamente válida dentro de uma regra de neutralidade da rede, como inclusive é apontado pela literatura acadêmica240. O que conflita com a regra de neutralidade da rede é a cobrança diferenciada em virtude de um conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação específicos, como disposto no caput do artigo.

Aqui parece que o Marco Civil estabelece um diálogo direto com a ideia de discriminação por preço, que mencionamos no item 1.1 deste trabalho. Na discriminação por preço, o provedor de acesso cobra diferentes tarifas de acordo com o conteúdo, serviço aplicação ou qualquer outro critério específico. Da mesma forma, provedores de acesso podem oferecer incentivos de preço para acessar uma aplicação específica, como gratuidade no acesso a alguns aplicativos especificamente escolhidos pelos provedores, cujos efeitos finais gerem uma verdadeira discriminação entre aplicações, conteúdos ou usuários diferentes (esses efeitos finais são de difícil mensuração caso a caso; neste trabalho, trataremos no item 4.2 do zero-rating, que fornece um exemplo de prática concreta em que essa discussão é bastante rica).

Condutas anticoncorrenciais

Um olhar na Lei n. 12.529/2011 traz à tona as principais discussões sobre neutralidade da rede e condutas anticoncorrenciais. Há um diálogo entre o conceito de

posição dominante previsto na legislação brasileira e o conceito de gatekeeper discutido

nessa tese241. O conceito de posição dominante na Lei n. 12.529/2011 abrange a capacidade de uma empresa ou de um grupo de empresas alterar, unilateral ou coordenadamente, as condições de mercado242 – um conceito muito próximo do master switch de Wu: um

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Ver item 1.2. Importante destacar que o debate sobre a neutralidade da rede não se confunde com o debate sobre os preços pagos pelo acesso à internet. Um provedor de acesso pode oferecer planos de acesso em preços bastante elevados, e mesmo assim respeitar a neutralidade da rede. Da mesma forma, um provedor de acesos pode colocar limites de banda consumida por usuário e, após o término desse limite, reduzir ou mesmo bloquear o acesso à internet do usuário; se isso for feito de forma agnóstica e sem privilegiar uma ou outra aplicação específica, essa conduta não viola a neutralidade da rede (ainda que se possa discutir se há ou não violações a outros diplomas e/ou princípios consumeristas).

241

Ver a Introdução desta dissertação.

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Art. 36, § 2.º Segundo Forgioni (1997), esse conceito “diz respeito a uma posição de poder econômico detida por uma empresa, que lhe confere o poder de obstar a efetiva concorrência no mercado em análise, facultando-lhe comportamentos independentes em relação aos próprios concorrentes, clientes, consumidores e sem que, por isso, deva sofrer qualquer consequência prejudicial”. Para a autora, “o poder econômico não é um direito, mas sim um fato, uma situação (fática) que proporciona ao agente econômico indiferença e independência em relação aos outros agentes, às leis de mercado”.

provedor de acesso, em virtude de sua posição na cadeia de tráfego de dados, e as características técnicas de seu serviço possuem a capacidade de alterar as condições do mercado de internet, especialmente no que se refere às empresas que se encontram na camada de aplicações da rede. Ou seja, a grande preocupação concorrencial da neutralidade da rede é garantir que provedores de acesso não vão utilizar sua posição privilegiada na arquitetura da rede para integrar-se verticalmente com outros players da camada de conteúdo, distorcendo os níveis de competição; ou mesmo que provedores de acesso vão utilizar essa prerrogativa para também oferecer serviços na camada de conteúdo, privilegiando suas próprias aplicações e serviços em detrimento das demais243.

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Além disso, vale citar o art. 36 da Lei n. 12.529/2011, que traz uma lista não exaustiva de condutas e práticas que podem ser consideradas infrações à ordem econômica e que podem conflitar direta ou indiretamente com a regra aqui prevista.

Gráfico 11 . Requisitos para validade de uma prática de discriminação244

244

Para auxiliar na interpretação e na identificação a respeito se determinada prática de discriminação encontra-se alinhada ou não com o Marco Civil, esse artigo sugere a aplicação de um teste lógico de interpretação para a regra de neutralidade prevista no Marco Civil. O teste consiste em responder oito diferentes perguntas sobre a prática de discriminação analisada; caso a resposta para determinada prática não seja clara ou seja de difícil resolução, a análise não se torna prejudicada, visto que o teste pode continuar a ser realizado para as demais questões, da forma feita anteriormente.

3.5. § 3.º – A VEDAÇÃO A BLOQUEIO, MONITORAMENTO, FILTRO E ANÁLISE

§ 3.º Na provisão de conexão à internet, onerosa ou gratuita, bem como na transmissão, comutação ou

roteamento, é vedado bloquear, monitorar, filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de dados, respeitado o disposto neste artigo.

A redação do § 3.º parece não abrir exceções ao bloqueio de aplicações, que passa a ser vedado a partir da vigência do Marco Civil. Essa disposição, que poderia ser considerada como implícita ao disposto no caput do artigo, foi acrescentada de forma expressa neste parágrafo, de modo a refletir a posição praticamente unânime entre os principais grupos de interesse245.

Ainda, a previsão desse parágrafo ampliou as vedações impostas para provedores de acesso para também incluir práticas de “monitoramento, filtro e análise” do conteúdo de pacotes de dados, o que impediria, a princípio, a adoção de práticas de Deep Packet

Inspection (DPI) no Brasil, bem como outras atividades que envolvam a vigilância, por

provedores de conexão, do conteúdo dos pacotes de dados que trafegam em suas redes246. A vedação de DPI e outras práticas semelhantes é uma questão muito mais ligada à privacidade de dados do que ao tema da neutralidade da rede – como mencionamos no item 2.2, esse tema nem fazia parte, no anteprojeto original, do capítulo sobre neutralidade da rede. Isolando as discussões sobre privacidade e proteção de dados pessoais e assumindo uma perspectiva unicamente voltada ao debate sobre gerenciamento de tráfego, provedores de acesso podem ter razões legítimas para aplicar técnicas de DPI em suas redes, especialmente ligadas ao planejamento de sua infraestrutura, como também para estudos sobre futuras inovações na rede (Van Schewick, 2015). O motivo pelo qual uma série de estudos acadêmicos tem alertado para consequências adversas do uso de DPI e de tecnologias semelhantes está, portanto, muito mais vinculado a um debate sobre proteção de dados pessoais e privacidade do que ao gerenciamento de tráfego em si, motivo pelo qual esse tema não será explorado nesta tese247.

245

Ver item 2.1.3.

246

Cabe notar que, quando falamos de conteúdo dos pacotes de dados, estamos claramente excluindo o header do pacote de dados (ver item 3.3.1). A leitura dos IP headers é absolutamente necessária para a prática de gerenciamento de tráfego, inclusive para técnicas agnósticas de gerenciamento. O DPI refere- se a uma prática em que não só os headers são analisados, mas também o próprio conteúdo do pacote de dados em si.

247

Para trabalhos criticando o uso de DPI e analisando o tema à luz da privacidade, ver Kuehn e Mueller (2012), Bendrath e Mueller (2010) e Daly, (2011).

QUADRO 12. RESUMO DAS REGRAS DE INTERPRETAÇÃO DO ART. 9.º DO MARCO CIVIL 1. Provedores de acesso, provedores de trânsito ou quaisquer provedores de conexão têm o dever de tratar de

forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.

2. Diferenciações baseadas em critérios agnósticos, como velocidade e limite de banda contratada, são

permitidas.

3. Discriminações baseadas em critérios específicos como conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou

aplicação somente devem decorrer de: Requisitos técnicos indispensáveis, como

- a priorização de pacotes de acordo com sua sensibilidade à latência, com o objetivo de preservar a qualidade de experiência do usuário; ou a priorização de acordo com as escolhas do usuário (sempre observados os limites mínimos de Qualidade de Serviço estabelecidos pela Anatel); ou

- a adoção de discriminações com o objetivo de preservar a segurança da rede, como bloqueio de software maliciosos, spam ou ataques DDoS.

Serviços de emergência, como

- ligações VoIP, serviços de geolocalização e mensagens equivalentes ou substitutas aos serviços públicos de emergência (e.g., polícia, bombeiros, hospitais); e

- mensagens oficiais ou prioritárias em situações de calamidade pública ou risco à segurança nacional.

4. Tanto na discriminação por requisitos técnicos quanto na discriminação por serviços de emergência as

seguintes regras de interpretação devem ser observadas para avaliar se uma prática é ou não legítima:

4.1. A prática não deve causar danos a usuários que utilizem a rede de forma legítima; 4.2. A prática deve ser adequada, necessária e proporcional ao objetivo previsto;

4.3. A prática deve ser isonômica, não criando privilégios a aplicações específicas;

4.4. O usuário deve ser informado, de forma simples, clara e suficiente, a respeito da prática adotada, sobre a necessidade de utilizar essa prática e qual o impacto dessa prática para a qualidade de experiência do usuário;

4.5. A adoção da prática deve ser oferecida ao usuário em uma condição comercial não discriminatória; 4.6. Em todos os casos, os efeitos da prática não podem gerar efeitos anticoncorrenciais, como abusos de

4. OS CONFLITOS TELEOLÓGICOS DA NEUTRALIDADE DA REDE: