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A Moldura principiológica do marco civil

3. A NEUTRALIDADE DA REDE NO MARCO CIVIL: UM GUIA PARA

3.1. A Moldura principiológica do marco civil

Nos arts. 2.º, 3.º e 4.º, o Marco Civil definiu, respectivamente, fundamentos, princípios e objetivos da internet no Brasil173. Em conjunto, esses artigos definem o que podemos chamar de moldura principiológica do Marco Civil, isto é, o conjunto de regras gerais que justificam a disciplina do uso da internet no Brasil, e que devem ser utilizadas por aplicadores do Direito como balizas para a interpretação de conflitos concretos entre diferentes regras previstas no Marco Civil e na legislação brasileira. A moldura principiológica do Marco Civil pode ser resumida da seguinte forma:

Tabela 10. A moldura principiológica do Marco Civil

Fundamentos

Reconhecimento da escala mundial da rede; direitos humanos, desenvolvimento da personalidade e exercício da cidadania em meios digitais; pluralidade e diversidade; abertura e colaboração; livre-iniciativa, livre concorrência e defesa do consumidor; finalidade social da rede.

Princípios

Garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação do pensamento; proteção da privacidade e proteção de dados pessoais; preservação e garantia da neutralidade da rede; preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede; responsabilização de agentes de acordo com suas atividades; preservação da natureza participativa da rede; liberdade de modelos de negócio, desde que não conflitem com os demais princípios do Marco Civil.

Objetivos

Promover o direito de acesso à internet a todos; promover o acesso à informação, ao conhecimento e à participação na vida cultura e na condução dos assuntos públicos; promover a inovação e fomentar a ampla difusão de novas tecnologias e modelos de uso e acesso; e promover a adesão a padrões tecnológicos abertos que permitam a

comunicação, a acessibilidade e a interoperabilidade entre aplicações e bases de dados.

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Há um prolífico e extenso debate sobre o que seriam princípios jurídicos, e qual a diferença destes para as demais regras (Dworkin, 1986; Hart, 2012). Afigura-se-nos irrelevante e inconclusivo tratar com profundidade desse tema aqui; para a dogmática proposta para o Marco Civil, parece-nos que há pelo menos dois pontos incontroversos no debate (Hart, 2012), e cujas definições são suficientes para os fins pretendidos neste trabalho: (i) os princípios são mais extensos, mais generalistas e menos específicos do que regras; e (ii) os princípios referem-se, direta ou indiretamente, a um certo objetivo teleológico, que deve ser encarado como desejável de se manter, e que fornece fundamentação para as demais regras de um sistema. As diferenças entre princípios, fundamentos e objetivos são também alvo de intenso debate, que não nos parece relevante tratar neste trabalho. Da mesma forma, trazemos aqui uma definição simples dessas diferenças, somente na medida em que são necessárias para o melhor entendimento do autor: os princípios, fundamentos e objetivos do Marco Civil são todos princípios lato sensu, e estabelecem regras de sustentação e legitimidade (fundamentos), regras gerais de conduta (os princípios stricto sensu previstos no art. 3.º) e as consequências desejáveis pela aplicação do Marco Civil (objetivos).

Nota-se que a adoção da moldura mencionada alinha-se claramente com a ampla moldura teórica discutida no item 1.2 deste trabalho. Durante todo o debate legislativo, a neutralidade da rede foi sempre inserida dentro de um contexto mais amplo do que a questão meramente concorrencial174, e a aprovação dos fundamentos, princípios e objetivos do Marco Civil reforça a tese de que a neutralidade da rede, no Brasil, deve ser interpretada de maneira ampla, não somente a partir de lentes antitruste, mas com base em um modelo de análise que inclua externalidades e custos sociais em sua interpretação.

Dentre os fundamentos do Marco Civil que alicerçam essa moldura teórica ampla pela qual a neutralidade da rede deve ser interpretada, destacamos:

(i) abertura e colaboração – como citamos na tabela 2 supra, a “abertura da rede”

refere-se a ideia de que as decisões a respeito de que tipo de aplicação ou conteúdo podem circular na rede ficam fundamentalmente alocadas na camada de conteúdo; destarte, garante-se a possibilidade de inovações na camada de conteúdo sem necessidade de “permissão” ou “pagamento de pedágios” para provedores de acesso, o que mantém os baixos custos de inovação na camada de conteúdo e preserva a liberdade de expressão;

(ii) livre-iniciativa e livre concorrência – como mencionamos na Introdução deste trabalho, a neutralidade da rede visa reduzir a capacidade de provedores de acesso agirem como gatekeepers da rede; destarte, um dos fundamentos basilares da neutralidade da rede é preservar a livre concorrência, impedindo que provedores de acesso abusem de sua posição privilegiada na arquitetura da rede para distorcer a competição e impor barreiras à livre-iniciativa na rede;

(iii) defesa do consumidor – a neutralidade da rede tem um fundamento amplamente voltado para a defesa dos direitos do usuário da rede; uma das premissas da defesa do consumidor é de que a regulação deve proteger os

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Essa posição é explícita no relatório do Deputado Alessandro Molon, ao mencionar que: “Caso não seja respeitada a neutralidade de rede, ao menos seis liberdades essenciais para os usuários da internet serão prejudicadas: (i) a de conexão de quaisquer dispositivos, (ii) a de execução de quaisquer aplicativos, (iii) a de envio e recebimento de pacotes de dados, (iv) a liberdade de expressão, (v) a de livre-iniciativa e (vi) a de inovação na rede. Portanto, para que a mais ampla liberdade fique assegurada na internet, é necessário defender o princípio da neutralidade de rede. A internet poderá, assim, continuar a ser um espaço para experimentação, inovação e livre fluxo de informações” (Molon, 2012, p. 37).

consumidores de falhas de mercado, como monopólios, informações assimétricas e externalidades;

(iv) finalidade social da rede – a partir desse fundamento, o Marco Civil deixa claro que a internet possui uma função mais do que econômica: a rede está inserida num contexto social, e este importa para definir políticas públicas, princípios e objetivos da regulação; e

(v) reconhecimento da escala mundial da rede. Este fundamento, que na verdade se trata de uma constatação de fato sobre a forma como se organiza a arquitetura da rede, pode ser visto tanto como um mecanismo que limita como também um mecanismo que reforça a importância da neutralidade da rede. Como limitador, práticas que visem estabelecer um regime de neutralidade absoluta no País (ignorando, por exemplo, requisitos técnicos necessários ou funções previstas na própria estrutura do protocolo TCP/IP) podem ser interpretadas como conflitantes com esse princípio. Por outro lado, caso determinado provedor de acesso passe a discriminar pacotes de dados que tenham como origem ou destino outros países, essa prática poderia ser interpretada não só como uma violação da neutralidade da rede, como também uma violação desse fundamento.

No art. 3.º do Marco Civil, a neutralidade da rede ocupa espaço junto a outros princípios que também fazem parte da disciplina do uso da internet no Brasil. Alguns desses princípios podem ser vistos como alinhados à ideia de neutralidade da rede, por exemplo, a garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação do pensamento e a preservação da natureza participativa da rede. Por outro lado, dois desses princípios também podem ser considerados como potencialmente conflitantes com o conceito de neutralidade da rede estabelecido no Marco Civil:

(i) preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede – acasos de

segurança da rede podem ser motivos fortes suficiente para que sejam consideradas exceções à neutralidade da rede, como bloqueio de portas e medidas de prevenção a ataques DDoS; há nesse sentido relativo consenso na literatura de que esses casos devem ser tratados como exceções, mas há divergências em relação à qual abordagem deve ser utilizada para tomada dessas decisões; aprofundaremos essa discussão no item 3.3 a seguir;

(ii) liberdade de modelos de negócio, desde que não conflitem com os demais princípios do Marco Civil – como mencionamos no item 2.2, esse inciso foi

incluído num contexto de instabilidade política e de pressão por parte de grupos ligados ao setor de telecomunicações. Uma interpretação puramente semântica do texto indicaria a seguinte resposta: quaisquer modelos de negócio podem ser desenvolvidos por meio da internet, desde que não conflitem com outros princípios; assim, um modelo de negócio que estabeleça discriminação de dados ou bloqueios a aplicações específicas, ainda que protegidos pela livre-iniciativa, seriam limitados pelo princípio da neutralidade da rede. Todavia, esse inciso tem sido interpretado por grupos ligados ao setor de telecomunicações como um inciso que aumenta a liberdade de provedores de acesso para criarem modelos de negócio específicos como os planos de zero-rating, como exceções à neutralidade da rede175. Retomaremos essa discussão no item 4.2.

No art. 4.º, são descritos os principais objetivos da regulação da internet no Brasil. Dois dos objetivos elencados – promover a inovação e fomentar a ampla difusão de novas

tecnologias e modelos de uso e acesso e promover o direito de acesso à internet a todos –

possuem alinhamento direto com o tema da neutralidade da rede, e serão tratados especificamente no Capítulo 4 desta dissertação.