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Capítulo 4. O contexto internacional

4.3 Os sistemas de classificação e de categorização

Ian Hacking (1996) propõe uma reflexão onde a compreensão da causalidade social poderá levar a uma mudança na cognição e na cultura. O autor defende que existem sistemas de clas- sificação em todas as esferas da sociedade, sendo que qualquer ciência natural e social classi- fica e categoriza. Hacking utiliza o conceito de Human kinds para enfatizar os tipos de siste- mas de classificação, argumentando que estes, baseados no processo de categorização, são valorativos, constantes na sociedade e repercutem-se no que o autor denomina kinds of people (1996: 351), categorias carregadas de valor, que se reportam a tipos de comportamentos, ten- dências, condições, ações, emoções, experiências.

Por Human Kinds, o autor define tipos específicos acerca dos quais a sociedade gostaria de ter conhecimento sistemático, geral e preciso, através de classificações que podem ser utilizadas para formular verdades gerais, bem como formar expectativas sobre as coisas de um determi- nado tipo. Ao recorrer à categorização, os sistemas de classificação requerem princípios e leis, com o intuito de se poder mais facilmente reagir em termos práticos e formular possibilidades de intervir, interferir, ajudar e melhorar (Hacking, 1996: 361). O recurso a tais sistemas de classificação, nomeadamente, aos kinds of people, generalizações de tal modo fortes que se assemelham a leis acerca das ações e comportamentos dos indivíduos, devem-se, segundo o autor, devido ao facto da sociedade querer prever as atitudes dos indivíduos, ou o modo como estes irão responder a determinadas situações. Este recurso aos sistemas de classificação per- mitiria, para além da perceção do que é esperado, a alteração das condições presentes e, mais significativamente, a alteração dos comportamentos futuros dos indivíduos na sociedade, pois segundo o que Hacking descreve, os kinds of people devem ser encarados como mecanismos desenvolvidos pela sociedade para controlar, avisar, proteger e agir (Hacking, 1996: 360).

Nikolas Rose (2008), ao ter prolongado a reflexão de Hacking sobre a constituição de catego- rias na sociedade, e ao ter ido beber teoricamente a Michel Foucault (1926-1984) e às suas questões fundamentais de como se controlam os indivíduos e como se mantém a ordem social na sociedade, traz igualmente um contributo importante para a problemática em questão, ao defender que o processo de categorização na sociedade tem como finalidade última a gestão do risco, mais concretamente, a tentativa da sua redução, onde a questão da prevenção se en-

contra profundamente marcada. Centrando-se no indivíduo enquanto biological citizen (Rose 2008: 47) cidadão biológico emergente nos finais do século XX e inícios do século XXI, do- tado de autonomia, responsabilidade e consciência dos riscos que corre ao pertencer a deter-

minadas categorias, é fundamental perceber que, em Rose, a categorização serve para que seja

possível tomarem-se medidas com o objetivo de se evitar o risco. Esta forma de gerir o risco é, segundo o autor, posta em prática através da adoção de medidas de prevenção. Para si, toda e qualquer categorização, tem como finalidade última a tomada de medidas preventivas com o intuito de se prevenir o risco.

Na medida em que segundo Hacking, os sistemas de classificação se encontram presente em todas as esferas da sociedade, a elaboração teórica do autor poderá ser transposta para todos

os domínios da vida social. À semelhança do que testemunhamos em várias áreas da socieda-

de, também na cultura, o ato de classificar os objetos e o património, poderá ser encarado como modo de controle, aviso, proteção e ação sobre os mesmos. Nesta linha de pensamento, fará sentido afirmar que a UNESCO ao desenvolver o programa Memory of the World, onde o património documental é registado após deliberação e seriação pelo painel de avaliação do Comité Consultivo Internacional, ativa um mecanismo para classificar, controlar e proteger aquele património cultural. À luz de Rose (2008), o processo de categorização serve ainda para prevenir o risco associado, pelo que, adaptando a teoria do autor, poderíamos afirmar que a categorização levada a cabo pela UNESCO, serviria para a prevenção do risco que o patri- mónio documental com importância mundial se encontra sujeito.

A chamada de atenção para a preservação e salvaguarda do património documental com im-

portância mundial é percetível se atentarmos às Guidelines to Safeguard the Documentary

Heritage: “The Memory of the World Programme (…) campaigns to raise awareness of the

documentary heritage, to alert governments, the general public, business and commerce to preservation needs” (UNESCO, 2002: 2). Um dos três objetivos do programa é: “to increase awareness worldwide of the existence and significance of documentary heritage (…) Preser- vation and access, of themselves, not only complement each other - but also raise awareness, as access demand stimulates preservation work” (UNESCO, 2002: 3). Uma das cinco ações estratégicas para o alcance dos objetivos estipulados pelo programa, é: “The Programme will

work to increase global awareness of the significance of documentary heritage, and the need to preserve and provide access to it” (UNESCO, 2002: 11). Ressalte-se ainda que a definição do conceito de preservação definida neste programa é abrangente: “the Memory of the World Programme encourages preservation in various ways, including in-principle support, aware- ness, education and training, arrangements for technical cooperation, and direct support for a limited number of specific projects” (UNESCO, 2002: 12).

Ao desenvolver o processo de categorização de património documental de importância mun-

dial, através do programa Memory of the World, a UNESCO intervém, interfere, ajuda e me- lhora as condições daquele património. Ao elevá-lo ao patamar de importância mundial au- menta a consciência da sua existência, lançando um alerta para a necessidade de preservação

para as gerações atuais e futuras. A categorização formulada pela UNESCO, faz com que a

sociedade desempenhe uma determinada atitude esperada, ativando nos cidadãos, o reconhe- cimento do respetivo património enquanto património documental de importância mundial, pois tal como afirma Hacking: “well-established human kinds studied in the social sciences do affect intensely personal concerns. If you see someone whom you love [or see yourself] as of a kind, that may change your entire set of perceptions” (Hacking 1996: 354). Esta chamada de atenção, que servirá para alterar os comportamentos futuros dos indivíduos na sociedade relativamente a este tipo de património, deixa transparecer mecanismos ativados pela socie- dade para controlar, avisar, proteger e agir sobre este tipo de património. Ao lançar um alerta

no presente para a necessidade de o preservar, a UNESCO trabalha a gestão do risco no futu-

ro, para que a sociedade aja deliberadamente, de uma forma atenta e informada, sobre o refe-

rido património, incentivando uma atitude para a sua preservação, mediante várias formas:

apoio; sensibilização; educação; formação; acordos de cooperação técnica; apoio direto a pro- jetos específicos; precavendo-o contra eventuais possíveis riscos de danos, perdas ou destrui- ções.