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1. NEUTRALIDADE DA REDE: UMA INTRODUÇÃO AO DEBATE

1.3. O mapa dos conflitos

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Importante notar que, ainda que o end-to-end argument tenha sido popularizado a partir desse trabalho, o uso da expressão end-to-end em trabalhos técnicos no campo de internetworking já era conhecido e utilizado anos atrás. No trabalho de Cerf e Kahn (1974), o termo end-to-end era constantemente usado para definir a comunicação entre as pontas de uma rede (emissor e receptor); para Cerf e Kahn, uma comunicação end-to-end com menor interferência possível seria necessária para estabelecer uma menor perda de pacotes durante a transmissão de dados.

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Isso não significa que as discussões sobre as arquiteturas de rede nos anos 1960 e 1970 não fossem contaminadas por argumentos de cunho social e econômico (ver Quadro 3).

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Conforme Watts et al. (2010), “the paper is nothing of the kind [sobre o debate de neutralidade da rede]. It is instead an early description of how key error-correction and related functions in communications across different networks can usually, for most data applications, be conducted more efficiently and effectively by end-user devices on each end of a data session than by the routers in between” (p. 48).

O princípio da neutralidade da rede, naturalmente, pressupõe uma série de custos. Uma análise geral do debate mostra que há interesses conflitantes dentro do ecossistema da internet, e que a ideia de neutralidade da rede pressupõe uma série de custos e benefícios diferentes entre esses atores. Diversos trabalhos buscam trazer uma visão analítica desses conflitos (Wu, 2004; Frischmann e van Schewick, 2007; Cooper, 2013a; Kocsis e Weda, 2013; Ramos, 2014a). Nesses artigos, nota-se uma tendência em sistematizar os efeitos da neutralidade da rede no setor de internet entre quatro diferentes categorias de players.

1.3.1. PROVEDORES DE CONEXÃO

Provedores de conexão são empresas de telecomunicação provedoras de acesso à internet, em qualquer modalidade. Na literatura estadunidense, convencionou-se denominar essas empresas como Internet Service Providers (ISP), sigla bastante utilizada para identificar essa categoria. Todavia, como colocado no relatório do Body of European

Regulators for Electronic Communications (BEREC, 2012) essa classe compreende pelo

menos dois tipos distintos de atores:

• Eyeball ISPs, Access Providers ou Provedores de Acesso – são empresas cuja principal atividade é prover acesso à internet para usuários finais, em modalidades como dial-up, banda larga fixa ou banda larga móvel – 2G, 3G ou 4G –, cujas tarifas de acesso representam a maior parte das receitas dessas empresas. Provedores de acesso também oferecem serviços de acesso à internet para provedores de aplicações, e alguns proporcionam ainda serviços específicos na camada de conteúdo (por exemplo, seus próprios serviços de streaming de músicas e vídeos). O desenvolvimento de uma infraestrutura física de redes própria é o maior custo das atividades de provedores de acesso; quando essa estrutura é insuficiente para atingir determinado usuário ou provedor de aplicação, essas empresas contratam banda

upstream de outros provedores de conexão, por meio de acordos de interconexão53. Para provedores de acesso, a neutralidade da rede pode trazer efeitos negativos para o mercado de telecomunicações, na medida em que diminui os instrumentos de

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mercado disponíveis para controle da oferta e demanda e pode potencialmente reduzir lucros, ganhos de eficiência na rede e incentivos à inovação no setor54.

• Wholesale ISPs, Transit Providers ou Provedores de Trânsito – são empresas cujas atividades principais envolvem a prestação de serviços de telecomunicações a outros provedores de acesso e, em diversos casos, para grandes provedores de aplicações. Essas empresas possuem infraestrutura física e lógica para oferecer a provedores de acesso interconexões entre suas redes, incluindo backbones – linhas de alta capacidade de transmissão de dados, responsáveis pelas conexões de longa distância entre as redes que integram a internet. Para essas empresas, um regime de neutralidade da rede pode reduzir custos transacionais com provedores de acesso e impedir que estes se utilizem de práticas comerciais anticompetitivas para interferir em negociações entre provedores de trânsito e grandes provedores de aplicações55. Os estudos sobre os efeitos e o posicionamento desses atores no debate acadêmico sobre neutralidade da rede são bastante recentes, e são mais bem explorados no item 4.1.2 deste trabalho.

1.3.2. PROVEDORES DE APLICAÇÕES

Provedores de aplicações e conteúdo, OTT Providers ou Edge Providers são empresas que entregam conteúdo e aplicações de software próprias ou de terceiros para usuários finais, como sites de internet de qualquer tipo, aplicativos mobile e software SaaS. Seus modelos de negócio são extremamente variados, e suas fontes de receita geralmente transitam entre cobrar diretamente de usuários finais (planos de assinatura de acesso, fees por licença de software, venda de produtos e/ou serviços) ou modelos indiretos de monetização, como publicidade online ou cessão de base dados de usuários.

O tamanho de determinado provedor de aplicações e sua capacidade de atingir mais usuários são relevantes para o tema da neutralidade da rede. Grandes provedores de

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Essa posição não é unânime na literatura. Choi e Kim (2010) apontam que as evidências em teoria econômica não assinalam com solidez que a neutralidade da rede pode gerar desincentivos para os provedores de acesso inovarem e aumentarem a capacidade de sua infraestrutura; da mesma forma, o contrário também não pode ser descartado – segundo os autores, a imposição de restrições à discriminação do tráfego pode representar um incentivo para que os provedores de acesso busquem alternativas para gerar maior eficiência em sua rede, bem como diminuam seus lucros em favor de uma expansão de sua infraestrutura.

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Por exemplo, os maiores transit providers dos EUA (Congent e Level 3) têm sido voz ativa no debate estadunidense sobre neutralidade da rede, assumindo publicamente posições favoráveis sobre a regulação do tema.

aplicações consomem uma quantidade enorme de recursos de infraestrutura, como

hospedagem de dados e contratação de tráfego upstream para entregar seu conteúdo para usuários finais, o que tem levado muitas dessas empresas a buscar alternativas para reduzir esses custos por meio de integrações verticais com players da camada de infraestrutura da rede, ou mesmo desenvolver sua própria estrutura de rede. Considerando esse cenário, a neutralidade da rede pode trazer efeitos dúbios a esses atores: um regime de neutralidade pode reduzir a capacidade dessas empresas de contratar acordos de priorização de tráfego com provedores de acesso, reduzindo sua capacidade de sustentar suas posições hegemônicas56; por outro lado, a neutralidade da rede também reduz custos transacionais com provedores de acesso (que não poderão arbitrariamente exigir pagamentos adicionais pela mera entrega do conteúdo) e aumenta a capacidade de inovação, na medida em que essas empresas estarão sujeitas a menos barreiras de infraestrutura impostas por provedores de acesso.

Os efeitos da neutralidade da rede são diferentes para pequenos provedores de

aplicações. Em geral, esses são pequenos provedores de serviços de tecnologia e/ou

software em nível local ou startups cujas atividades, ainda que possam concorrer diretamente com grandes players, trazem algum tipo de inovação disruptiva que pode converter-se um novo gigante da internet. Diferente do que acontece com empresas estabelecidas, modelos de negócio de startups não são autossustentáveis no início de suas operações, especialmente pela existência de altos custos fixos de desenvolvimento57; destarte, essas empresas têm ganhado a atenção de fundos de investimento de venture

capital, interessados em financiar as atividades iniciais dessas empresas em troca de

participação societária que poderá, no futuro, converter-se em uma saída de capital (por meio de bolsa de valores ou venda de participação para empresas estratégicas). Num mercado em que a incerteza é um conceito basilar para a própria atração de capital de risco, não parece equivocado afirmar que, ao menos no plano teórico, startups são as grandes

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Ou seja: um modelo de gerenciamento de tráfego sem neutralidade da rede não é necessariamente ruim para grandes provedores de acesso. Nos EUA, Netflix, Youtube e Facebook respondem juntos por 46,3% do tráfego da banda larga fixa e 37,63% da banda larga móvel – na América Latina, esses números são de 41,82% e 34,49%, respectivamente (Sandvine, 2013). Para esses players, um regime de não neutralidade pode significar uma vantagem competitiva para manter sua hegemonia nesses mercados, dificultando a entrada de novos concorrentes e desenvolvendo um ambiente propício para a persistência de um monopólio na camada de conteúdo.

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beneficiárias da neutralidade da rede (Schewick, 2010)58. Com o tráfego de seus conteúdos sendo tratados da mesma forma que o tráfego dos grandes players, há a garantia de manutenção de baixas barreiras de entrada no mercado (ao menos no que se refere à infraestrutura), reduzindo também custos transacionais com provedores de acesso e potencialmente levando a uma maior diversidade de iniciativas e inovação no mercado, o que pode conduzir a um aumento nas receitas e lucros em um setor mais pulverizado da economia59.

1.3.3. USUÁRIOS

Usuários são os consumidores finais da internet. São contratantes de serviços de acesso à internet, especialmente tráfego downstream, ofertados por provedores de acesso, e também são contratantes de provedores de aplicações. Todavia, diferente do que acontece na mídia tradicional, não há aqui uma relação necessária de mero receptor de serviços, pois a internet permite que usuários também possam tornar-se provedores de conteúdo, desenvolvendo seus próprios aplicativos, participando em redes sociais, criando sites, publicando em canais de vídeo, vendendo produtos em marketplaces etc. A neutralidade da rede representa, para esses usuários, uma garantia de que estes terão barreiras reduzidas caso desejem deixar de ser meros consumidores e tornar-se provedores de conteúdo, o que garante maior diversidade de conteúdo na rede, fortalecimento da autonomia dos usuários, possibilidade de ascensão social e aumento na liberdade de expressão. Ao mesmo tempo, um regime de neutralidade poderia elevar os preços de acesso de usuários heavy-users de aplicações específicas, diminuindo o valor que a rede pode ter para esses usuários.

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Fundos de investimento em startups e empresas de tecnologia têm se posicionado publicamente a favor da regulação da neutralidade da rede. Em maio de 2014, mais de 100 fundos de investimento e aceleradoras dos EUA enviaram carta à FCC em favor da neutralidade da rede (Disponível em: <http://goo.gl/QTJx1A>. Acesso em: 14 dez. 2014).

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Frischmann e Van Schewick resumem esse trade-off da seguinte forma: “in other words, there is a trade-off: while network neutrality rules protect incentives to innovate in the markets for complementary products such as applications and content, they reduce incentives to invest in the market for last-mile broadband access. This trade-off is recognized by network neutrality proponents as well. Network neutrality proponents and opponents disagree on the extent of the problem in the market for last-mile broadband access and on the correct resolution of the trade-off” (2007, p. 423).

Tabela 3. Quadro-resumo dos efeitos da Neutralidade da Rede60

Ator Potenciais consequências positivas Potenciais consequências negativas

Provedores de acesso

Diminui os instrumentos de mercado disponíveis para controle da oferta e demanda; redução de lucros a médio prazo; redução de incentivos à inovação em infraestrutura.

Provedores de trânsito

Reduz custos transacionais com provedores de acesso; aumenta capacidade de contratação com provedores de aplicações

Grandes provedores de aplicações

Reduz custos transacionais com provedores de acesso; aumento na capacidade de inovação.

Impede acordos de priorização de tráfego junto a provedores de acesso.

Pequenos provedores de aplicações

Reduz barreiras de entrada no mercado; aumento na capacidade de inovação.

Usuários Maior acesso a conteúdo; incentivos

sociais; liberdade de expressão

Aumenta custos de acesso para heavy users de aplicações específicas.