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CAPÍTULO 2. UMA ANÁLISE REGIONALIZADA DA COMARCA DO RIO DAS MORTES

2.3. b) O ouro e a fixação populacional

Quem construiu as cidades do ouro e nelas viveu? Milhares de forasteiros foram atraídos para a rica província mineralógica a se explorarxii, cuja notícia rapidamente

espalhou com o ‘boom’ da Corrida do Ouro em Minas. As leis do ouro vieram antes da completa fixação da população na Comarca. Essas leis foram os Códigos Mineiros de 1608 e de 1618 e, a maior delas, o Regimento das Datas de 1702, lei regulamentadora

156 Na realidade, grande parte dos textos de Richard F. Burton foi reescrita por sua esposa

Isabel, literata e botânica, que o acompanhou no Brasil, anotou os diários de viagem e fez a revisão final do livro do marido.

que estipulava o tamanho dos lotes de mineração e o tipo de contrato com os mineradores.157

Raymundo Faoro158, em estudo sobre o sistema de governar dos portugueses

no Brasil colonial, nos diz que, nas minas, as leis antecederam a fixação da população porque antes mesmo de começar a exploração do ouro, a Coroa portuguesa havia expedido os Códigos Mineiros de 1608 e de 1618.

Entretanto, quando houve o ‘boom’ da Corrida do Ouro, as minas exigiram da Coroa uma exploração sistemática e um sistema fiscal mais eficiente, ou seja, inverteu-se a situação. Ao invés das leis dominarem as minas, a realidade da mineração acabou determinando a ação do poderio régio da Coroa. Os potentados e oligarcas se instalaram nas minas antes da chegada dos funcionários de confiança do rei159, que tiveram dificuldades para iniciar a coordenação da máquina burocrática da

Coroa e implantar a fiscalização da cobrança do quinto real. A estabilização da população e sua fixação nos arraiais e vilas demandaram empenho e estratégias do governo metropolitano no sentido de garantir a colonização no Brasil e de ‘honrar a

157 O Regimento dos Superintendentes, Guarda-Mores e Oficiais Deputados para as Minas de Ouro, também chamado Regimento das Datas, foi expedido em 19 de abril de 1702 e vigorou até o Império. No Regimento das Datas criava-se o cargo de Intendente das Minas, a quem cabia administrar a mineração, a supervisão de todos os serviços das lavras de metais e pedras preciosas. A Intendência respondia pela distribuição das datas, que eram a demarcação dos terrenos auríferos em lotes de duas braças por escravo, até o máximo de 30 braças, ou quinze escravos por minerador. A Intendência cobrava o quinto e fiscalizava os descaminhos do ouro. In: RIO DE JANEIRO, Prefeitura da Cidade. Secretaria Municipal de Educação. O

Regimento das Minas. A Intendência das Minas. 2015.

Disponível em: http://www.multirio.rj.gov.br/historia/modulo01/reg_minas.html

158 Conforme Raymundo Faoro (2000) desde o início do período do Ouro se fez sentir a centralização do poder português. Portugal transplantou para a colônia brasileira o seu sistema de governar, desde a criação do governo geral sediado em Salvador. Para Faoro o sistema administrativo da colônia foi coeso e racional e a colonização no Brasil só foi possível porque houve a presença forte do Estado e suas leis. Nos Códigos Mineiros de 1608 e de 1618 e no Regimento de 1702 constava que todos os súditos do rei podiam extrair livremente o ouro, desde que reservassem para a Fazenda Real a quinta parte do produto (o Quinto Real).

159 Dentre os potentados e oligarcas que se instalaram nas minas antes da chegada dos funcionários de confiança do rei, citemos os desdobramentos da Guerra dos Emboabas, embate entre paulistas, baianos e portugueses nas duas primeiras décadas do século XVIII. O governo português em Minas (dos Condes de Bobadela) teve grande dificuldade de instaurar a ordem nos ‘sertões das minas’, onde a mineração, o contrabando, o comércio do gado eram negócios rentáveis nos quais a autoridade régia não era bem vinda. Dentre os potentados que enfrentaram o rei, houve Manuel Nunes Viana (em Caeté). Luciano R. A. Figueiredo (2001) estuda a resistência dos potentados ao rei. Laura de Mello e Souza (2006) também discute as estratégias tributárias metropolitanas para controle das finanças e para estabilizar a colonização no Brasil. Ver: FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. O império em apuros: Notas para o estudo das alterações Ultramarinas e das práticas políticas no Império Colonial Português, séculos XVII e XVIII. In: FURTADO, Júnia Ferreira (org.). Diálogos oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do Império Ultramarino Português. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. Ver também: SOUZA, Laura de Mello e. Norma e conflito: aspectos da história de Minas no século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

palavra do rei’, no sentido que as pessoas que vinham se instalar nas Minas tivessem um ambiente onde valesse a ordem. Mas os desmandos e o contrabando continuaram e o controle da Coroa recrudesceu, pela implantação de um sistema judicial mais eficiente.

Durante a mineração do ouro, a fixação da população não se dava propriamente no terreno das datas, pois esse espaço era exclusivo para aqueles que obtinham permissão para explorar a mineração. Os mineradores erguiam barracos junto às catas. A população envolvida nos demais negócios se fixava em volta das lavras, e também ocupava terras ao longo dos caminhos em área rural, nos “ranchos”. Charles Boxer (1969, p. 71) aponta a existência desses ranchos, granjas e fazendas vizinhas aos principais campos auríferos e que se dedicavam à produção de hortaliças, grãos e animais para carne, como o embrião da lenta transformação em vilas.

O apossamento de terras, após o período descobrimento das minas, foi seguido de requerimentos dos posseiros em pedidos de foros para terrenos no arraial e também para regularizar a posse dos ranchos na zona rural.160 Tais ranchos

localizavam-se próximo aos arraiais, no entorno expandido, onde se organizavam não só os ranchos, como também pousos de tropas, os sítios e chácaras de atividades agropastoris, abastecedores das minerações, o entreposto, o local de suprimento e das trocas comerciais, conforme Sylvio de Vasconcellos (1959, p.5).161 Vemos assim,

que a mineração do ouro foi o primeiro fator de fixação do homem à terra.

O segundo fator de fixação foram ações da Igreja Católica, e das ordens terceiras (as irmandades e confrarias). A igreja foi a grande fundadora urbana na Comarca e dava a garantia de permanência no entorno de capelas, igrejas, ermidas em terrenos doados para moradia. Havia arraiais surgidos em patrimônios religiosos doados às capelas e, depois da mineração, foram parcelados para moradia e para estabelecer o comércio. Segundo Murillo Marx (1990, p. 390-391), o patrimônio religioso foi fundamental no quadro de terras de Minas, no sentido de acolher e agregar a população que se fixava no lugar. Sylvio de Vasconcellos diz: “[...] nas populações primevas, [...] unem-se os indivíduos em torno de uma única capela, [...] núcleos de povoação nascente e ponto de referência do lugar” (VASCONCELLOS, 1958, p.16).

160 Ver: BORREGO, Maria Aparecida de Menezes. Códigos e práticas: o processo de constituição urbana em Vila Rica colonial (1702- 1748). São Paulo: Anna Blume, 2004.

161 VASCONCELLOS, Sylvio de. Arquitetura no Brasil: Sistemas construtivos. Belo Horizonte: Ed. Escola de Arquitetura, 1958, p.5.

Um terceiro fator que mensura o grau de fixação do homem à terra é a ordenação urbana civil. Os atos administrativos dos Senados das Câmaras Municipais, fazendo cumprir as leis civis, nos dão uma boa medida de como se conformavam os espaços urbanos na comarca, por meio de instituições administrativas urbanas.

Um bom indicador da fixação populacional no território da comarca pode ser aferido por meio de investimentos em imóveis urbanos. A base de estudos dessa aferição são cadastros de imóveis num dado período. No começo do século XIX, duas vilas foram imputadas da ‘Décima Predial’, São João Del Rei e Campanha, aplicada sobre os novos prédios urbanos construídos na sede urbana e em seus distritos, a partir de 1812. Para tanto, o governo arrolou o número de casas existentes nas áreas que as Câmaras Municipais arbitravam ser a zona urbana, identificando as medidas e características construtivas. Angelo Alves Carrara (2006) 162 pesquisou o caso da

Décima Predial em diversos núcleos da Capitania: Ouro Preto, Sabará, Diamantina, São João Del Rei, Paracatu, Mariana, Serro, Pitangui, Campanha e São Vicente. Em São João del Rei , em 1812, a Décima Predial cadastrou 785 imóveis.

À medida que a população se fixava no território, o Estado junto com a Igreja e suas autoridades designadas foram organizando a arrecadação tributária (como a Décima Predial, que no século XX deu inspiração para se criar o IPTU), a legislação urbana, as primeiras instituições administrativas urbanas (as santas casas, o cemitério, o sistema de abastecimento de água, os orfanatos, as escolas...) etc.

Posteriormente, ao declínio do ouro, já caminhando para o século XIX, a fixação populacional na Comarca foi superando a necessidade de estar mais próximo do controle das minas e houve um redirecionamento para a abertura de novas fronteiras agrícolas, levando ao surgimento de novos assentamentos humanos, novas fundações urbanas e novas polarizações.