• Nenhum resultado encontrado

4 A LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO BRASIL: OS JULGADOS DO STF

4.6 A decisão

Ao decidir, o ministro Celso de Mello, relator, enfatizou que o objetivo do processo não era discutir questões sobre utilização das drogas, mas a proteção das liberdades individuais, das mais importantes liberdades públicas declaradas por Constituições de Direito e Convenções Interamericana de Direitos Humanos: a de reunião e de livre manifestação do pensamento.

A liberdade de reunião foi definida pelo relator como tradução do exercício à livre expressão das ideias configurando um precioso instrumento de concretização da liberdade de manifestação do pensamento, nela “incluído o insuprimível direito de protestar” 498. Caberia então ao Estado o dever de respeitá-la como uma prerrogativa essencial dos cidadãos, normalmente temida pelos regimes ditatoriais que não hesitam em golpeá-la.

Segundo Melo, na sua jurisprudência, o Supremo Tribunal Federal consignou o direito reunião como um “direito-meio” pelo fato de atuar em condição de instrumento capaz de viabilizar o exercício da liberdade de expressão sendo elemento para propiciar ativa participação da sociedade civil mediante exposição de opiniões, reivindicações, ideias, propostas no processo de tomada de decisões de Governo.

É por isso que esta Suprema Corte sempre teve a nítida percepção de que há, entre as liberdades clássicas de reunião e de manifestação de pensamento, de um lado, e o direito de participação do outro, um claro vínculo relacional, de todo modo que passam eles a compor um núcleo complexo e indissociável de liberdades e de prerrogativas político-jurídias, o que significa que o desrespeito ao direito de reunião, por parte do Estado e de seus agentes, traduz, na concretização desse gesto de arbítrio, inquestionável transgressão às demais liberdades cujo exercício passa supor, para realizar-se, a incolumidade do direito de reunião499.

A “praça pública” passaria a ser o espaço do debate, da persuasão racional, do discurso argumentativo, da transmissão de ideias e veiculação de opiniões. A praça ocupada pelo povo,

498 ADPF..., 2011, p. 6. 499 Ibid., p. 14.

salientou, converter-se-ia naquele espaço mágico em que as liberdades fluem sem indevidas restrições governamentais.

Mas, sustentou, para merecer proteção constitucional, a reunião deve ser pacífica, sem violência, incitação ao ódio ou à discriminação. Desta forma, o Estado não pode nem deve inibir o exercício da liberdade de reunião ou frustra-lhe os objetivos com adoção de providências preparatórias para sua realização ou se omitir no dever de proteger os que a exercem contra aqueles que a ela se opõem.

No sistema normativo brasileiro o direito de reunião pode ser restrito em períodos de crise institucional dede que utilizados em casos extraordinários, os mecanismos constitucionais de defesa do Estado, como estado de defesa e estado de sítio, ressaltou o relator. Mas, em período de normalidade institucional, essa liberdade fundamental não pode sofrer interferência sob pena de incriminação de seus agentes e autoridades. Impondo-se ao Estado o dever de abstenção para não debilitar ou esvaziar movimento.

O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, IBCCRIM500, atuou no processo como amicus

curiae e destacou a garantia do dissenso como condição essencial para formação de uma opinião

pública livre. Para representantes do Instituto, a contraposição ao discurso majoritário sempre se situou no germe da liberdade de expressão enquanto comportamento juridicamente garantido.

O discurso antagônico, argumentou-se, não requer repressão, mas tolerância. Não fosse pela óbvia razão de que a convivência se tornaria socialmente insuportável ao ser despida de certo grau de tolerância e justificaria padrões de conduta pela sempre possível hipótese segundo a qual a verdade está do lado da maioria.

O ministro Celso de Mello lembrou o papel do Supremo Tribunal Federal em desempenhar o plano da jurisdição das liberdades e proteger as minorias contra eventuais excessos da maioria e até mesmo do poder público e seus agentes. Citou Stuart Mill, para quem “se toda humanidade, menos um fosse de uma opinião, não estaria a humanidade mais justificada ao reduzir o silêncio de tal pessoa do que esta se tivesse força em fazer calar o mundo inteiro” 501.

500

O IBCCRIM é entidade nacional fundada em 14 de outubro de 1992, que congrega advogados, magistrados, membros do Ministério Público, Defensores Públicos, policiais, professores, pesquisadores, estudantes, juristas e outros profissionais dedicados ao debate sobre Ciências Criminais e, especialmente, à defesa dos princípios e garantias do Estado Democrático de Direito. Com mais de 4.600 associados em todo o território nacional, o Instituto desenvolveu, desde sua fundação, inúmeras atividades que permitiram o acúmulo de conhecimento e a sistematização de dados e informações relevantes sobre o funcionamento do sistema penal no Brasil.

Concluiu, portanto, ser necessário assegurar às minorias a plenitude dos meios assecuratórios do exercício dos os direitos fundamentais e legitimar, sob a perspectiva estritamente constitucional, a assembleia, a reunião, a passeata, a marcha ou qualquer encontro realizado em espaço público com objetivo de obter apoio para eventual proposta de legalização do uso de drogas, de criticar o modelo penal de repressão e punição ao uso de substâncias entorpecentes. Além de propor alterações na legislação penal pertinente, formular sugestões relacionadas ao sistema nacional de política pública sobre drogas e promover atos em favor das posições sustentadas pelos manifestantes.

Destacou a “marcha da maconha” como uma maneira organizada e pacífica, apoiada no princípio constitucional do pluralismo político, as ideias, as concepções e propostas dos que participam como organizadores ou manifestantes do evento amparados pelo exercício concreto dos direitos fundamentais de reunião, de livre manifestação de pensamento e de petição. A ideia do evento seria problematizar a política criminal proibicionista.

Nada se revela mais nocivo e mais perigoso do que a pretensão do Estado de reprimir a liberdade de expressão, mesmo que se objetive, com apoio neste direito fundamental, expor ideias ou formular propostas que a maioria da coletividade repudie, pois, neste tema, guardo a convicção de que o pensamento há de ser livre, sempre livre, permanentemente livre, essencialmente livre502.

É intolerável a repressão estatal ao pensamento. A Constituição da República revelou hostilidade extrema a qualquer prática estatal tendente a restringir ou reprimir o legítimo exercício da liberdade de expressão, que não deve ser impedida pelo poder publico nem submetida a ilícitas interferências do Estado.

Assim, define liberdade de expressão como um direito assistido a todos de manifestar convicções e fazer vincular suas ideias ainda que impopulares ou representativas de concepções peculiares a grupos minoritários. A Constituição “mostrou-se atenta ao advertir que o Estado não pode dispor de poder algum sobre a palavra, sobre as ideias e sobre os modos de sua manifestação503.”

Lembrou o fato de a livre expressão do pensamento não ser absoluto e sofrer de limitações de natureza ética e de caráter jurídico não permite incitação ao ódio público contra qualquer pessoa ou grupo social. A própria Convenção Americana de Direitos Humanos exclui do âmbito de proteção da liberdade de manifestação do pensamento a propaganda em favor da guerra, a

502 ADPF..., 2011, p. 44. 503 Ibid., p. 29.

apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que incite discriminação, hostilidade, o crime ou violência.

O relator conclui: o fundamento da liberdade de expressão permite formular e transmitir ideias com intuito de provocar reflexão em torno de temas impregnados de elevado interesse social. Concepções que podem ser fecundas, libertadoras, subversivas, rompendo paradigmas estabelecidos socialmente. Desta maneira, impõe-se necessário construir espaços de liberdade para que o pensamento não seja reprimido e ideias possam florescer, sem restrições, num ambiente de tolerância viabilizador de um dos valores fundamentais para configurar o Estado Democrático de Direito: o respeito ao pluralismo político.

A livre circulação do pensamento é o signo inerente às formações democráticas. Pensamentos antagônicos contrapõem padrões. Assim, julga procedente a presente Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental para dar ao art. 287 do Código Penal a interpretação conforme à constituição de forma a excluir qualquer exegese que possa ensejar criminalização em defesa da legalização das drogas, ou de qualquer substância entorpecente específica, inclusive através de manifestações e eventos públicos.

Como se pode perceber no estudo da jurisprudência, o STF tem decidido de forma ampla sobre o conteúdo da liberdade de expressão. “As linhas gerais do posicionamento têm estado de acordo com os padrões internacionais, que reconhecem a importância da livre circulação de opiniões e ideias”.