• Nenhum resultado encontrado

1.2. O debate em torno da “exclusão social”

1.2.5. Dignidade humana: a perspectiva dos direitos de cidadania

Seria necessário completar este debate com uma visão sobre as teorias da cidadania. Contudo, por se tratar de outra longa discussão, a referência será feita apenas a um aspecto central no âmbito deste tema: a questão da dignidade humana. Contrariamente à noção de “necessidades mínimas”, que costuma servir à justificação de políticas residuais de combate à pobreza, os direitos humanos consideram o ser humano em sua integridade física e em sua relação com os outros. Sendo assim, não se referem simplesmente à carência material. Dizem respeito à carência de condições que mobilizam os seres humanos a atuar como sujeitos, e exercitar o pensamento crítico contra todas as formas de opressão, incluindo a pobreza.

Como afirma José Martínez de Pisón (1998), alguém submetido a uma situação de privações não pode decidir e atuar livremente. A autonomia, por sua vez, refere-se a dois níveis: o de agência (garantia de ação livre de restrições) e o de crítica (possibilidade de

avaliar as regras e transformar as práticas da própria cultura). Este último nível requer capacidades cognitivas e oportunidades sociais mais amplas para se realizar. Estão sintetizados nos direitos humanos, conforme a classificação realizada por T. H. Marshall: direitos individuais, cívicos, sociais e difusos. A compreensão desses direitos como inter- relacionados e indivisíveis é a principal diretriz de políticas sociais voltadas à cidadania.

Durante o período de orientação social-keynesiana nos países centrais do capitalismo, o Estado criou instituições e estruturas de fortalecimento e garantia desses direitos. A partir da década de 1970, o período de hegemonia neoliberal promoveu amplo ataque a essas políticas e à legitimidade dos direitos sociais, ou direitos de cidadania, resultando nas situações de “exclusão social” ou “desfiliação”, enfocadas neste capítulo.

A compreensão dos direitos humanos como indivisíveis dialoga com os aspectos multidimensionais teorizados por A. Costa (1998) e com a questão da universalidade dos direitos. Pisón (1998) defende que, em um mundo pobre e atacado pelo avanço neoliberal, pode parecer irônico falar de direitos sociais que na prática são garantidos apenas a uma minoria de privilegiados. Contudo, isso não deve ser um obstáculo para lutar e exigir sua universalização e extensão a todos os habitantes do planeta, sem discriminação.

A abordagem dos direitos humanos de cidadania tem, portanto, um caráter de universalidade, de garantia desses direitos indistintamente. Essa discussão será retomada na análise do direito à informação e à comunicação, realizada mais adiante.

1.2.6. “Exclusão social” e Política Social

O conceito de “exclusão social” e seus correlatos guardam relação com a forma como as políticas públicas, e em especial a Política Social, se desenvolvem em cada sociedade.

Graham Room (1995) analisa a diferença de visões das escolas de pensamento francesa e inglesa no estudo da situação dos indivíduos e grupos desfavorecidos. Segundo o autor, a tradição anglo-saxã se interessa principalmente pelos aspectos distributivos da riqueza, debruçando-se em especial sobre a pobreza. Já a escola francesa prefere os aspectos relacionais e, por isso, utiliza-se da categoria “exclusão social”.

A tradição inglesa, conforme Room, é essencialmente liberal, e enxerga a sociedade como um conjunto de indivíduos atomizados, competindo no mercado, e movidos por

interesses econômicos. Na escola de pensamento francesa, por sua vez, predomina a abordagem elitista, que compreende a sociedade como um conjunto de coletividades hierarquizadas na forma de um estatuto, ligadas por direitos e obrigações mútuas que se encontram enraizados numa ordem moral comum a todos.

As políticas públicas sob o paradigma francês desenvolvem estratégias de caráter multirrelacional para o enfrentamento da situação de “exclusão social”. Tentam trazer os indivíduos com laços sociais esgarçados ou rompidos de volta à situação de estabilidade. Já do ponto de vista liberal, as políticas públicas possuem caráter distributivo, buscando compensar a desigualdade de oportunidade no acesso à riqueza entre indivíduos. Dada a oportunidade, as políticas baseadas neste paradigma esperam que cada indivíduo se engaje na luta para melhorar sua situação financeira e sua capacidade de brigar por seus interesses específicos na arena política.

A vertente multidimensional, apresentada na visão de A. Costa (1998) dialoga em parte com o paradigma predominante na escola francesa. Porém, ao buscar justificativa para as políticas públicas na garantia de direitos de cidadania e na dignidade humana, foge da abordagem tradicional francesa, preocupada mais estritamente com a ordem social e sua manutenção.

A escola marxista não acredita que seja possível às sociedades capitalistas oferecer igualdade de condições para o conjunto dos cidadãos. Para os marxistas, o modo de produção opera segundo uma lógica que restringe a real liberdade dos indivíduos e a participação democrática. Contudo, o capitalismo traria em si mesmo os germes contraditórios que levariam a sociedade a superá-lo. As políticas sociais, como resultado do conflito entre capital e trabalho, são consideradas parte das estratégias de dominação da classe capitalista, pela visão marxista. Por outro lado, possuem aspectos contraditórios. Ao melhorar suas condições materiais de sobrevivência e escolaridade, propiciam elementos que auxiliam na organização e luta dos trabalhadores.

As diferentes abordagens possuem desdobramentos no campo da Política Social. Durante os anos 1950 a 1970, houve o predomínio da abordagem segundo a qual o Estado deveria intervir nas “falhas de mercado”. Nos anos 1970, torna-se hegemônica a posição de não intervenção do Estado no mercado. A desregulamentação promovida no período permitiu o desenvolvimento do capitalismo globalizado. Se nos países centrais as consequências foram

a emergência da “exclusão social” como categoria para análise de uma nova realidade, nos países periféricos a situação de forte desigualdade social e regional se agravou, como resultado da concorrência predatória gerada pela desregulamentação de Estados frágeis.

A partir dos anos 1980 e 1990, ocorre um movimento por reformas estruturantes necessárias ao funcionamento do capitalismo sob a nova configuração globalizada. A vertente neoinstitucionalista, nesta acepção, defende o papel do Estado como agente estruturador do mercado, sob coordenação centralizada, com o objetivo de garantir a concorrência que a desregulamentação neoliberal não proporcionou. A atuação estatal volta a ser considerada relevante, porém de maneira distinta do período keynesiano.

É no bojo dessas discussões que o conceito de “exclusão”/“inclusão” social emerge e interage com os paradigmas predominantes de condução das políticas públicas.

1.3. “Exclusão social” e “inclusão digital”: conceitos que emergem em um mesmo contexto

Esta parte do capítulo buscará mostrar a relação entre os conceitos de “inclusão digital” e “exclusão social”, tendo em vista o contexto histórico no qual ambos emergem e se desenvolvem.

Apesar de o termo digital divide ter sido forjado nos Estados Unidos durante a década de 1990 e dali se disseminado pelo mundo, cabe lembrar que os próprios norte-americanos, bem como representantes da França e de outros países, já haviam tornado a disseminação das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs) uma problemática de Estado desde décadas anteriores. Exemplo disso é a publicação, ao final da década de 1970, do relatório “A Informatização da Sociedade” (Nora e Minc, 1978), elaborado a pedido do presidente francês Giscard d’Estaing. Esta movimentação dos países centrais do capitalismo em torno da disseminação das TICs é um dos indicadores da importância estratégica deste tema, e do predomínio de aspectos políticos e econômicos no tratamento dispensado pelos governos à questão.

A discussão teórica sobre “Sociedade da Informação”, “Sociedade do Conhecimento” ou “Sociedade em Rede” veio a compor um quadro referencial, ao final da década de 1990,

que olhava para um passado recente. Conforme apresentado anteriormente, esses conceitos buscaram teorizar a respeito da disseminação e do uso intensivo das TICs por todo o mundo. Partem de visões distintas para explicar como, por que e para que, ao final do século XX, o mundo já se encontrava interconectado por redes de telecomunicações, pelas quais fluíam dados processados em formato digital, permitindo interação remota e assíncrona entre seres humanos, e entre estes e as próprias máquinas que tornavam tais interações possíveis.

O que nem sempre ficou claro nas teorizações a respeito desse novo contexto foi a não naturalidade das transformações relacionadas à intensificação do uso das tecnologias da informação e da comunicação no cotidiano das relações sociais em países centrais do capitalismo, e sua expansão nos países periféricos. Faltou a muitas das análises realizadas à época mostrar que tais mudanças decorreram de escolhas deliberadamente provocadas por sujeitos históricos, movidos por interesses e intencionalidade, e não em virtude de uma propriedade natural das tecnologias em se expandir, como sugerido pelo determinismo tecnológico embutido em boa parte das visões.

O contexto em que se popularizam os conceitos de digital divide e “inclusão digital” é o mesmo em que emerge o polêmico conceito de “exclusão social”. Se é sobre a mesma sociedade globalizada que nos debruçamos, estas duas dinâmicas devem, necessariamente, dialogar. Não por acaso, certos autores do campo da “inclusão digital” percebem “utopismo tecnológico” nos discursos governamentais e em parte dos estudos acadêmicos, como se o acesso às TICs pudesse responder às privações que as demais políticas estavam deixando de atender (Miranda, 2005; Rodino-Colocino, 2006).

O conceito de “inclusão digital” como panaceia, tal como visto, aposta numa relação quase automática entre a presença das TICs e a solução de problemas sociais. Este conceito se apoia no argumento a favor da qualificação dos trabalhadores em novas tecnologias digitais, habilidades que supostamente lhes garantiriam oportunidades de emprego e aprendizagem contínua de novas capacidades, requisito fundamental ao novo mundo do trabalho flexível. Segundo esta abordagem, a flexibilidade é considerada um aspecto positivo, que permitiria maior tempo livre ao trabalhador. A visão de “inclusão digital” como panaceia identifica fortemente as TICs com a ideia de progresso.

A mensagem por trás desse discurso se encaixa no modelo liberal-meritocrático de políticas públicas, responsabilizando, em última instância, o indivíduo pelo seu sucesso ou

fracasso no mundo do trabalho e na sociedade. O imaginário em torno deste conceito de “inclusão digital” como vetor de melhoria da condição de vida dos “excluídos” faz parte de um conjunto de políticas que privilegiam o mercado nas estratégias de disseminação das TICs. Além de direcionar investimentos, elas legitimam políticas e práticas de diversos atores envolvidos na implantação de ações, entre eles governos, empresas, organismos internacionais e multilaterais, e organizações não-governamentais.

A prevalência de modelos em torno do digital divide baseados na expansão via mercado esteve presente na massificação do consumo de bens e serviços relacionados às TICs. O boom da internet comercial no fim da década de 1990 e o estouro da bolha que logo se produziu no início do século XXI são indicadores da força dessa concepção. Os países centrais do capitalismo, após longos anos de pesado investimento estatal com fins militares em pesquisa e desenvolvimento de TICs, juntamente com o fortalecimento dos mercados de produção de conteúdos audiovisuais, haviam produzido grandes corporações de informática, telecomunicações, mídia e entretenimento ao longo do século XX (Mattelart, 2002).

Estas grandes corporações foram “ganhar o mundo” a partir da quase imposição aos países periféricos, nos empréstimos internacionais, de condições relativas a processos de desregulamentação de seus mercados de telecomunicações e informática, sob hegemonia do ideário neoliberal antiestatal. Em nome da eficiência do mercado, foram privatizados os sistemas de telecomunicações de praticamente todos os países. As infraestruturas relacionadas às TICs nesses países passaram a ser controladas pelo conjunto relativamente pequeno de corporações com atuação global neste mercado. Tais empresas concentraram não apenas capital, e praticamente todos os aparatos físicos para a oferta de serviços de telecomunicações, como também, e cada vez mais, produção, distribuição e difusão de conteúdos, software, hardware e outros bens e serviços relacionados às TICs.

Na visão de Castells (1999), a revolução da tecnologia da informação foi essencial para a reestruturação do capital. Com ela, uma nova estrutura social teria surgido, baseada no modo de desenvolvimento informacionalista, sucessor do industrialismo. As reformas teriam permitido aumentar a produtividade do trabalho e do capital, a partir da globalização da produção, da circulação e dos mercados, e da desregulamentação do sistema financeiro mundial. O gasto estatal teria sido direcionado para ganhos de produtividade e competitividade das economias nacionais, em detrimento da proteção social e do interesse

público. Para o autor, sem as TICs, a reestruturação do capitalismo teria sido mais restrita. A imposição do Consenso de Washington por meio dos bancos e agências de crédito internacionais e dos mercados financeiros desregulados diminuiu as chances de um país adotar medidas nacionais de proteção monetária, tornando todas as nações mais vulneráveis.

O modelo econômico neoliberal, aliado à disseminação das TICs sob esta mesma lógica de expansão, tendo o mercado como ator predominante do desenvolvimento, tornou o ambiente de competição entre as empresas ainda mais acirrado (Ianni, 2008). Enquanto as antigas corporações se reestruturaram e intensificaram o uso de tecnologias em seus processos, novas empresas que emergiram neste ambiente foram criadas já sob a legislação da flexibilização do trabalho, gerando empregos temporários e precários, apoiados no uso intensivo das TICs. Como anteriormente mencionado, muitos destes postos foram criados fora dos países centrais do capitalismo, onde os salários poderiam ser sensivelmente mais baixos sem perda de produtividade.

A realidade não correspondia àquela apregoada pelos adeptos da capacitação tecnológica como garantia de emprego. Como destaca Rodino-Colocino (2006), um programador de software de Seattle, nos Estados Unidos, não possui menor qualificação tecnológica do que um trabalhador do país do sudeste asiático, com quem a empresa em que trabalhava estabeleceu um contrato de outsourcing. A globalização da produção, mediada pelo uso intensivo de sistemas de informação e redes técnicas de transmissão de dados, permitiu às empresas dos países desenvolvidos garantir a mesma qualidade a partir da contratação de mão de obra mais barata nos países em desenvolvimento, ou da terceirização de serviços para empresas desses países (Cazeloto, 2008).

A competitividade internacional da força de trabalho qualificada também obrigou a quem estava empregado nos países que antes garantiam maior proteção social a aceitar a perda de direitos trabalhistas em nome da manutenção dos empregos, e levou à maior disciplina no trabalho, em razão do ambiente desfavorável às reivindicações por direitos trabalhistas e à organização sindical neste novo cenário (Rodino-Colocino, 2006).

Um estudo de Márcio Pochman (2002) sobre a distribuição dos empregos na cidade de São Paulo nos últimos anos da década de 1990 até o ano 2000 mostra que, no auge do boom da internet comercial, a maior parte dos empregos criados na cidade era de baixíssima qualificação, concentrando-se em serviços domésticos e de segurança privada. Já os

trabalhadores com mais alta escolaridade eram os que mais sofriam com o desemprego no período analisado. Conforme pontua o autor, a qualificação para a chamada “e-economia” (economia eletrônica ou digital) não se mostra suficiente para a garantia do emprego, se não houver políticas públicas de fomento econômico e estímulo à criação de vagas. Tais teorias rechaçam a crença de que a “inclusão digital” poderia ser uma panaceia para a resolução das vulnerabilidades sociais, por meio de empregos ligados à “nova economia” ou do determinismo tecnológico.

O que se constatou, ao resgatar a “descoberta” do digital divide e em muitos dos estudos que até hoje são realizados, é que a apresentação dos dados enfatiza as diferenças ou desigualdades de acesso às TICs entre níveis de renda, raças, gênero, idade e localização geográfica. Estas abordagens acabam por chegar a um beco sem saída, contentando-se em apresentar a “inclusão digital” como mero reflexo das desigualdades sociais, o que contribui para naturalizá-las.

Apenas a total ausência de visão crítica sobre a sociedade capitalista poderia fazer da constatação da desigualdade de acesso uma notícia de tamanha repercussão, uma vez que a disseminação das TICs foi − e, na maior parte do mundo, continua sendo − deliberadamente realizada pela via do mercado. Seria impressionante o inverso: se sua distribuição se concentrasse de outra forma que não segundo a lógica da sociedade de consumo. Estudiosos da “inclusão digital” que percebem a existência de um paradigma distributivo, em geral pró- mercado, norteador de ações governamentais de superação do digital divide, chegam a realizar parcialmente esta constatação (Yu, 2006; Eubanks, 2007). Outros alçam a disseminação das TICs via mercado como um fator explicativo fundamental à compreensão do processo, sem deixar de considerar aspectos sociais e de domínios não necessariamente econômicos (Spirakis, Manolopoulos e Efstathiadou, 2008).

1.4. “Inclusão digital”, digital divide e políticas públicas

Juntamente com os muitos conceitos sobre os propósitos de disseminação das TICs, as políticas públicas em torno da “inclusão digital” se desenvolveram sob diferentes paradigmas. A alternância de governos com ideias distintas sobre o papel do Estado no desenvolvimento

de políticas de “inclusão digital” apresenta-se como um fator importante para análise. A ausência de políticas públicas e sua realização a partir dos paradigmas distributivo, multirrelacional, multidimensional e multidimensional-participativo serão apresentados a seguir.