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1.6. Efetividade da inclusão digital e políticas públicas

1.6.1. Recursos necessários à efetividade da inclusão digital

Inclusão digital, como iniciativa de política pública, pode ser resumida como a ação de promover acesso às Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) e as habilidades para seu uso. A ação deve buscar garantir a utilização cotidiana e não apenas pontual a essas tecnologias. A definição do que é inclusão digital e a delimitação de sua finalidade são elementos que variam entre os atores envolvidos nas políticas públicas.

De acordo com os conceitos de inclusão digital apresentados neste capítulo, para atingir seus objetivos, as iniciativas públicas podem buscar garantir, em um determinado modelo, o aparato físico e digital de acesso. Um segundo modelo também se preocupa em garantir as condições para utilização deste aparato, promovendo a chamada alfabetização digital. Um terceiro modelo pretende promover o uso efetivo e a apropriação das TICs. As finalidades também são diversas: desenvolver mercado, “solucionar” situações de vulnerabilidade, ou tratar das múltiplas dimensões sociais que podem ser trabalhadas mediante habilidades de uso das TICs, englobando necessidades relativas a trabalho, educação, cultura, lazer, renda, direitos e participação política, entre outras.

Em quaisquer dos modelos, a inclusão digital abarca, como requisito, uma infraestrutura composta por equipamentos com capacidade de processamento de informações, e conectividade para a transmissão de pacotes digitais de informações a outros pontos da rede técnica global (mais comumente, a internet). Ainda que a velocidade da inovação tecnológica, orientada principalmente pelo mercado, seja um fator bastante relevante à análise da questão de infraestrutura, durante o período considerado nesta tese (2000-2010), no Brasil, o computador pessoal (PC − Personal Computer) consistiu no equipamento predominante em termos da capacidade de processamento e funcionalidades para a inclusão digital. Quanto à conectividade, apesar do avanço das redes sem fio e de outras tecnologias disponíveis, a linha telefônica fixa conectada a provedor local de internet, discada ou em banda larga, foi ainda o recurso mais acessível de conexão.

O mercado de telefonia avança continuamente, a custos bastante desiguais entre países, regiões de um mesmo país e segmentos de renda. A telefonia móvel vem sendo responsável por grande parte da ampliação do uso das telecomunicações e promete oferecer as mesmas possibilidades de um computador pessoal conectado à internet no que diz respeito ao acesso, organização, recombinação, produção e disseminação de conteúdos digitais. No período analisado, contudo, este tipo de aparelho celular não estava disponível a preços compatíveis com a renda da maioria da população brasileira.

Considerando o conceito de inclusão digital assumido neste trabalho, de apropriação das tecnologias em interfaces multidimensionais da cidadania, a atenção deve se voltar para as análises já realizadas a respeito de ações de inclusão digital que buscam ir além do acesso e procuram garantir um conjunto mais amplo de recursos à população, em especial aos cidadãos que não obtêm acesso às TICs pela via do mercado.

A garantia de recursos necessários à inclusão digital foi objeto de análise de Mark Warschauer (2006), que sistematizou em quatro eixos os prerrequisitos para a utilização das tecnologias na perspectiva da “inclusão social”. Os recursos necessários para concretizar a inclusão digital, conforme a classificação utilizada pelo autor, são:

− Recursos físicos: instalação, manutenção e atualização de equipamentos, conexões de telecomunicação e espaços físicos adequados (infraestrutura técnica);

− Recursos digitais: conteúdos tornados disponíveis em formato digital na rede, incluindo instalação e atualização de softwares;

− Recursos humanos: capacitação de cidadãos em diferentes níveis de uso das tecnologias, incluindo a chamada alfabetização digital (e também a literária) e modalidades específicas para o emprego da informática e a comunicação em rede a partir da dinâmica de cada realidade local;

− Recursos sociais: relacionados às estruturas comunitária, institucionais e da sociedade em apoio ao acesso às tecnologias.

Como apresentado anteriormente neste capítulo, no contexto em que as TICs digitais vêm se disseminando como meios de produção e novas formas de mediação de relações sociais, os principais elementos relacionados a recursos físicos – dispositivos e serviços de

telecomunicações – são produtos e serviços a serem adquiridos no mercado. As habilidades de uso desses recursos físicos, desde a alfabetização digital até a efetiva apropriação das tecnologias, também tende a reproduzir as desigualdades socioeconômicas individuais e regionais, além de diferenças geracionais na adesão às novas tecnologias.

Considerando este contexto e seguindo a perspectiva colocada por Warschauer (2006), a política pública deve se propor a garantir o conjunto completo de recursos necessários à inclusão digital, não apenas os recursos físicos. Evidentemente que esta visão não é comum a todos os atores envolvidos na definição das políticas. Conforme exposto anteriormente, há quem não enxergue nas diferenças de acesso e uso das TICs digitais uma agenda de Estado ou de cidadania.

Entre aqueles que acreditam na necessidade de induzir o processo de disseminação das TICs, existe, por um lado, certo consenso de que o mercado por si só não irá promover a inclusão digital de maneira universal, e de que políticas de implantação e manutenção de espaços coletivos de acesso, tais como escolas e telecentros, permitem racionalizar a aplicação dos recursos. Por outro, no período entre 2000 e 2010, persistiu entre alguns atores a concepção de que é suficiente instalar totens de autoatendimento ou doar computadores para entidades sem fins lucrativos promoverem cursos de informática voltados às pessoas de menor renda, treinando-as em aplicativos para escritório sem qualquer perspectiva de desenvolvimento de habilidades para uma relação autônoma e crítica diante das tecnologias, ou objetivando a melhoria de sua qualidade de vida em sentido multidimensional.

O desafio de garantir o conjunto de recursos necessários à inclusão digital esbarra inicialmente no problema da infraestrutura. Assim como as políticas sociais “clássicas” (saúde, educação, assistência social e previdência), a disponibilidade de meios físicos é um requisito imprescindível à inclusão digital. Conforme exposto neste Capítulo, tal disponibilidade se desenvolveu orientada ao mercado, com tendência a se concentrar onde os negócios podem ser mais rentáveis. Isso ocorreu também no Brasil, como se verá no Capítulo 3. Ao longo do período analisado nesta tese (2000-2010), a infraestrutura que permite a oferta de internet em banda larga se expandiu, porém de maneira fortemente concentrada em regiões de alta densidade populacional e maior renda. Regiões de alta renda e baixa densidade populacional, como pontos de agronegócio instalados no meio rural, dependiam de serviços sem fios, por satélite ou de internet a partir da telefonia celular. Ainda assim, o custo do

serviço era alto se comparado a velocidades de conexão semelhantes nas regiões mais adensadas (Afonso, 1999, 2000, 2001 e 2004; Brasil, 2010a).

As regiões em que a acumulação de riqueza era maior, como São Paulo e o Distrito Federal, estavam mais bem supridas pelas forças do mercado em termos de disponibilidade de recursos físicos, enquanto as regiões remotas, como o semiárido nordestino e a Floresta Amazônica, não possuíam sequer serviço público de energia elétrica, quanto mais “infovias”. Há que se ter em conta ainda que, mesmo nas regiões mais ricas, havia concentração da infraestrutura nas áreas centrais das grandes metrópoles, enquanto as periferias e bairros ocupados não interessavam às empresas ofertadoras dos serviços.

Esta necessidade imprescindível do meio físico explica por que corporações detentoras de concessões de serviços de telecomunicações e radiodifusão, produtores de equipamentos de infraestrutura e fabricantes de computadores e componentes exercem forte pressão pela inclusão digital em todo o mundo. O peso da infraestrutura no desenvolvimento da política pública de inclusão digital será aprofundada mais adiante, quando da descrição e da análise do panorama brasileiro.

No que diz respeito aos recursos digitais, os conteúdos tornados disponíveis na rede têm uma série de implicações. A primeira delas é o predomínio da língua inglesa, deixando nítida a força hegemônica dos Estados Unidos na sua produção e difusão. Há outros aspectos relativos a idioma, contudo, que não serão aqui aprofundados6. Há, ainda, os softwares que

fazem o aparato físico funcionar. Consistem nos sistemas operacionais das máquinas e em aplicativos que permitem aos equipamentos servir a múltiplos usos. Os softwares evoluem continuamente, acompanhando o aperfeiçoamento dos meios físicos. Também se diversificam, mediante a constante criação de novas demandas e funcionalidades.

A escolha de quais conteúdos e softwares estarão disponíveis ou serão priorizados nas ações de inclusão digital se relaciona com as forças políticas em disputa, constituindo-se em elementos a serem analisados para além do ângulo meramente técnico. Um exemplo disso é o debate em torno do uso de softwares livres nas políticas de inclusão digital. Além de serem gratuitos, sua principal característica diz respeito ao código-fonte – a “receita do bolo” – que consiste em roteiros (scripts) de programação. Um software é livre quando seu código-fonte está disponível para que qualquer indivíduo com conhecimento de linguagem de programação 6 Para considerações a este respeito, ver Warschauer (2006).

possa ter acesso a ele, estudá-lo, realizar ajustes e adaptações, agregar novas funcionalidades e redistribuí-lo. As melhorias realizadas por quem modifica o código seguem a mesma regra: devem ser tornadas disponíveis para que outros tenham a mesma possibilidade de livre uso, permitindo a atualização contínua, coletiva e gratuita do software.

Os softwares não livres são chamados de softwares proprietários. Mesmo se distribuídos gratuitamente, não permitem acesso a seu código-fonte. Assim, somente a empresa ou indivíduo que detém os direitos sobre aquele conteúdo pode realizar modificações, ajustes, melhorias e agregar funções ao software. Esta estratégia permite que o proprietário do código cobre por cada nova versão do software, controlando o seu uso e desenvolvimento, e garantindo a dependência do usuário em relação a um único fornecedor. O software proprietário mais conhecido é o sistema operacional Microsoft Windows, que possui atrelado a ele uma infinidade de softwares proprietários produzidos pela própria empresa e por outros fornecedores, exercendo um quase monopólio sobre os computadores PC em todo o mundo. O sistema Mac/OS, também proprietário, funciona nos equipamentos da empresa Apple, que retomou força no mercado atrelando dispositivos a softwares. E o sistema operacional livre mais difundido é o GNU/Linux, desenvolvido em diferentes distribuições que rodam sobre um coração comum de sistema, o chamado kernel. O sistema operacional GNU/Linux, suas distribuições (variações) e aplicativos são desenvolvidos por comunidades de programadores interconectados globalmente, que lançam novas versões continuamente para que os usuários do sistema atualizem seus computadores, sem necessidade de comprar os novos módulos do software.

Conteúdos e softwares acessíveis e atualizáveis são, portanto, recursos digitais imprescindíveis à inclusão digital.

Outro recurso necessário à inclusão digital é garantir que existam pessoas (recursos humanos) em condições de proporcionar que um número grande de outras pessoas se aproprie do uso das tecnologias para diferentes finalidades e em variados níveis de habilidade. A primeira habilidade fundamental é a própria alfabetização literária, sem a qual um indivíduo não explora plenamente os conteúdos digitais, ainda que consiga acessá-los. Já a chamada alfabetização digital consiste em aprender a usufruir das tecnologias da informação e da comunicação, de modo a empregá-las em consonância com necessidades individuais e coletivas.

As habilidades de uso das TICs são cumulativas e evolutivas, demandando contínua atualização e aperfeiçoamento, em especial tendo em vista o acelerado desenvolvimento tecnológico. Sendo assim, as ações de inclusão digital demandam um corpo técnico finalístico estruturado, atualizado e em atividade permanente, atento às necessidades dos cidadãos a que a política se dirige e à evolução tecnológica.

Para determinadas vertentes, trata-se de formar técnicos em informática e redes para a manutenção da infraestrutura. Para outras, deve haver facilitadores do processo de apropriação tecnológica pelos cidadãos, de modo a garantir uma relação autônoma como sujeitos perante a tecnologia, colocando-a a seu serviço.

A questão dos recursos humanos para a promoção da inclusão digital possui, portanto, uma importância que varia conforme a finalidade da iniciativa. A formação é valorizada principalmente pelas ações de inclusão digital que visam à apropriação das tecnologias e ao seu uso efetivo pelos cidadãos. Como se verá na análise da política pública brasileira, a complexidade institucional e o peso orçamentário referentes à formação e à remuneração contínua de recursos humanos devem ser levados em consideração na análise dos programas.

Um último aspecto em termos de recursos para propiciar a inclusão digital, colocado por Warschauer (2006), são os recursos sociais, relacionados às estruturas comunitárias, institucionais e da sociedade em apoio ao acesso às tecnologias. A tese do autor é de que os sujeitos envolvidos na inclusão digital relacionam-se coletivamente e, desta forma, o conjunto de atores sociais de uma determinada comunidade se influencia mutuamente nos processos de aprendizagem e de uso das tecnologias. Se um indivíduo se identifica e se relaciona com outro que já maneja o computador, isso contribui para a percepção de si próprio como sujeito capaz de usufruir da mesma tecnologia e, portanto, de aprender como utilizá-la. As relações de poder entre indivíduos também podem influenciar a apropriação tecnológica. A depender da estrutura social em que vive, um indivíduo de menor poder aquisitivo pode sentir-se incapaz ou desinteressado pela aprendizagem do manejo das tecnologias, por considerá-las instrumentos exclusivos de uma elite privilegiada.

Assume-se aqui que são, no mínimo, esses elementos – recursos físicos, digitais, humanos e sociais – que devem estar no foco de ação do Estado ao desenvolver uma política pública de inclusão digital. Para fins desta tese, a garantia destes recursos confere efetividade potencial à política pública. Sem que estes recursos estejam disponíveis à população, a

efetividade não é atingida. Percebe-se, assim, que o conceito de efetividade aqui utilizado não se refere à mensuração direta do uso dos recursos ou da avaliação das políticas implantadas perante a população beneficiária.

A efetividade potencial consiste na capacidade da política pública de tornar disponíveis os recursos necessários à inclusão digital. Estes devem ser garantidos nos processos implementados pelas iniciativas que têm por objetivo promover a apropriação das TICs.