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Liberdade de expressão versus direito à vida privada

3 A LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO SISTEMA INTERAMERICANO DE

3.5 Liberdade de expressão versus direito à vida privada

Um dos últimos casos julgados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos reflete sobre uma importante jurisprudência em relação a um conflito de direitos fundamentais: a liberdade de expressão e o direito à intimidade. A petição foi apresentada por Jorge Fontevecchia e Héctor D’ámico402, editor e diretor da revista argentina Noticias. Eles alegaram violação ao direito à liberdade de expressão por terem sido condenados civilmente por tribunais argentinos depois de publicarem matérias, em novembro de 1995, sobre a existência de um filho não reconhecido por Carlos Saúl Menem, então presidente da Argentina.

Tanto o tribunal de segunda instância como a Corte Suprema de Justiça de La Nacion consideraram ter sido violado o direito à vida privada de Menem. Por sua vez, a Comissão Interamericana considerou como questão central do caso: se a sociedade argentina tinha o direito de conhecer a informação publicada e, em consequencia, deveria prevalecer a liberdade dos jornalistas ou se o presidente teria o direito de manter em segredo os dados revelados.

Apesar de funcionários públicos estarem sempre submetidos a uma maior observação por parte da sociedade, destacou-se a importância de proteção da vida privada como uma das mais importantes conquistas dos regimes democráticos. Direito reconhecido pela Convenção a todas as pessoas, mas reduzido quando essas atividades ou funções são concernentes a um debate de interesse geral da sociedade.

Para resolver um conflito entre o direito à vida privada de um alto funcionário público e a liberdade de expressão, é necessário, inicialmente, verificar como foi produzido realmente um dano sobre o direito supostamente afetado. Esse dano não se apresentaria nos casos de

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O presidente Hugo Chávez solicitou a realização de um conselho para debater a medida por considerar a Comissão um risco para o país. Neste momento, a Venezuela está em eleições presidenciais e não se sabe ainda o destino político do país.

informação já difundida em domínio público ou se a pessoa autorizou tácita ou explícitamente para pulicação da informação, pois, aqui, não existe uma expectativa legítima de privacidade.

Em segundo lugar, qualquer alegação referida a presumida vulneração da vida privada deve obrigar ao juiz a estudar a informação supostamente revelada e o contexto na qual se produz. Em terceiro lugar, o fator decisivo para resolver o conflito é mensurar a relevância pública da informação e a sua capacidade para contribuir em um debate de interesse geral. Em outras circustâncias, a informação sobre um funcionário é de relevância quando:

[...] a) De alguma maneira, apesar de ter um componente de vida privada, tem a ver com as funções que esta pessoa executa; b) se refere ao imcumprimento de um dever legal como cidadão; c) resulta um dado relevante sobre a confiança depositada nele e d) se refere a competência e capacidade de exercer suas funções403.

A restrição ao direito à livre expressão se encontra fundada nos artigos 19 da Constituição Nacional e 1.071 do Código Civil argentino. Para a Comissão, a restrição respondia a um objetivo permitido pelo artigo 13.2 sobre a proteção ao respeito aos direitos ou à reputação. Mesmo assim, a punição imposta pelas vítimas foi “desnecessária” ao condenar os jornalistas a indenizar o presidente da República por publicar informação já em domónio público e diante do interesse público por se tratar, inclusive, de um cumprimento de dever legal por parte de um ex- presidente de reconhecer um filho não configurando uma mera liberalidade paterna.

Finalmente, a Comissão entendeu a condenação civil também teria um efeito notável no direito a liberdade das vítimas no exercício de sua profissão, diante dos elevados valores de indenização. O Estado argentino afirmou que os direitos em questão gozam de reconhecimento pleno em seu ordenamento jurídico, especialmente na Constituição Nacional de 1994, a qual outorgou hierarquia constitucional a uma série de instrumentos internacionais em matéria de direitos humanos, entre os quais a Convenção Interamericana.

A Corte Interamericana recordou que considera meios de comunicação como um rol essencial de veículos para o exercício da dimensão social da liberdade de expressão numa sociedade democrática, razão pela qual é indispensável a eles o reconhecimento das mais diversas informações e opiniões, porém isso não os exime de responsabilidade.

O artigo 11 reconhece o direito a vida privada e proíbe qualquer ingerência arbitrária ou abusiva a ela. O âmbito da privacidade se caracterizaria por deixar imune as invasões ou agressões abusivas ou arbitrárias por parte de terceiros ou autoridade pública. Ela compreende,

entre outras dimensões, decidir sobre a própria vida, ter espaço de tranquilidade pessoal e manter reservados certos aspectos da vida privada, além de controlar a difusão de informação pessoal ante o público.

O artigo 11.2 protege o indivídio frente a interferência abusiva do Estado e o 11.3 impõe a este o dever de proteger contra intromissões, de garantir o direito a vida privada mediante ações positivas para adotar de medidas que assegurem e protegem o direito de interferências de autoridades públicas, assim como pessoas ou instituções privadas, incluindo os meios de comunicação.

Surge então o desafio de encontrar o equilíbrio entre a vida privada e a liberdade de expressão, ambos direitos fundamentais não absolutos, mas garantidos na Convenção Americana. Desta forma, o exercício de cada direito deve se fazer com respeito aos demais. Neste processo de harmonização, cabe o papel do Estado para estabelecer responsabilidades e sanções necessárias para obter tal propósito. “A necessidade de proteger os direitos que possam ser afetados por um exercício abusivo da liberdade de expressão requer a devida observância dos limites fizados a este respeito na própria Convenção” 404.

A Corte não estima contrária a Convenção uma medida civil diante de informações e opiniões capazes de afetar a vida privada ou intimidade pessoal. Porém, esta possibilidade deve ser analisada com especial cautela, ponderando a conduta do emissor daquela, as características do dano alegadamente causado e outras informações que fundamentem a necessidade de recorrer à via civil. Ambas as vías, abaixo de certas circunstâncias e sob certos requisitos, são legítimas.

O procedimento civil da justiça argentina, a atribuição da responsabilidade civil, a imposição da indenização, e custas, assim como a ordem de publicar uma parte da sentença afetaram, portanto, o direito à liberdade de expressão de Jorge Fontevecchia e Héctor D’Amico. Assim, a Corte destacou o temor de uma sanção civil desproporcional ser capaz de inibir ideias tanto ou mais do que uma sanção penal, comprometendo a vida pessoal e familiar de quem denuncia, publica informação sobre funcionário público, resultando em autocensura, tanto para o afetado como para outros potenciais críticos da atuação do servidor público.

No caso em estudo, não se configurou interferência abusiva ou arbitrária na vida privada do senhor Menem nos termos do artigo 11 da Convenção Americana, ao contrário, as publicações

constituíram um exercício legítimo do direito da livre expressão. Assim como já analisado em outros casos, reafirmou-se a necessidade de restrições expressas e taxativas.

Demandar das normas civis previstas com extrema precisão as suposições de fatos possíveis de ocorrer impediria a resolução de uma inúmera quantidade de conflitos protagonizados na realidade de forma permanente e que resultam impossíveis para a previsão do legislador.

A lei deve estar formulada com precisão suficiente para premitir às pessoas regularem sua conduta, de maneira a serem capazes de prever com grado o que seja razoável, de acordo com as circunstâncias, as consequências que uma ação determinada pode ocasionar. Como tem sido apresentado, se bem a certeza na lei seja altamente desjável, ela não pode trazer rigidez excessiva. Por outro lado, a lei deve ser capaz de manter-se vigente apesar das circunstâncias cambiantes. Como consequência, muitas leis, estão formuladas em termos que, em maior ou menos medida, são vagos e cuja interpretação e aplicação são questões de prática405.

Os juízes entenderam a condenação civil desnecessária e incompatível, mesmo estando as autoridades internas sujeitas ao império da lei e, por isto, obrigadas a aplicar o disposto no ordenamento jurídico. Não obstante, quando um Estado é parte de um tratado internacional, este obriga a todos os seus órgãos, inclusive seus juízes, a velar pelos efeitos das disposições da Convenção. Os juízes e órgãos vinculados a administração da justiça estão obrigados a exercer o controle entre as normas internas e a Convenção, no marco de suas competências e das regulações processuais correspondentes, tendo em conta não somente o tratado, mas a interpretação do mesmo na Corte Interamericana.

Neste contexto, a Corte destacou ainda a importância de os órgãos judiciais argentinos assegurarem o cumprimento das obrigações da Convenção perante procedimentos sobre o debate no exercício da liberdade de expressão. Torna-se, portanto, necessário fazer análise de cada caso levando em consideração o limiar diferenciado da proteção do direito a vida privada ante a condição de funcionário público; a existência de interesse público de informação e a eventualidade das indenizações civil, desde que não impliquem numa inibição ou autocensura de quem exerce o direito a livre expressão e de cidadania, a qual restringiria ilegitimamente o debate público e limitaria o pluralismo informativo, necessário a toda sociedade democrática.

Apesar da condenação, sublinharam-se as mudanças produzidas no nível interno em matéria de liberdade, como a reforma legislativa que modificou o código penal argentino eliminando a possibilidade de expressões e opiniões relacionadas com assuntos de interesse

público configurassem calúnia ou injúria, derivada do caso Kimel, a sanção da lei 26.522 de Serviços de Comunicação Audiovisual, assim como mudanças institucionais e jurisprudenciais ocorridas na Corte Suprema nesta matéria.