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Análise de políticas públicas: entre ideias, interesses, instituições

2.1. Análise de políticas públicas

2.1.2. Análise de políticas públicas: entre ideias, interesses, instituições

Ideias, interesses e instituições foram elementos utilizados vastamente na análise de políticas públicas por diferentes correntes teóricas (Palier e Surel, 2005). Em termos de “interesses”, as análises identificam os atores e as lógicas de ação coletiva que envolve conflitos e cooperações entre eles. Esta análise se baseia tanto em aspectos de cálculos racionais de custo-benefício quanto em influências e interações de poder. Também identifica, entre os atores prevalentes, suas preferências, força, capacidade de ação e mobilização, e estratégias que utilizam no processo da política pública em questão.

No que tange às “instituições”, suas dinâmicas podem ser identificadas nos conjuntos de regras, práticas e mapas mentais enraizados que pesam sobre os atores. Neste sentido, a análise identifica quais recursos e restrições institucionais regem o domínio estudado. As capacidades institucionais e interações no interior deste domínio são elementos fundamentais. Devem ser identificadas quais características institucionais podem ter influência sobre os processos.

Interesses e instituições se inter-relacionam, uma vez que a própria capacidade de ação dos atores depende do contexto institucional, e pode influenciar os interesses que se colocam. As instituições conformam as possibilidades de organização e gestão da política, determinando, em parte, a legitimidade dos diferentes atores. Há políticas em que o Estado possui um papel prevalente ou exclusivo na prestação de um bem ou serviço social, outras em que uma amplitude maior de atores participa dos debates e da tomada de decisão, diminuindo as capacidades de controle dos governos.

O modo de organização da política está ligado diretamente à configuração institucional em vigor, sendo necessário considerar dinâmicas institucionais herdadas de políticas precedentes, a forma como se conformaram e qual o seu peso sobre as escolhas presentes. A herança institucional, ao mesmo tempo em que traz restrições, conforma recursos de ação. Nas organizações envolvidas, é possível identificar a existência de aprendizagem institucional e o grau de abertura institucional a mudanças.

As “ideias”, por sua vez, correspondem aos aspectos cognitivos das políticas públicas, incluindo paradigmas, referenciais e outros sistemas de crenças sob os quais se realiza a ação pública. Consistem nas formas prevalentes sob as quais os problemas são equacionados pelos diferentes atores, a hierarquização de valores e objetivos, e também a concepção da distribuição de papéis entre Estado, mercado, família ou terceiro setor. Estão presentes, ainda, nos mecanismos mediante os quais a ação pública é colocada em prática, e nas imagens e modelos simbólicos utilizados como referenciais da política idealizada (Palier e Surel, 2005).

Apesar da importância das ideias como paradigmas orientadores da ação institucional no desenvolvimento de uma política pública, podem haver consensos contraditórios, baseados em princípios que não são compartilhados de maneira uniforme entre atores concorrentes. A concordância sobre uma base mínima pode permitir diferenças de interpretação profundas, mas corresponde a uma lógica de agregação. Assim, a possibilidade de múltiplas interpretações administra a diversidade de interesses em jogo. O processo se elabora progressivamente, mediante interações repetidas entre os atores, que contribuem para a aceitabilidade das medidas, conformando o consenso ambíguo criado em torno delas.

2.1.3. Análise de políticas públicas centrada nas instituições

Como visto, a análise de políticas públicas pode se concentrar em diferentes dinâmicas relacionadas à ação do Estado. Abarcar todos os aspectos envolvidos nestas dinâmicas, contudo, está fora do escopo da presente tese. A abordagem sobre a ação do Estado utilizada neste trabalho é baseada na contribuição de Robert R. Alford e Roger Friedland (1985) sobre os “poderes” de cada uma das principais teorias das Ciências Sociais a tratar do tema.

Segundo os autores, nas sociedades capitalistas ocidentais democráticas, o Estado possui três aspectos inter-relacionados necessários à compreensão da ação estatal: um aspecto democrático, um aspecto burocrático e um aspecto capitalista. Cada um desses aspectos é melhor abordado por uma das três principais perspectivas teóricas historicamente constituídas nas Ciências Sociais: o pluralismo (visão liberal em suas múltiplas vertentes); o gerencialismo (visão burocrático-weberiana); e o marxismo (visão societal).

O aspecto democrático do Estado é o principal foco de atenção do pluralismo, perspectiva teórica segundo a qual o Estado é a arena de disputa entre interesses diversos,

defendidos por diferentes grupos organizados, e negociados nas instâncias democráticas constituídas para este fim. A participação é o motor propulsor da atuação individual. A visão de sociedade presente nesta perspectiva é a de um agregado de indivíduos, cada qual em busca da maximização de seus interesses, e que se organizam em grupos de interesses comuns para disputar decisões nos espaços de negociação democrática. Identificam-se com esta abordagem as teorias liberais, presentes em autores diversos identificados com o utilitarismo individual, como Adam Smith, mas também autores de visão progressista. A análise do comportamento de eleitores, por exemplo, faz uso da abordagem pluralista sem necessariamente se basear no utilitarismo.

O aspecto burocrático do Estado é o foco de atenção da abordagem gerencialista, perspectiva teórica segundo a qual o Estado se conforma a partir de instituições controladas por elites políticas e burocráticas, tendo como motor propulsor a racionalização de todas as relações sociais, visando ao máximo controle sobre organizações e indivíduos. A sociedade, de acordo com esta perspectiva, é um agregado de instituições, cada qual em busca de autonomia e perpetuação. Há uma tensão constante entre centralização e fragmentação institucional, sendo necessário às elites dominantes controlar tanto esta tensão quanto bloquear eventuais canais de participação democrática direta, pois a demanda da sociedade deve estar estruturada na forma de instituições. Caso contrário, representa uma ameaça ao funcionamento do sistema. A principal matriz desta abordagem está presente na teorização de Max Weber sobre o processo de burocratização da sociedade.

O aspecto capitalista do Estado é o foco de atenção da abordagem de classe, perspectiva teórica segundo a qual o Estado é parte da disputa entre as forças do capital e do trabalho, tendo como motor propulsor a acumulação de riqueza, traduzida na comodificação ou na mercantilização de todas as relações sociais. A sociedade, nesta perspectiva, é formada por classes antagônicas, constituídas pelas relações de produção presentes no modo de produção dominante, neste caso, o capitalista. Conforme esta abordagem, o Estado deve garantir as condições de acumulação de riqueza por parte dos proprietários dos meios de produção. Esta acumulação, por sua vez, gera dividendos ao próprio Estado, sob a forma de impostos e outras formas de arrecadação, utilizados tanto na manutenção da estrutura estatal como em políticas compensatórias, voltadas à classe trabalhadora. Segundo esta visão, não há possibilidade de democracia efetiva numa sociedade de classes antagônicas, e a máquina

burocrática do Estado pode apenas minimizar os efeitos perversos do sistema sobre a classe dominada. A principal matriz desta abordagem é a teorização de Karl Marx sobre o funcionamento da sociedade capitalista.

Alford e Friedland (1985) consideram que cada uma das três perspectivas teóricas é “poderosa” para determinado nível de análise. O pluralismo é a perspectiva que contém os elementos mais adequados para a análise do Estado no nível individual. As negociações entre interesses diversos na conformação da agenda pública e da tomada de decisões quando estas envolvem as formas institucionalizadas de participação democrática, como o parlamento e as eleições, são objetos privilegiados de análise pela perspectiva pluralista.

A perspectiva gerencial é a que contém elementos adequados para a análise do Estado no nível organizacional. O funcionamento das instituições do Estado, suas relações com as instituições organizadas externas ao Estado, a implementação das políticas públicas no nível organizacional, os recursos institucionais utilizados pelas elites política e burocrática no controle das decisões estratégicas são objetos acerca dos quais esta perspectiva possui elementos adequados para análise.

A perspectiva de classe, por sua vez, contém elementos adequados para a análise do Estado no nível societal. A prevalência dos interesses do capital em detrimento do trabalho nas políticas governamentais, os aparatos ideológicos do Estado que favorecem a reprodução do modo de produção capitalista, a análise das políticas sociais como conquistas dos trabalhadores ou como instrumentos de legitimação do Estado perante a classe trabalhadora são objetos de análise privilegiados pela perspectiva de classe.

Segundo Alford e Friedland (1985), cada perspectiva é forte no seu nível prioritário de análise. Contudo, cada qual também silencia em relação aos outros dois níveis, ou tenta compreendê-los a partir dos conceitos e categorias utilizados no nível prioritário de análise, gerando inconsistências teóricas ao abordar os outros dois níveis. Sendo assim, nem a análise societal centrada apenas na formação econômica, nem a racionalização estendida são capazes, sozinhas, de explicar suficientemente a natureza do Estado nas sociedades capitalistas ocidentais democráticas.

O Estado deve, simultaneamente, responder a demandas políticas organizadas, à acumulação de riqueza e à sua própria sobrevivência como conjunto operacional de instituições. A compreensão da atuação do Estado deve levar em conta o desenvolvimento

histórico das sociedades ocidentais, que alterou a relação entre os aspectos democrático, burocrático e capitalista do Estado de suas origens no século XVI até o século XXI.

Sem desconsiderar a importância das perspectivas pluralista e marxista do Estado, o presente trabalho se concentra no aspecto organizacional-burocrático. Não faz uso direto das teorias weberianas clássicas, porém compreende que o nível de análise priorizado diz respeito ao poder das organizações e opta por abordagens teóricas condizentes com este recorte, conforme apresentado a seguir.

A hipótese desta tese requer um recorte teórico que dê conta dos aspectos institucionais para a análise das iniciativas públicas federais de implantação de telecentros. A escolha deste recorte se justifica pela percepção de que, para a compreensão da efetividade potencial e a trajetória das iniciativas, não é suficiente considerar apenas a “vontade política” dos governantes e dirigentes, ou os processos de “tomada de decisão” dos alto e médio escalões de governo. Estes elementos, que carregam as ideias e os interesses em disputa na conformação das políticas públicas, são cruciais para que as iniciativas tenham início e continuidade. Contudo, a vontade política não se realiza sem recursos institucionais que permitam a implantação efetiva das decisões tomadas.

A política pública de inclusão digital começou a ser construída apenas recentemente se comparada ao leque das políticas sociais (como saúde, educação, assistência) e mesmo de infraestrutura (telecomunicações, estradas, saneamento). Possui caráter intersetorial, uma vez que tem por objeto as formas que a sociedade constrói e continuamente reconstrói para lidar com informação e comunicação, aspectos fundamentais a todas as políticas públicas. O tempo de maturação da política, bem como sua intersetorialidade intrínseca conformam um conjunto de elementos de âmbito institucional que influenciam as iniciativas de inclusão digital. As instituições envolvidas e os mecanismos de gestão formais e informais da política precisam ser capazes de responder aos desafios da implantação. Em se tratando de iniciativas que representam inovação na forma de atuação da esfera federal, como é o caso dos programas analisados, há que se considerar os obstáculos e oportunidades internos presentes nas instituições incumbidas da execução, bem como os arranjos institucionais horizontais e verticais envolvidos.

Para dar conta das questões levantadas, apresenta-se a seguir o embasamento teórico do neoinstitucionalismo.