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Análise regionalizada de fatores da vitalidade econômica

CAPÍTULO 2. UMA ANÁLISE REGIONALIZADA DA COMARCA DO RIO DAS MORTES

2.3 Análise regionalizada de fatores da vitalidade econômica

No século XIX, com o processo de ruralização131 da economia mineira, a rede urbana continuou se expandindo, se diversificando, estruturada por polarizações múltiplas e mais abrangentes em termos territoriais, em novos eixos de expansão e de articulação da zona mineradora com os ricos vales do Paraíba e do Paraibuna. Famílias mineradoras da Comarca do Rio das Mortes, após negócios bem sucedidos com ouro, instalaram fazendas de café no vale do Paraíba, chegando até as terras fluminenses.

Com o advento da ferrovia imperial no sul de Minas, do terceiro quartel do Dezenove em diante, os fluxos entre os núcleos urbanos da Comarca foram alterados, mudando as rotas de tropeiros e a dinâmica nas atividades comerciais: ao invés de entregar a mercadoria na Corte, os tropeiros preferiram entregar as mercadorias no trem e assim ganhavam mais tempo para novas viagens de negócios.

A industrialização moderna inicia-se na Comarca com a instalação do pólo têxtil na ‘Manchester de Minas’, Juiz de Fora, que se tornou um pólo atrativo na rede urbana da Comarca do Rio das Mortes, até muito mais pujante que São João Del Rei, devido à modernização e a novas conexões econômicas com o litoral. Essa diversificação e a capacidade de se ajustar à dinâmica das novas atividades comerciais no país, nos

130 Nosso recorte concentrou-se na rede urbana, no entanto sugere-se, em estudos posteriores,

aprofundar a comparação de assentamentos humanos urbanos e rurais. Aguardemos resultados da pesquisa de Carrara (2006), que começou estudos sobre a Décima Predial urbana, ainda em andamento (segundo informação colhida em fins de 2014).

131 Ruralização advém de uma antiga terminologia oriunda da noção de ruralização da economia ocorrida como conseqüência da crise do Império Romano, quando a população urbana deixou as cidades e saiu para o campo, iniciando o regime do ‘colonato’- o proprietário de terras arrendava terras aos camponeses, que pagavam o tributo com parte da produção agropastoril. A expressão ruralização da economia mineira, no começo do Dezenove, se refere aos fluxos de migração terem invertido dos espaços urbanos mineradores para espaços rurais, no eixo sul de Minas, com transferências de população e negócios do urbano para o rural, desde o último quartel do XVIII, estendendo-se pela primeira metade do Dezenove, tendo resultado no crescimento do termo de Campanha, que, em 1814, agregou-se aos termos de Jacuí e Baependi, compondo “o grande termo de Campanha”, que polarizou a ocupação do sul de Minas na primeira metade do século XIX (CUNHA, Alexandre Mendes, 2007).

ajudam a compreender a importância do papel da rede urbana da antiga Comarca do Rio das Mortes na economia mineira132.

Temos, portanto, na Comarca, após a mineração setecentista do ouro, uma transição bem sucedida de investimentos: primeiro na mineração; em paralelo e também depois do ouro, vieram os investimentos agropastoris e em manufaturas, acompanhados daqueles referentes ao comércio com diversas praças, até alcançar, em fins do Dezenove, a expansão do café, as ferrovias e a industrialização.

O fato de haver mineração e, ao mesmo tempo, agropecuária e comércio indica que havia, entre os investidores das Minas dos Negócios, a prática de abrir várias frentes, simultâneas – caso um negócio fracassasse, haveria outro a prosseguir. Essa transição econômica é tida como bem-sucedida. Diz-se que a Comarca do Rio das Mortes, após o fim da exploração do ouro, permaneceu como uma “exceção de prosperidade” em Minas, devido ao bom resultado da mudança de negócios minerários para a produção agropecuária, abastecimento e comércio.

No Império, começa um novo ‘ciclo’133 de entrada de dinheiro na Comarca do Rio

das Mortes, agora pelo comércio interprovincial, mas não o pequeno comércio, e sim os grandes negócios do ‘capitalismo comercial’: “cessada a mineração, mergulhou o Centro-Sul em sua primeira grande crise de produção; [...] numa organização social em que a alta proporção da população escrava não permitia um comércio interno suficientemente rico para o seu progresso [...]” (ABREU, 1934. 1977)134. A saída

encontrada para aquela crise foi investir no comércio com a província do Rio de Janeiro. Segundo Capistrano de Abreu (1934. 1977), a interiorização do povoamento

132 A participação dos municípios criados no antigo território da Comarca do Rio das Mortes foi importante no século XVIII e no XIX e permanece importante ainda hoje, na Minas Gerais contemporânea, contribuindo com o percentual de 21,38% do PIB mineiro em 2011.

133 Evitamos, atualmente, usar a palavra ‘ciclo’, substituindo-a por expressões como ‘formas permanentes de atividade econômica’, ou ainda ‘fase’, ou ‘período’. No entanto, uma vez encerrada a conjuntura econômica da ‘busca de ouro’, o comércio da produção agropastoril pareceu constituir um substituto da ‘primeira fase do Eldorado’. O sistema econômico da mineração foi substituído pelo sistema econômico comercial para escoamento da produção agropastoril das Minas. Conforme Maria Yedda Leite Linhares (1979, p. 153), no que se refere ao capitalismo comercial (em especial, o ‘caráter cíclico’ da economia colonial brasileira, tal como se dizia até os anos 1970), hoje, apesar da revisão crítica dessa peculiar noção de ciclo, ela permanece embutida, disfarçada, sem jamais ter sido superada: jogamos a noção de ciclo

pela porta afora e ela volta pela janela. “[...] A empresa mineradora e a economia escravista

mineira no século XVIII articulou-se com regiões meridionais (brasileiras) reconstruindo a racionalidade de outro sistema econômico, unindo, então, a economia rural ao capitalismo comercial”, conforme Lemos Brito, citado por Linhares (BRITO, José Gabriel de Lemos. Pontos

de partida para a história econômica do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1922. In:

LINHARES, Op. Cit. 1979, p.149-150).

134 ABREU, Capistrano de. Capítulos de História Colonial- 1500

– 1800. (1934). 2. ed. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1977. p. 268- 294.

no território brasileiro (em especial nas Gerais) refletia, então, um sensível dinamismo social e econômico:

Desenganada do ouro, a população procurou outros meios de subsistência: a criação do gado, a agricultura de cereais, a plantação de cana, de fumo, de algodão; com o tempo avultou a produção ao ponto de criar-se uma indústria especial de transportes, confiada aos históricos e honrados tropeiros (ABREU, 1934, republicada em 1977, p.166).

Nesse ínterim, após o ouro, a pecuária leiteira havia crescido na Comarca e tinha sido incrementado o fabrico de queijos; cuja produção destinou-se ao abastecimento do Rio, tornando-se um atrativo de consumo para os novos habitantes da Corte (os laticínios de São João ganharam fama no Império; popularmente São João de Rei ainda hoje é conhecida como ‘São João dos Queijos’). A expansão da pecuária leiteira, na Comarca, impulsionou a ampliação de suas fronteiras em direção aos

sertões incultos. Consideramos importante mencionar que o crescimento do setor de

abastecimento interno, em especial a pecuária bovina nessa antiga região mineradora de Minas Gerais, continuou a utilizar o trabalho escravo. A rede urbana em expansão se situa, no começo do XIX, no contexto de uma sociedade ainda pautada no trabalho escravo135.

A Comarca do Rio das Mortes não decaiu economicamente, nem no XVIII, nem no XIX, nem tampouco nos XX e XXI. Constituiu-se uma espécie de “exceção de

prosperidade”, no sentido que Minas decaiu, mas a Comarca do Rio das Mortes, excepcionalmente, não.136 (Ver também Nota x). Não se pode tomar a parte pelo todo,

uma vez que a Comarca do Rio das Mortes, no Império, se manteve próspera, sobretudo no comércio.

135 ANDRADE, Marcos Ferreira de. Elites regionais e a formação do Estado imperial brasileiro- Campanha da Princesa (1799-1850). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008. 136

Sobre a controvérsia entre ‘decadência’ versus ‘não decadência’ das atividades produtivas setecentistas em Minas ver: LINHARES, Maria Yedda Leite. O Brasil no século XVIII e a Idade do Ouro: a propósito da problemática da decadência. In: Seminário sobre a cultura mineira

no período colonial. Anais. Conselho Estadual de Cultura de Minas Gerais (Org. ), 20 a 24 de

nov., 1979. Belo Horizonte: CECMG, 1979. “[...] o desenvolvimento da mineração (nas Minas Gerais) ajudou a incrementar a formação de novas áreas de produção rural [...]; o esgotamento progressivo das lavras passa a coincidir, numa conjuntura internacional favorável (final do século XVIII), com oportunidades que se reabrem para a grande lavoura do açúcar, que depois pouco a pouco cedeu passo ao café, no comércio atlântico e, consequentemente, para os negócios do Reino, com novas perspectivas para as lavouras de exportação.[...] o decréscimo, ou mesmo esgotamento, da produção aurífera não impediu que o ouro continuasse a afluir, como foi o caso do antigo arraial do Rio das Mortes (devido à sua boa localização no Centro- Sul), “pois abastece toda a Capitania (refere-se ao último quartel do século XVIII) do fruto de sua atividade agrária, pastoril e manufatureira”. (HOLANDA, citado por LINHARES, 1970, p.159-1960).

Por que a Comarca do Rio das Mortes não teria decaído? Por que seus núcleos urbanos continuaram a expandir? Quando houve o estancamento das lavras, a Capitania mineira possuía uma população de cerca de 600 mil habitantes, conforme Wilson Cano (1977, p. 91 a 109). 137 Como é possível que 600 mil pessoas possam

ter, repentinamente, paralizado tudo e se apagado do cenário colonial? Será que ao invés de paralisação, ou estagnação, teria havido um movimento de mudança para outros tipos de negócios não minerários? Cano (1977) levanta uma hipótese de revisão da historiografia econômica muito esclarecedora: o que estagnou foi a acumulação de riqueza na Metrópole, foi a alta lucratividade do comércio do ouro e das pedras preciosas pelos comerciantes europeus, o que entrou em crise de funcionamento foram as injunções da economia capitalista em expansão com o exterior da colônia, em especial com a Inglaterra...

Entrementes, a nossa economia interna mineira não estagnou, nem estancou, nem parou de funcionar; a riqueza do ouro das Minas Gerais do século XVIII mudou de lugar, houve aqui uma transição bem sucedida de investimentos em atividades produtivas diversas, como o comércio, a produção agropecuária e, mais adiante, em fins do XIX, a industrialização... “Não houve estagnação, mas sim transição”: conforme Fernando A. Novais (2006), no Rio das Mortes não houve estagnação, mas sim transição da economia escravista mineradora para o capitalismo comercial...

Essa ‘não estagnação’ e a reversão da economia colonial em Minas Gerais (em especial na Comarca do Rio das Mortes), no último quartel do Dezoito, nos ajuda esclarecer porque o sul de Minas estava tão bem preparado para abastecer o Rio de Janeiro, quando a Corte portuguesa se transferiu para o Brasil em 1808.138 .

É preciso considerar que, no processo de formação e expansão das vilas do sul de Minas, dentre os comerciantes e produtores agrícolas que impulsionaram os novos negócios nos oitocentos havia pessoas altamente empreendedoras que construíram toda uma movimentação econômica de uma antiga região mineradora que veio a se

137 Conforme Patrícia Vargas L. de Araújo (2004, p.2), “no começo do século XIX verifica-se um crescimento demográfico expressivo na comarca do Rio das Mortes, sendo as vilas de São João del-Rei, Barbacena e Campanha os principais centros urbanos. Em 1821, a comarca perfazia um total de 41, 6% dos habitantes da Capitania, representando 231.617 pessoas”. In: ARAÚJO, P. V. L. Uma pequena cidade mineira: Campanha na virada do século XIX. Anais do XVII Encontro Regional de História – O lugar da História. ANPUHSP_UNICAMP. Campinas, 6 a 10 set 2004. Disponível em: http://www.anpuhsp.org.br/

138 Alcir Lenharo (1978) estudou profundamente o drama da política por detrás dessa mudança da economia mineradora no rumo do comércio de abastecimento do Rio de Janeiro nas três primeiras décadas do século XIX Ver: LENHARO, Alcir. Política e negócios: o comércio de abastecimento do Rio de janeiro, 1808-1831. Dissertação de Mestrado. São Paulo: USP, 1978.

tornar uma próspera produtora de alimentos e abastecedora do mercado internoxi (ver

Nota 9). Houve, na Comarca, muito empenho de muitas famílias da elite e da burguesia emergente em granjear fortunas.

A Comarca surgiu e se movimentou em boa parte em torno do ouro. Propomos uma organização dos fatores de vitalidade econômica pautados pelo “ouro”: ‘ouro e povoamento inicial da comarca’; ‘ouro e a fixação populacional’, ‘ouro e as fundações urbanas’, ‘o ouro e a cadeia de dependências’. Vejamos, a seguir.