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CAPÍTULO 2. UMA ANÁLISE REGIONALIZADA DA COMARCA DO RIO DAS MORTES

2.3. d) O ouro e a cadeia de dependências

Vimos que, na Comarca do Rio das Mortes, o capital excedente da mineração do ouro alavancou a expansão urbana, a implantação do sistema de abastecimento, e a protoindustrialização, a abertura de novas fronteiras agrícolas (como o café) resultando na fixação populacional na sua rede urbana. O declínio da mineração do ouro levou a economia mineira a mudanças estruturais, com o redesenho dos espaços econômicos no território mineiro: a mineração se modernizou, mudando a polarização em direção a Congonhas e Nova Lima, e os investimentos agrícolas polarizaram rumo aos vales do Paraibuna e do Paraiba.

Essa mudança de rumos afetou a expansão urbana da Comarca do Rio das Mortes, surgindo novas frentes de urbanização oitocentistas: na mata mineira, no alto Paropeba, nas divisas da Comarca do Rio das Mortes com a de Vila Rica e a de Sabará.

Entendemos por ‘cadeia de dependências’ da mineração, a mineração em si e seus negócios secundários, que geraram espaços econômicos diferenciados na comarca. Os negócios da mineração aurífera consistiam numa infinidade de serviços minerários que se instalavam nas minas como: construtores, ferreiros, marceneiros, funileiros, coureiros, cantareiros etc. Nos depósitos aluviais e nos veios nas montanhas, uma série de serviços especializados se organizava para quebrar as rochas e extrair o ouro, demandando uma parafernália de canais de água, rodas mecânicas, esteiras, peneiras, moedores e tantos elementos do complexo mistér da mineração. Havia também outros serviços de fundição do ouro e ourivesaria. A mineração atraiu negócios variados.

Destacamos documentos pesquisados (em 1970; FIGs. 03 e 04) por Ivo Porto de Menezes no Arquivo Histórico Ultramarino, o Mapa do Rendimento do Real Quinto

e Escovilhas do Décimo Ano que “principiou no primeiro dia de Agosto de 1760 e findou no último de julho de 1761, fundiu-se 3.957 barras com as quais se despenderam outras tantas”. No ano seguinte (1762), o Mapa do Rendimento do Real

Quinto e Escovilhas do Décimo Primeiro Ano, entre agosto de 1761 e julho de 1762,

FIGURA 03- Mapa do Rendimento do Real Quinto e Escovilhas do Décimo Ano (1761) Fonte: Arquivo Histórico Ultramarino,1761

FIGURA 04- Mapa do Real Quinto do Ouro e Escovilhas do Décimo Primeiro Ano (1762) Fonte: Arquivo Histórico Ultramarino,1762.

Os negócios secundários da mineração do ouro eram aqueles que gravitavam em torno da mineração: o comércio, o abastecimento, a produção agropastorial, o tropeirismo, os serviços especializados, os ambulantes, a importação de cavalos e mulas etc. Dentre os serviços especializados decorrentes da mineração do ouro, destacaram-se as forjas de ferreiros e o ofício de ourives (cunhador e abridor de moedas), especialidades que se encontravam nas comarcas mineiras (mas não se encontrava na corte do Rio), dando-nos uma ideia do desenvolvimento econômico alcançado nessas comarcas.

Na segunda metade do século XVIII, a cadeia de dependências do ouro, na Comarca do Rio das Mortes, fez nascer um espaço econômico diversificado a partir do foco minerador inicial. Foram se adensando as rotas de comércio com a parte mais ao sul do Brasil e com o nordeste da Colônia. Do sul do Brasil, se importava mulas e cavalos. Do sertão baiano, carne seca. Do “hinterland” da região mineradora, as redes de provimento articulavam a comercialização de produtos agrícolas (milho, arroz, feijão, mandioca), produtos pecuários (gado porcos, queijo, carne salgada) e manufaturados (rapadura, aguardente, fumo, açúcar, fubá de milho, farinha de mandioca, queijos, charque).

Caminhando para o século XIX, núcleos urbanos da Comarca cresceram com o desenvolvimento agropastoril, em vetores ou fluxos de polarizações, cujos pólos urbanos eram os seguintes, partindo da cabeça da Comarca em direção a:

Goiás: Oliveira, Divinópolis, Jacui, Pitangui, Itapecerica, Abaeté

São Paulo: Dois fluxos: um por Lavras, Pouso Alto, Aiuruoca, Baependi; outro por Campanha, Pouso Alegre, Caldas, Alfenas, Guaxupé.

Rio de Janeiro: Congonhas, Queluz, Barbacena, Juiz de Fora, Matias Barbosa, Mar de Espanha, Leopoldina, Cataguases.

FIGURA 05- Fluxos oitocentistas na Comarca do Rio das Mortes

Fonte: da autora, 2015.

Na Figura 05, os fluxos oitocentistas da comarca em direção ao Rio de Janeiro, São Paulo e Goiás, que eram definidos por importantes rotas comerciais, que articulavam as trocas econômicas entre os núcleos urbanos, acompanhando as mudanças estruturais de Minas Gerais.

Na Capitania das Minas Gerais, sentindo que a mineração do ouro declinava, a economia mineira passou por mudanças estruturais. Uma dessas mudanças foi na forjaria. Para Libby (1988), as numerosas forjas disseminadas em Minas Gerais no século XIX não se restringiam a obras para mineração aurífera. A pauta de produção das forjas constituía-se por ferramentas agrícolas, ferraduras e outros instrumentos utilizados pelas numerosas tropas, que compunham o setor de transporte e representavam importante parcela do mercado consumidor. Em face à redução das

atividades de mineração, os setores agrícolas e de transporte foram importantes consumidores dos produtos das pequenas fundições.165

Para superar a queda da extração do ouro, impôs-se o redesenho dos espaços econômicos no território mineiro, intensificando a comercialização de produtos agropecuários e manufaturados, conforme Renato Pinto Venâncio (2002),

[...] no início do século XIX, às vésperas da Independência, os eixos comerciais mineiros formavam um vasto emaranhado de redes de trocas internas. Vila Rica funcionava como um interposto de mercadorias vindas de outras capitanias ou mesmo da metrópole, recebendo manufaturas, vinhos, escravos, ferramentas e remédios, que revendia para os outros núcleos. A capital mineira, por sua vez, enviava doces, queijo, ouro, entre outras mercadorias, para o Rio de Janeiro e comprava gado da cidade vizinha de Mariana, que provavelmente vinha da Zona da Mata, e alimentos agrícolas de São João Del Rei. No período da crise da economia aurífera havia, portanto, uma expressiva articulação comercial nesses dois tradicionais núcleos de mineração (VENÂNCIO, 2002, p. 180)166.

O estudo de Venâncio é corroborado por Angelo Alves Carrara (1993), em seus estudos sobre a Mata mineira, e por Mafalda P. Zemella (1990), que discorre, em sua tese de doutorado, defendida em 1951, sobre como a agropecuária se desenvolveu junto com a mineração em Minas Gerais. Em Minas, a atividade agropecuária sempre existiu, mesmo durante o período de intensa extração aurífera e Segundo Zemella167,

o comércio dos bens agrícolas, vestuário, equipamentos, maquinário e animais era fonte de renda para suprir os garimpeiros e mineradores, que lhes parecia extremamente interessante, pois o comerciante juntava ouro sem ‘sujar as mãos na terra do garimpo, nos tabuleiros, nas grupiaras e faisqueiras’.

Desde 1780, São João Del Rei, cabeça da Comarca do Rio das Mortes, já havia extinguido seu ouro, porém, ao contrário de Vila Rica, a prosperidade sãojoanense se

165 LIBBY, Douglas Cole. 1988: 146. apud GRAVO e GODOY, In: Por estradas e caminhos no interior do Brasil oitocentista: viajantes e o desenvolvimento da infraestrutura de

transportes de Minas Gerais. Belo Horizonte: Cedeplar, 2009.

166 VENÂNCIO, Renato Pinto. Comércio e fronteira em Minas Gerais Colonial. In: FURTADO, Júnia Ferreira (Org.). Diálogos oceânicos. Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do Império Ultramarino Português. Belo Horizonte: UFMG, 2001. Citados por: PEREIRA, Alexandra Maria. Um mercador de Vila Rica: atividade mercantil na sociedade do ouro (1737-1738). Dissertação de Mestrado. Juiz de Fora: UFJF, 2008. Orientador: Prof. Dr. Ângelo Alves Carrara. A historiadora Alexandra Pereira se dedicou a estudar dados de atividades mercantis extraídos do “borrador”, nome dado ao livro de registro do processo de venda de mercadorias para mineradores.

167 ZEMELLA, Mafalda P. O abastecimento da Capitania das Minas Gerais no século XVIII. 2.ed. São Paulo: Hucitec, 1990, p. 163.

mantinha graças às atividades agropastoris e ao comércio local dentro da capitania mineira:

[...] a mudança da população para o sul (de Minas) indicava profunda alteração das funções e da economia de Minas Gerais, após a década de 1760. O declínio de Vila Rica e ascenção do sul (de Minas) refletiam a queda do papel dominante da mineração (do ouro e pedras) e a crescente importância das atividades agrícolas e pastoris” [...] (observando-se) mudança , especialmente no decênio de 1780 [...] (pela geração de) notável diversificação da economia regional [...].(MAXWELL, 1973).

Depois do declínio do ouro em Vila Rica, muitos investidores que exploravam o ‘ouro preto’, redirecionaram seus negócios para as terras agricultáveis e pastoris na Comarca do Rio das Mortes (no sul-sudoeste de Minas e na Mata mineira), segundo Kenneth Maxwell (1973, apud FURTADO, J. P., 2002, p. 89)168

Lucas Figueiredo (2011) comenta sobre o que não restou e o que ficou do ouro, conta que só uma coisa não restou: o ouro, em pepitas ou barras. Restaram fortunas, lavouras, negócios de exportação, capital acumulado, as fronteiras do país foram ampliadas... Restou a herança invisível da miséria, o abandono de lavouras, mineradores foram embora, negócios fechados...

Durante todo o século XVIII, a corrida do ouro havia puxado o desenvolvimento da agricultura, e com o término do rush muitos mineradores bem-sucedidos aproveitaram o capital acumulado para investir em culturas de cereais, cana-de-açúcar, fumo e algodão. A partir da década de 1830, três legados do ouro- as fortunas dos negociantes de Sorocaba, os grandes plantéis de escravos do Centro-Sul e as linhas de tropas que ligavam o interior e o litoral- foram fundamentais na implantação das lavouras de café de São Paulo e do Rio de Janeiro. E o café mostrar-se-ia um produto de exportação vital para a economia do Brasil nos 140 anos seguintes. Era verdade realmente que a comarca de Vila Rica murchou e perdeu parte de sua população entre 1776 e 1821, mas era verdade também que, no mesmo período, o número de habitantes da comarca do Rio das Mortes quase triplicou. O que diferenciava as duas regiões tinha a mesma raiz: o ouro. Em Vila Rica (e, com mais intensidade ainda em Goiás e no Mato Grosso), os mineradores e homens de negócio demoraram um pouco mais para encontrar alternativas à mineração, ao passo que no Rio das Mortes essa duas classes aplicaram seus capitais na produção de alimentos, criação de gado e fabricação de tecidos. (FIGUEIREDO, 2011, 2. ed., p.331-332).

168 MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: a Inconfidência Mineira Brasil-Portugal, 1750- 1808, [s.l.), (s.e.), 1973 (1ª edição). Citado por: FURTADO, João Pinto Furtado. O manto de

Penélope: história, mito e memória da Inconfidência Mineira de 1788-9. São Paulo: Companhia

A comarca de Vila Rica empobreceu e a comarca do Rio das Mortes floresceu. Durante o século XVIII, a cabeça da Comarca do Rio das Mortes se manteve próspera. Porém, no século XIX, uma radical mudança na mineração do ouro alterou o quadro de polarizações internas, alterando o status de São João Del Rei, que perdeu poder e prestígio para outros núcleos urbanos, vejamos por que, na subseção a seguir.

2.3. e) A decadência da mineração do ouro e o redirecionamento da