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3 A LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO SISTEMA INTERAMERICANO DE

3.3 A Jurisprudência da Corte Interamericana

3.3.1 Anotações sobre a censura prévia

Apenas a partir de 2001 a Corte começou a decidir sobre liberdade de expressão, reclamações de vítimas que consideravam ter o seu direito a se expressarem livremente e, como último recurso, buscaram ao sistema interamericano. Neste ano, duas questões foram julgadas, o

Olmedo Bustus vs Chile e Ivcher Bronstein vs. Peru. Assim, a Corte IDH pronunciou-se pela

primeira vez sobre o direito à liberdade de expressão e pensamento ao julgar a proibição da exibição do filme “A Última Tentação de Cristo”, de Martin Scorcese, mediante censura prévia, na sentença do dia 5 de fevereiro de 2001327.

O Governo chileno proibiu a exibição do filme em sala pública sob o argumento de ofensa à honra da figura de Jesus Cristo. Na análise preliminar perante a Corte, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos avaliou que o poder judicial chileno privilegiava o direito à honra em prejuízo à liberdade de expressão e o poder Executivo havia estabelecido múltiplas censuras à exibição de filmes. Ademais, a proibição da exibição do filme de Martin Scorsese pela Corte Suprema de Justiça do Chile representava uma afronta ao artigo 13 da Convenção, segundo a qual a liberdade de pensamento e expressão não pode estar sujeita à censura prévia.

Neste contexto, a Convenção Americana de Direitos Humanos previu três mecanismos impositivos de restrições ao exercício do referido direito: as chamadas responsabilidades ulteriores, a regulação ao acesso dos menores a espetáculos públicos e a obrigação de impedir apologia ao ódio religioso. As responsabilidades posteriores estão reguladas pelo artigo 13.2 da Convenção e só podem ser invocadas para assegurar o acesso ao respeito aos direitos ou à reputação dos outros. Por último, espetáculos públicos podem ser submetidos pela lei para qualificar um objetivo e regular o acesso aos menores de idade.

326 LOUREIRO, Sílvia Maria da Silveira. Caso Ximenes Lopes versus Brasil: o cumprimento integral da sentença.

Instituto Brasileiro de Direitos Humanos, v. 8, n. 8, 2008, p. 209.

327 Corte CIDH. A Última tentação de Cristo (Olmedo Bustos y Otros) vs. Chile. Sentença de 5 fev. 2001.

Cabe ao Estado uma obrigação positiva com intuito de evitar a disseminação de informações geradoras de ações ilegais. “A honra dos indivíduos deve ser protegida sem prejudicar o exercício da liberdade de expressão ou ao direito de receber informação.”328 O próprio artigo 14 prevê: toda pessoa afetada por informações inexatas pode efetuar pelo mesmo órgão de difusão sua retificação ou resposta329.

Segundo a Corte Interamericana, o conteúdo do direito da liberdade de pensamento e de expressão não inclui apenas a liberdade de expressar seu próprio pensamento, mas também o direito de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda índole. Analisa-se em duas dimensões interdependentes: a individual e a social.

Na dimensão individual, a liberdade de expressão não se esgota no reconhecimento teórico do direito de falar ou escrever, mas compreende também o direito de utilizar qualquer meio apropriado para difundir o pensamento e fazê-lo chegar ao maior número de destinatários. Neste sentido, a difusão é indivisível, ou seja, uma restrição da possibilidade de divulgar representa diretamente, na mesma medida, um limite ao direito.

Na segunda dimensão, a social, liberdade de expressão representa um meio para o intercâmbio de ideias e informações entre as pessoas e compreende o direito de tratar, de comunicar seus pontos de vista, mas também de outras pessoas conhecerem estas opiniões, relatos e notícias. Para o cidadão comum tanto o conhecimento da opinião alheia como a informação dos outros quanto o direito de difundir sua própria opinião tem demasiada importância.

Ambas as dimensões têm a mesma importância e devem ser garantidas de forma simultânea para dar efetividade total ao direito a liberdade de expressão e pensamento. Na sentença, cita-se o entendimento da Corte Europeia de Direitos Humanos que considera a liberdade de expressão como um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática, uma das condições primordiais para seu progresso e para o desenvolvimento dos homens330.

328 CORTE IDH, 2001, p. 54.

329 O artigo 14 da Convenção Americana de Direitos Humanas descreve: “Toda pessoa atingida por informações inexatas

ou ofensivas emitidas em seu prejuízo por meios de difusão legalmente regulamentados e que se dirijam ao público em geral, tem direito a fazer, pelo mesmo órgão de difusão, sua retificação ou resposta, nas condições que estabeleça a lei”. Refere-se ainda as responsabilidade ulteriores: “Em nenhum caso a retificação ou a resposta eximirão das outras responsabilidades legais em que se houver incorrido”. Acrescenta ainda que: “Para a efetiva proteção da honra e da reputação, toda publicação ou empresa jornalística, cinematográfica, de rádio ou televisão, deve ter uma pessoa responsável que não seja protegida por imunidades nem goze de foro especial”.

330 La liberdad de expresión constituye uno de los fundamentos esenciales de tal sociedad, uma de lãs condiciones

Ao expor as contribuições da Corte IDH na prevenção contra a censura previa, Loreti comparou os documentos americanos e europeus. “Enquanto a Convenção Americana delimita claramente que não haverá censura ou restrições indiretas, a Convenção Europeia permite atitudes diferentes por parte dos Estados em determinadas circunstâncias, de modo explicito” 331.

Para a Corte, a responsabilidade internacional do Estado pode ser gerada por atos ou omissões de qualquer poder ou órgão deste independente de sua hierarquia, basta violarem a Convenção Americana. Assim, o governo chileno realizou uma reforma constitucional pondo fim ao regime anterior de censura cinematográfica e o filme passou a ser exibido a partir do dia 11 de março de 2003 para o público maior de 18 anos.

A referida sentença da Corte Interamericana reveste-se assim, de real significação histórica, em mais de um sentido: constitui um valioso e inédito precedente, na apenas por ter sido o primeiro pronunciamento do Tribunal em matéria contenciosa sobre o direito à liberdade de expressão, mas igualmente pelo cumprimento, pleno e exemplar, que lhe foi dado pelo Estado chileno, com prontas repercussões, das mais positivas, nos círculos jus internacionais de toda América Latina332.

Para Trindade, a sentença necessita ser exemplar para todos os Estados-Parte do sistema Interamericano. O juiz considera o primado internacional sobre o direito interno, no sentido de constituir mais do que uma construção acadêmica, “mas uma realidade do Direito em nossos dias, movido este último pela consciência humana”. Assim, a decisão resultou numa exemplar reforma constitucional no Chile e a criação de um importante padrão no hemisfério sul em relação ao direito à liberdade de expressão.