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1. NEUTRALIDADE DA REDE: UMA INTRODUÇÃO AO DEBATE

2.1. A matriz institucional da neutralidade da rede no Brasil

2.1.2. Governo

O tema da neutralidade da rede foi ignorado pelo Legislativo antes do Marco Civil, não havendo qualquer propositura de projetos de lei que tenham relação direta ou indireta com o tema. Como veremos no item 2.2 a seguir, o Marco Civil foi fruto de uma iniciativa do Executivo, e a neutralidade da rede foi um tema que teve forte apoio não só desde a primeira versão do anteprojeto, mas também por meio de diversas declarações públicas da Presidenta Dilma Roussef122 e de Ministros como José Eduardo Cardozo, da Justiça123, e Paulo Bernardo, das Comunicações124.

A Anatel passou a se posicionar sobre o assunto a partir de 2005, quando a agência emitiu um comunicado específico sobre o uso de aplicações VoIP, dispondo que “contratos de prestação de SCM não podem impor restrições à transmissão de nenhum tipo de sinal”125. Preocupações sobre a neutralidade da rede também foram presentes na discussão sobre a fusão entre a Brasil Telecom e Telemar (atualmente Oi), em 2008126, e tiveram um posicionamento mais firme da agência a partir de 2011, quando foi lançada a Consulta Pública n. 45, a respeito do regulamento do SCM, em que foi proposta uma regulação ex

ante para a neutralidade da rede, da seguinte forma:

122

Disponível em: <http://goo.gl/fkAjIc> e <http://goo.gl/Hj5xsj>. A neutralidade da rede também foi citada pela presidenta em discurso feito na Assembleia Geral das Nações Unidas em 2014, (<http://goo.gl/WezIja>).

123

Disponível em: <http://goo.gl/O7t47I>.

124

Disponível em: <http://goo.gl/LQRwlg>. Durante o período de discussão, a postura de Paulo Bernardo ao longo do debate foi dúbia, com algumas declarações públicas que foram interpretadas como contrárias à neutralidade da rede (nesse sentido, ver <http://goo.gl/SYdRbu>).

125

Disponível em: <http://goo.gl/DGWTkU>.

126

Vale destacar que, ao menos em um caso específico, a Anatel já havia se manifestado em 2008 em favor da neutralidade da rede. Nesse ano, a Anatel emitiu o Ato n. 7.828, a respeito de sua anuência prévia à fusão entre Brasil Telecom e Telemar (atualmente Oi) (Disponível em: <http://goo.gl/XirINE> – acesso em: 12 ago. 2014). Entre o condicionamento para sua anuência prévia ao ato de concentração, a Anatel incluiu que a Telemar “manterá a neutralidade de sua rede” (p. 7). Não há, nesse documento, qualquer definição de qual seria o conceito de neutralidade da rede adotado pela agência; a inclusão do conceito baseou-se na proposta da relatora do ato de concentração, a conselheira diretora Emília Maria Silva Ribeiro Curi, que, em seu voto, opinou que “a neutralidade de rede, em relação ao tráfego internet, consiste no transporte isonômico de tráfego sem qualquer discriminação em termos de qualidade de serviço (QoS), em função da origem, do destino e do conteúdo transportado, sendo um dos pilares que sustentam o sucesso da internet. Possibilita, com isso, o compartilhamento isonômico por todos os usuários e provedores de serviços. Em função disso, proponho que deve ser assegurada, pelas prestadoras pertencentes ao grupo econômico resultante da operação em tela, a neutralidade de suas redes” (Disponível em: <http://goo.gl/xJhRRx>, p. 40. Acesso em: 12 ago. 2014). Seu voto foi seguido pelos conselheiros Ronaldo Mota Sardenberg (“entendo que o transporte isonômico de tráfego de internet é um importante pilar da rede mundial de computadores, devendo afastar qualquer discriminação no que diz respeito à qualidade do serviço em função de sua origem, do destino e do conteúdo transportado”) e Plínio de Aguiar Júnior (que repetiu o conceito apresentado pela relatora) (Disponível em: <http://goo.gl/WCR9ak>. Acesso em: 12 ago. 2014).

Art. 59. É vedado à Prestadora realizar bloqueio ou tratamento discriminatório de qualquer tipo de tráfego, como voz, dados ou vídeo, independentemente da tecnologia utilizada.

§ 1.º A vedação prevista no caput deste artigo não impede a adoção de medidas de bloqueio ou gerenciamento de tráfego que se mostrarem indispensáveis à garantia da segurança e da estabilidade do serviço e das redes que lhe dão suporte. § 2.º Os critérios para bloqueio ou gerenciamento de tráfego de que trata o § 2.º deste artigo devem ser informados previamente a todos os Assinantes e amplamente divulgados a todos os interessados, inclusive por meio de publicação no sítio da Prestadora na Internet.

§ 3.º O bloqueio ou gerenciamento de tráfego deve respeitar a privacidade dos Assinantes, o sigilo das comunicações e a livre, ampla e justa competição.

O artigo foi fruto de uma intensa discussão na Consulta Pública n. 45 (ver item 2.1.3 a seguir). Todavia, conforme apontado por algumas das contribuições, a Anatel acabou entendendo que essa era uma disposição que deveria ser regulada pelo Marco Civil, até então em tramitação na Câmara dos Deputados, e substituiu a redação proposta pelo art. 75, que dispõe que “as Prestadoras de Serviço de Comunicação Multimídia devem respeitar a neutralidade de rede, conforme regulamentação, nos termos da legislação”127.

O Comitê Gestor da Internet também foi uma entidade que apoiou de forma enfática a neutralidade da rede. Antes mesmo da propositura do Marco Civil enquanto projeto de lei, o CGI.br aprovou o “Decálogo da Internet – Princípios para a Internet no Brasil”, com uma série de princípios fundamentais para “embasar e orientar suas ações e decisões,

127

Com a proposta do regulamento SCM, nota-se que houve uma mudança paradigmática entre o conceito adotado pela agência em 2008 no ato de concentração da Oi e a proposta do regulamento SCM em 2011. Naquele processo a agência buscava adotar um conceito que limitava a não discriminação de dados no contexto de Qualidade de Serviço, mas que não trazia maiores detalhamentos sobre quais práticas de discriminação seriam ou não adequadas. Em 2011, é possível observar que a agência adotou uma visão mais estrita do conceito, que não abrange somente discriminações no âmbito de Qualidade de Serviço, mas em qualquer esfera (e.g., discriminação comercial), adotando claramente um modelo de exceções em que as únicas hipóteses de discriminação previstas seriam práticas que se mostrassem indispensáveis (i) à segurança da rede; e (ii) à estabilidade do serviço (um conceito até mesmo mais estrito do que o proposto no Marco Civil). Essa mudança de postura é também vista em artigo publicado pela conselheira diretora da Anatel à época, Emília Curi, junto ao presidente do NIC.br, Demi Getschko, que afirma que “a internet, como meio para o exercício da cidadania, requer redes neutras, em que não haja a discriminação de conteúdos com base em critérios ideológicos, religiosos, políticos ou comerciais. Eventuais medidas restritivas somente devem ser tomadas para assegurar a estabilidade das redes e a segurança do serviço e de seus usuários” (Curi e Getschko, 2011).

estabelecendo como um dos princípios a neutralidade da rede, colocando que “filtragem ou privilégios de tráfego devem respeitar apenas critérios técnicos e éticos, não sendo admissíveis motivos políticos, comerciais, religiosos, culturais, ou qualquer outra forma de discriminação ou favorecimento”128.