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2.1. Análise de políticas públicas

2.1.8. Desafios da mobilização coordenada de capacidades

2.1.8.2. Cooperação e conflito entre instituições

É necessário compreender as características específicas das relações entre instituições na análise de políticas públicas que envolvem múltiplos atores institucionais em sua implementação. De acordo com a abordagem burocrático-weberiana do Estado, as organizações, de modo geral, e as instituições públicas, em particular, possuem uma tensão contínua entre centralização e fragmentação. Organizações preexistentes tendem a criar mecanismos de controle racional-burocrático para diminuir o poder discricionário de cada indivíduo. Tais mecanismos são traduzidos em rotinas de procedimentos e regras que devem ser seguidos sem questionamento. Por outro lado, a especialização de funções e objetivos, 8 A discussão envolvendo territorialidade e desenvolvimento local não é aprofundada no presente trabalho,

tendo em vista o escopo proposto. Estudos que tratem da especificidade destas categorias em relação aos telecentros são necessários e fazem parte das propostas apresentadas na conclusão desta tese.

bem como as consequências da burocratização administrativa e de sua extensão a todos os domínios das relações humanas, geram tensão sobre o processo de centralização, pressionando pela fragmentação da organização.

Cada organização possui recursos institucionais com os quais atua, se fortalece e se legitima perante as demais organizações e a sociedade. Estes recursos são elementos de troca em negociações de cooperação e também podem ser utilizados na competição entre organizações. A tendência de cada organização é centrar-se somente nas atribuições que lhe foram legitimadas cultural ou politicamente. Esta concepção teórica auxilia na compreensão da dificuldade de coordenar a atuação conjunta e cooperada entre organizações. A intersetorialidade e a coordenação intersetorial são desafios para todos os governos, em todas as políticas públicas.

O uso das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs) perpassa as atividades dos mais diversos setores da ação humana, e as políticas públicas não são uma exceção. O processo de informatização e interconexão em rede de instituições governamentais das três esferas, e em cada uma das políticas setoriais, é denominado genericamente de “governo eletrônico”, e pode contribuir para a modernização e a melhoria da relação entre o Estado e os cidadãos.

Do ponto de vista administrativo, a gestão da informação e a capacidade de utilizá-la de maneira a facilitar processos, definir prioridades e interoperar procedimentos são facilitadas pelas TICs, desde que as rotinas burocráticas e a lógica institucional das instituições públicas sejam tratadas com a devida atenção. Do ponto de vista dos cidadãos, a possibilidade de contato direto com os governantes e organizações públicas por meio eletrônico, e os procedimentos remotos que economizam deslocamentos e reduzem a necessidade de lidar com a burocracia são vantagens perceptíveis quando um governo eletrônico é bem estruturado.

Naquilo que diz respeito à inclusão digital, a dimensão do desenvolvimento humano e da garantia de direitos de cidadania compreendida de maneira ampla faz com que necessariamente as iniciativas de promoção do uso das tecnologias digitais pelos cidadãos contemplem a intersetorialidade. O acesso à infraestrutura e a dispositivos técnicos, e a “alfabetização digital” como instrumentalização seriam, em uma visão restrita, os componentes da expertise específica de um programa de inclusão digital. Porém, os conteúdos

e usos, as formas de se relacionar em rede, a própria socialização por meio dessas tecnologias são arenas em plena construção pela sociedade. Esse “recheio” da inclusão digital só se torna possível a partir dos elementos contidos nas políticas setoriais: saúde, educação, cultura, assistência social, geração de renda, direitos humanos, moradia, relação com o território, entre tantas outras interfaces.

Essa condição de se relacionar transversalmente com as demais políticas apresenta oportunidades e ao mesmo tempo desafios à inclusão digital. Por um lado, torna-se cada vez mais presente a demanda de as variadas políticas setoriais incorporarem o uso das tecnologias da informação e comunicação digitais não apenas em seus procedimentos administrativo- gerenciais, mas também na relação com os cidadãos e, em especial, como ferramentas que facilitam processos ou que conformam novas maneiras de atuação. Exemplo deste último caso é, por exemplo, o uso de computadores em centros de saúde voltados à reabilitação pós- traumática, envolvendo os pacientes em atividades motoras e cognitivas, em processos de valorização de sua autoestima e na própria conquista de autonomia para tarefas cotidianas que a internet pode facilitar.

Os espaços dos telecentros, providos de computadores e outros equipamentos conectados à internet, consistem em locais privilegiados para a execução de atividades envolvendo as diversas dimensões da cidadania. Nas localidades distantes dos centros urbanos e nas periferias urbanas com pouca presença de espaços voltados às políticas públicas, o caráter multifuncional do telecentro muitas vezes se desenvolve espontaneamente. Ele se torna o espaço de encontro para atividades comunitárias de toda natureza.

Por outro lado, o caráter transversal da inclusão digital faz com que determinadas políticas setoriais assumam iniciativas de implantação de espaços de uso das tecnologias privilegiando as atividades setoriais em detrimento de outros usos possíveis. A depender da rigidez com a qual a política setorial é tratada, não é sequer adequado considerar público e comunitário o espaço implantado como telecentro. Um exemplo clássico nesse sentido são os laboratórios de informática de estabelecimentos de ensino formal. Voltados ao uso pelos alunos, muitas vezes exclusivamente para atividades pedagógicas do currículo escolar, estes espaços não se constituem como telecentros no sentido aqui apresentado.

Existem, é claro, casos de escolas que abrem seus laboratórios para o usufruto da comunidade do entorno em horários alternativos aos de uso pelos estudantes regularmente

matriculados. A amplitude do público atendido e o caráter comunitário das atividades desenvolvidas podem fazer com que esse espaço seja definido como telecentro. Porém, ainda são frequentes os relatos de laboratórios de informática que nem mesmo são utilizados por professores e alunos da própria escola. Em outros casos, a não abertura para uso universal pela comunidade do entorno escolar é justificada pela ausência de pessoal técnico especializado e para a segurança do local.

O caso das escolas exemplifica o desafio da intersetorialidade presente na especialização de funções institucionais conforme o modelo burocrático-weberiano. Ao pleitear o uso de um espaço já instalado para atividades que fogem da atribuição específica da política setorial educacional, concentrada estritamente no ensino formal, surgem variados obstáculos para a não cooperação.

A transversalidade somada à ausência de atribuição institucional exclusiva também geram a situação oposta. Como se verá no Capítulo 5, o governo federal criou, ao longo do período de 2000 a 2010, programas de apoio a telecentros em mais de treze órgãos diferentes, cada qual sendo capaz de justificar institucionalmente o motivo pelo qual deveria atuar na inclusão digital. O desafio da intersetorialidade, nesse caso, trouxe desdobramentos positivos da competição entre instituições, aumentando as alternativas disponíveis e a própria quantidade de espaços colocados à disposição da população, além de ter fomentado a criação de uma massa crítica de recursos humanos no campo da inclusão digital a partir do conjunto de telecentros implantados. Oportunidades de cooperação também foram aproveitadas, tanto em termos de recursos institucionais quanto na criação de fóruns e colegiados formais e informais, locais, regionais e nacionais, de pactuação de compromissos.

Contudo, os riscos da competição predatória também estão presentes nas relações intersetoriais. O exemplo mais premente são os casos das políticas setoriais que fizeram uso dos espaços dos telecentros, sem ter contribuído com recursos para sua implantação, manutenção ou aperfeiçoamento. A opção por criar instâncias específicas que se responsabilizam integralmente pelos custos relacionados traz o risco do não envolvimento intersetorial, esvaziando o telecentro de seu potencial de promoção de direitos de cidadania. Sem a integração das demais políticas públicas, há menos chances de realização de atividades coletivas visando ao desenvolvimento local. A persistência da não cooperação pode levar a

que os órgãos ofereçam padrões mínimos, na lógica da “corrida para o fundo” (race to the bottom), identificada em outras políticas públicas (Abrucio e Soares, 2001).

Os desafios da coordenação intersetorial são tratados por Paulo Henrique Medeiros (2004) ao analisar a política pública de governo eletrônico, com foco específico na disseminação do uso das TICs na prestação de serviços e no relacionamento do governo com os cidadãos. Segundo o autor, em arenas políticas em que existem distintos órgãos governamentais atuantes, cada qual tende a formular soluções de maneira isolada das demais, ocasionando sobreposições.

Sendo assim, as considerações levantadas por Abrucio e Soares (2001) relacionadas à cooperação federativa também se aplicam à análise institucional intersetorial da política de inclusão digital: o equilíbrio competição-cooperação depende da criação de redes de coordenação em que os conflitos sejam tratados, as competências, atribuídas; e os consensos, atingidos, sem prejudicar a autonomia institucional de cada política setorial, e de modo a garantir a unidade na diversidade. As condições situacionais e contextuais para que essa construção ocorra também depende de capacidades institucionais, lideranças capazes de costurar os acordos dos representantes em torno das questões, e de mecanismos compensatórios para fortalecer os setores mais fracos ou compensar as eventuais assimetrias intersetoriais, a depender do papel que venham a exercer.