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Capítulo 5. O contexto português

5.3 A informatização e gestão de coleções em Portugal

5.3.2 O MATRIZ

5.3.2.2 Matriz 2.0

A segunda fase de desenvolvimento do Matriz 2.0 - Inventário e Gestão de Coleções Museo- lógicas, é considerada como a fase vital da evolução tecnológica do Matriz, refletindo a evo- lução do mercado das tecnologias da informação (TI), e a criação da Direção de Serviços de Inventário121. Esta segunda versão ficou disponível em 2000, e trouxe como inovação a dis- ponibilização do módulo de gestão de coleções, apresentando as seguintes áreas funcionais: 1) estudo e investigação; 2) planeamento: organização de exposições, organização de reservas, programação de campanhas fotográficas e de conservação/restauro; 3) documentação de cir- culação de bens relativa a situações de incorporação - compra, legado, herança, transferência, doação, cedência temporária em contexto de curta ou longa duração (Costa e Costa, 2010: 26- 27).

Esta versão pautou-se pela criação da coleção Normas de Inventário. A coleção nasceu no âmbito das competências que foram consignadas ao IPM, pela Lei Orgânica de 26 de junho de 1997, nomeadamente, a missão de informatização integrada em rede do inventário das cole- ções museológicas dependentes do IPM e a conservação, valorização e divulgação do patri- mónio cultural móvel museológico. As Normas de Inventário assumiram um trabalho norma- tivo no que toca ao inventário e catalogação do património móvel, e representam um instru- mento para os museus em termos de normalização terminológica e conceptual, propondo de- finições para termos genéricos com o intuito final de estabilizar e normalizar a atividade de inventário.

Isabel Cordeiro descreve a necessidade sentida nos museus aquando do processo de inventari- ação das suas coleções: “há questões de índole muito prática que surgem; se calhar ao fim de

121 A Direção de Serviços de Inventário foi criada pelo Decreto-Lei nº398/99 de 13 de outubro de 1999. A esta Direção foram consignadas competências, entre outras, de coordenação do inventário do património cultural móvel, assegurando a digitali- zação das coleções segundo normas. A Direção de Serviços de Inventário permaneceu enquanto tal até 2007, tendo sido inte - grada no Departamento de Património Móvel do IMC (Artigo 3.º da Portaria n.º 377/2007, de 30 de março de 2007), e desde 2012, no Departamento de Bens Culturais da DGPC (Artigo 2º da Portaria n.º 223/2012, de 24 julho de 2012).

inventariar 10 peças não tenho grandes dúvidas, mas ao fim de 100 ou 1000 peças de várias categorias, de certeza que eu começo a ter a necessidade de sistematização e de decisão. Foi esse processo de trabalho e de discussão que foi sendo feito e que depois deu origem às nor- mas.” Teresa Campos acrescenta: “pode ter o melhor software, pode ter muitos funcionários, mas se não tiver normativos que regulem a introdução dos conteúdos e a forma de abordagem, vai ter informação perfeitamente díspar.”

Manuel Oleiro explicita acerca da criação da coleção Normas de Inventário: “havia algumas linhas mestras para a normalização dos inventários mas não havia, em Portugal, normas para inventário. A partir do momento em que existia um programa comum para todos os museus do IPM, era necessário definir um conjunto de regras para o carregamento dos inventários, e as

Normas de Inventário pretendem ir ao encontro dessa necessidade. Por um lado, serem de

aplicação imediata para quem estivesse a trabalhar com o programa Matriz, mas por outro lado, serem a perspetiva do IPM sobre o que devia ser um conjunto de normas bastante asser- tivas sobre a forma de fazer inventários em museus. Qualquer que fosse o suporte utilizado, os inventários deveriam seguir aquelas normas e deveriam cumprir aquelas propostas.” Isabel Cordeiro afirma: “as Normas de Inventário tiveram o objetivo de criar uma linguagem tão comum quanto possível no universo do IMC, mas também e sobretudo, como difusor de nor- mativos de inventário e de gestão de coleções para os museus portugueses de uma maneira geral (…).” A mesma afirma que a ideia subjacente a este projeto, seria a definição de um

standard de referência em Portugal para o inventário e gestão de coleções: “quis-se apresentar

o desenvolvimento deste projeto aos museus como sendo o standard do Ministério da Cultura para a digitalização de coleções e foi esse o posicionamento que tivemos desde o início, sem prejuízo de outros programas que existissem.”

Nesta medida, encontramos a coleção Normas de Inventário, não só enquanto uma necessida- de iminente para a implementação de boas práticas no trabalho quotidiano das atividades dos museus, mas também como um instrumento que serve a pretensão do Estado português na criação de um programa de referência nacional, enquanto modelo standard, para a inventaria- ção e gestão de coleções informatizadas: o MATRIZ.

Isabel Cordeiro especifica, relativamente ao âmbito da criação das Normas de Inventário, o contexto nacional do seu surgimento, bem como a relação destas normas com uma medida política para a proteção e salvaguarda do seu património: “estas normas, surgem um pouco ligadas às competências centrais da Direção de Serviços de Inventário, no domínio da prote- ção e salvaguarda das coleções nacionais. Ou seja, há uma estratégia de digitalização das co- leções e de disponibilização ao público e, de seguida, houve uma estratégia de produção de normativos para incentivar a documentação das coleções. Portanto, é uma disponibilização da maneira de fazer, para que se cumpra, aquilo que está de alguma forma no espírito da Lei de Bases do Património Cultural (Lei n.º 107/2001, de 8 de setembro): o conhecimento do patri- mónio móvel nacional e a sua salvaguarda - o inventário enquanto uma das primeiras medidas de salvaguarda das coleções, através do conhecimento.”

Também Ana Castro Henriques se reporta a duas situações contextuais, uma nacional e outra internacional, para compreendermos a relação entre os sistemas de inventário e gestão infor- matizada de coleções museológicas e a proteção do património: “um programa deste tipo, rá- pido, eficaz, com muita informação e capaz de cruzar dados, nasceu muito perto da integração europeia. Tinham-se aberto as fronteiras e havia a livre circulação de bens e serviços. (…). Isto, acrescido à crise política que se viveu no pós 74, em que houve uma sangria no patrimó- nio, suscitou a necessidade de ter meios mais eficazes de proteção do património, que passa- vam pelo inventário em que pudéssemos facilmente aceder à localização das peças e conhecer os bens; o que assenta num princípio vital: quanto melhor é conhecido, melhor é protegido. As peças não podem ir muito longe, porque são conhecidas, estão inventariadas e publicadas.”

A partir da argumentação das entrevistadas percebemos uma das grandes preocupações do Estado português, refletido na versão Matriz 2.0: a necessidade de normalizar conceitos e pro- cedimentos (Braga, 2012) é impreterível para o processo de inventariação das coleções, o que resulta numa melhor proteção e salvaguarda do património cultural. Manuel Oleiro refere, contudo, um ponto essencial quando remete para a questão da proteção do património: “no fundo o esforço que a União Europeia e o mundo todo anda a fazer no sentido de tornar públi- cos os inventários sobre o património em geral, seja documental, bibliográfico ou artístico, entroncam-se neste esforço que nós estamos a fazer aqui, um esforço da disponibilização da informação que está articulado com a Europeana e com todos esses mecanismos de divulga-

ção de informação patrimonial, que por seu turno também tem um outro papel importante e vital, que é a questão da segurança das obras de arte, as obras de arte conhecidas, o patrimó- nio conhecido é e está muito mais protegido do que um património desconhecido. Há mais atenção e referências sobre ele, e há informação que é importante para o caso de haver qual- quer problema de segurança sobre esse património.”

Com efeito, recuando à década de 1980, através da análise da lei portuguesa com referência ao património cultural, percebemos que com a Lei 13/85, de 6 de julho, foram instituídas as formas e o regime de proteção dos bens culturais móveis, entendidos como “bens de signifi- cado cultural que representem a expressão ou o testemunho da criação humana ou da evolu- ção da natureza ou da técnica”, abarcando as classificações os bens de produção nacional e de relevância internacional.

Porém, terá sido no contexto da legislação internacional, designadamente das convenções e dos tratados subscritos por Portugal relativamente à protecção do tráfico ilícito de bens cultu- rais, que se configuraram novas formas de protecção dos bens culturais, bem como o delinear de uma maior abrangência do conceito de bens culturais nacionais, passando este a ser aplicá- vel também aos bens que se revestem de um valor universal de património da humanidade, competindo a cada estado o dever da sua salvaguarda em território nacional e o dever de coo- peração com vista à sua protecção.

Refletindo os valores, os conceitos e as políticas de protecção, salvaguarda e valorização do património expressos na legislação internacional, a Lei n.º 107/2001, de 8 de setembro, apre- sentou uma noção de “património cultural” não restritiva aos bens culturais produzidos num único estado, no caso Portugal, e na qual têm enquadramento: “todos os bens que sendo tes- temunhos com valor de civilização ou cultura portadores de interesse cultural relevante devam ser objecto de especial protecção e valorização” (n.º 1 do artigo 2.º), independentemente do lugar ou do tempo da sua produção122.

122 Na referida Lei, denota-se uma alteração em termos da abrangência do conceito de bens culturais móveis, pois se em 1985 os bens de significado cultural se reportavam aos bens de produção nacional e de relevância internacional (Lei 13/85, de 6 de julho), em 2001 esta ideia veio a ser alargada pela noção de património cultural não restritiva aos bens culturais produzidos no Estado português, mas alargando-o a qualquer tempo e espaço de produção.

Terá sido no âmbito do contexto da legislação internacional para a proteção do tráfico ilícito de bens culturais, que se estipularam novas formas para a sua proteção, onde a proteção legal dos bens culturais assenta no registo patrimonial de classificação e no registo patrimonial de inventário (n.º 1 e 2 do artigo 16.º da Lei n.º 107/2001, de 8 de setembro). Neste sentido, as afirmações dos entrevistados, que enquadram o programa Matriz no contexto das políticas nacionais e internacionais para a salvaguarda, proteção e segurança do património, assentam no princípio vital estipulado pela Lei n.º 107/2001, de 8 de setembro, onde o conhecimento do património móvel (classificação e inventário) são reconhecidos como forma de proteção dos bens culturais.

O empenho para a digitalização do património cultural, sentida quer a nível nacional, através do MATRIZ, quer a nível internacional, através das políticas culturais da UNESCO - o pro- grama Memory of the World, e da Comissão Europeia - a Europeana, deixam transparecer a preocupação partilhada sobre a salvaguarda e proteção do património cultural. Num mundo global, como diria Appadurai (2004), equacionam-se medidas e soluções transnacionais, as quais, ao serem aplicadas localmente, ultrapassam as fronteiras dos estados-nação, funcionan- do em termos globais, nacionais e internacionais.