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Analisando a constituição da base de dados para o património cultural

Capítulo 6. As bases de dados para o património cultural

6.2 Analisando a constituição da base de dados para o património cultural

O surgimento da Internet, nos finais do século XX, qual fonte de comunicação e informação global ubíqua, terá penetrado todas as instituições, e assim os museus, tendo-os colocado numa época digital sem precedentes (Cameron e Robinson, 2007: 165).

Após a aceitação da Internet pelas instituições museais, muitos delas terão feito esforços para conseguir transferir a documentação das coleções para bases de dados. Segundo as autoras, os critérios descritivos constituintes das fichas de inventário têm sido separados do estudo das práticas de documentação subjetivas em museus, nomeadamente, da análise da produção de um texto expositivo interpretativo. No tocante aos parâmetros em que a inventariação do obje- to museológico decorre, Cameron e Robinson argumentam que os critérios descritivos bási- cos, constituintes da ficha de inventário, se mantiveram inalterados:

The basic descriptive criteria such as «date of manufacture», «maker», and physical measure- ments, used by collection managers and curators in documenting museum objects, have re- mained largely unaltered. These formulaic descriptions are rooted in the long-established prac- tices of curatorial disciplines such as art history, decorative arts, history, science, and techno- logy (Cameron e Robinson, 2007: 166).

Não obstante esta constatação, as autoras referem que se por um lado, de acordo com a tradi- ção epistemológica empirista, podemos encarar a documentação em museus como uma enti- dade que apela à objectividade, onde se privilegia a classificação e a descrição exaustiva dos atributos físicos e históricos do objeto (classificação disciplinar, descrição, classificações de significado, proveniência); por outro lado podemos encarar a documentação em museus, no- meadamente os dados descritivos do objeto (significado e texto interpretativo), sob a perspeti- va pós-moderna e pós-estruturalista, onde à documentação é atribuída uma natureza subjetiva (Cameron e Robinson, 2007; Hooper-Greenhill, 1992; Kavanagh, 1990; Wallace, 2001).

A gestão de coleções em base de dados é a primeira razão pela qual o museu documenta a sua coleção, formando esta ferramenta o ponto inicial para que os museus possam definir e comu- nicar o significado e o valor patrimonial dos objetos (Cameron, 2010). Neste sentido, Came- ron e Robinson defendem que os critérios descritivos para a inventariação do objeto museoló- gico não são objeto de preocupação. Contudo, o mesmo não sucede com a escolha dos itens sobre os quais se efetua o registo na base de dados. Este registo deverá ser entendido como um meio através do qual o museu interpreta, define e comunica, o valor atribuído aos seus objetos:

Far from being self-evident and unbiased, item-level collection records represent the primary means by which museum interpret, define and communicate the significance and heritage va- lue of their objects (Cameron e Robinson, 2007: 166).

As autoras defendem que registar os objetos é um ato parcial. Nesta medida, poderíamos questionar, conextualizando ao caso português: Será plausível aplicar as considerações de Cameron e Robinson relativamente ao registo dos objetos na base de dados aquando da utili- zação dos sistemas de inventariação e gestão de coleções? Analisando o inventário no MA- TRIZ, que considerações poderíamos tecer sobre a digitalização do património móvel museo-

lógico português? Deveremos encarar o registo dos objetos numa base de dados como um ato de inventariação que remete para o estudo e investigação do objeto (Costa e Costa, 2010: 30)? Ou poderemos também equacionar a própria base de dados como um objeto de estudo em si, susceptível de ser investigado?

Para o enquadramento da problemática acima apresentada, torna-se pertinente referir Geoffrey Bowker (1998), que tem dedicado grande parte da sua carreira a estudar a carga valorativa contida nas bases de dados. Bowker propõe os seguintes questionamentos: Como afetam as novas tecnologias o que é preservado e o modo como o é feito? Enquanto grande parte da lite- ratura sobre a base de dados se tem debruçado sobre os elementos que nela estão presentes, encarado-se a base de dados como um fim em si: “the database itself (the information stored)

is seen as an end in itself” (Bowker, 1998: 1); pelo contrário, devemos antes questionar a ra-

zão de ser do modo em que a base de dados foi sendo constituída. A análise pertinente a reali- zar é perceber o que o autor denomina de: “context of development” (Bowker, 1998: 30), isto é, o contexto de desenvolvimento em que a base de dados foi constituída, ou os modos de produção da mesma.

Na mesma linha de pensamento, Gaynor Kavanagh (1990) defende que as bases de dados de-

dicadas a objetos de museu ou a outros registos de materiais visuais e sonoros, devem ser en- tendidas como matéria-prima a ser trabalhada não só pelos historiadores. São de encarar tam- bém como um remanescente da expressão cultural e significação social. Do mesmo modo, Cameron e Robinson defendem que a documentação em museus deverá ser encarada não como um repositório de factos inalterados, mas como um texto constituído por uma forma

ideológica e cultural (Cameron e Robinson, 2007: 168). Bowker vê as bases de dados desti-

tuídas de neutralidade:

There is a layering of values into the emergent infrastructures (…). Information infrastructures such as databases (...) are a site of political and ethical as well as technical work (Bowker, 1998: 1; 6).

Segundo a opinião dos autores mencionados, a constituição duma base de dados remete para o contexto social, cultural, ideológico, político, ético e científico vigente na sociedade onde es-

Bowker defende que é quando se passa da raw data (dados brutos) para a data base (base de

dados) que temos a constituição de dados significativos e a exclusão de outros. Na sua inves-

tigação, Bowker interroga-se acerca dos tipos de dados que estamos a coleccionar quando construímos uma base de dados, bem como a razão pela qual escolhemos preservar uns ele-

mentos e não outros. Este processo, valorativo por defeito, protagoniza segundo o autor, a

composição seletiva da estrutura da base de dados, onde se faz distinção entre o que elegemos preservar.

Recorrendo às produções teóricas dos autores citados (Kavanagh, 1990; Cameron e Robinson, 2007), e aplicando a linha de questionamento de Bowker (1998) ao âmbito da utilização das tecnologias da informação para o inventário e gestão de coleções, torna-se pertinente interro-

gar: Atendendo a que a digitalização do património móvel deveria aplicar-se à totalidade das

coleções do então IPM, quais os critérios estipulados para introduzir os primeiros objetos na base de dados? Que instâncias determinam os objetos a registar nesta base de dados?

Retomando a fase inicial do MATRIZ (Matriz 1.0), este começou por ser um programa para a inventariação de coleções dos museus do então IPM, que originou uma base de dados do pa- trimónio cultural de bens móveis, construída através do processo de informatização das fichas de inventário dos objetos dos referidos museus. Isabel Cordeiro explicita como se procedeu no ano de 1998, aquando da preparação da versão Matriz 2.0: “o programa Matiz já estava criado, em 1993, para o inventário e era composto por fichas de inventário informatizadas (…). Em 1998, o que se falava era de uma transposição de inventário e de rapidamente conse- guir inserir em base de dados o máximo de informação possível sobre as peças e sobre as co- leções, definindo prioridades de acervos de referência primeiro e alargando, depois, os âmbi- tos à totalidade das coleções. (…) Nós tínhamos de definir prioridades na altura (…) Estrutu- rávamos uma Direção de Serviços de Inventário e foi feito um diagnóstico de quais são os acervos estimados do total das coleções de cada museu. Daí procurámos, com os diretores e com os técnicos dos museus, identificar qual é o acervo de referência: Quantas são as peças que constituem o acervo de referência? Isto é, aquilo que define e caracteriza aquele museu em particular em termos das coleções (…). Em qualquer museu, independentemente do tipo de coleção, há prioridades que se estabelecem e essas prioridades constituem obviamente o

acervo de referência. Posso dizer que em 100.000 eu identifico 20.000 que são o acervo de referência; são essas primeiras 20.000 que nós metemos no sistema, e são essas primeiras 20.000 que são disponibilizadas online.” Rematando: “Tal como em 1993 se tinha definido que a prioridade, por uma questão de salvaguarda, era começar pelas coleções de ourivesaria, em 1998 o que se fez foi pensar: Quais são as peças/conjunto de peças que absolutamente de- vem estar no sistema?”

Ana Castro Henriques que trabalhou, juntamente com Manuel Oleiro, na conceção original do Matriz, explicita exemplificando, relativamente à constituição inicial da base de dados: “nos roubos das coleções de ourivesaria, vende-se e derrete-se tudo! Só vale o metal: prata ou ouro, perdendo-se a construção artística da peça, que tanto pode ser art déco, como pode ser do sé- culo XIX ou do século XVIII. Esse é um dos dramas: perder património só pelo valor do me- tal e não estar acrescido de todas as outras cargas que tem. Como os bens de ourivesaria eram os mais apetecíveis, a informatização de coleções começou também para grande proteção do património da ourivesaria, nomeadamente, das igrejas.”130

As preocupações referidas por Isabel Cordeiro e Ana Castro Henriques, de começar a infor- matização pela ourivesaria e, posteriormente, de eleger, conjuntamente com os diretores e técnicos de cada entidade, o acervo de referência, demonstra que foram criadas prioridades, aquando do registo dos objetos na bases de dados do património cultural móvel dos museus

do então IPM. Na medida em que a informatização das fichas de inventário no Matriz obede-

ceram a uma ordem respeitando critérios estabelecidos, poderíamos entender a constituição da

base de dados, de 1993 a 1998, como um processo bietápico: 1) em 1993, proteção e salva-

guarda do património - no contexto em apreço, a ourivesaria pelos riscos que corria; e 2) em 1998, classificação - ser considerado referência no respetivo museu.