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3 A LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO SISTEMA INTERAMERICANO DE

3.3 A Jurisprudência da Corte Interamericana

3.3.6 As limitações à liberdade de expressão

Eduardo Kimel, historiador, jornalista e escritor, foi condenado na Argentina por criticar num livro a atuação do juiz penal encarregado de investigar o “Massacre de São Patrício”, no qual morreram religiosos durante a ditadura militar na década de 70. O juiz iniciou um processo legal em defesa de sua honra e a justiça argentina entendeu ter havido excesso por parte de Kimel, caracterizando um ataque à honra subjetiva do magistrado. A sentença o condenou à pena de um ano de prisão, bem como ao pagamento de vinte mil pesos argentinos de indenização pelos danos causados ao magistrado.

A Corte considerou grave, desproporcional e ilegítima a sanção penal imposta e a restrição à liberdade de expressão. O caso foi emblemático porque permitiu delimitar o entendimento jurisprudencial sobre a forma como a tipificação penal de delitos como injúria podem violar o princípio de legalidade e não considerou como uma das responsabilidades ulteriores admitidas como válidas pela Convenção Americana.

Ademais, a tipificação ampla de crimes de calúnias e injúrias pode resultar contrária ao princípio de intervenção mínima e de última relação do direito penal, devendo ser limitado ao mínimo necessário. “Em uma sociedade democrática, o poder punitivo só é exercido na medida estritamente necessária para proteger os bens jurídicos fundamentais dos ataques mais graves que os lesem ou coloquem perigo. Caso contrário, levaria ao exercício abusivo do poder punitivo do Estado” 354.

A aplicação de medidas penais deve ser, portanto, avaliada com cautela ponderando-se a extrema gravidade do abuso de liberdade de expressão em análise; o dolo causado; o grau de conhecimento de vontade desta pessoa para produzir o dano à honra ou reputação dos outros; a magnitude e características do dano pelo abuso produzido, provando-se a absoluta necessidade de utilizar de forma excepcional as medidas penais355.

A jurisprudência ressaltou também os limites a liberdade de expressão, não sendo absoluta e restringida pelo direito à honra e dignidade descrito no artigo 11 da Convenção. Portanto, quem se considere afetado deve recorrer aos meios judiciais do Estado para sua proteção, seguindo o critério de estrita proporcionalidade.

354 CORTE IDH. CasoKimel vs. Argentina. Sentença de 2 maio 2008. p. 18. 355 Ibid., p.19.

No caso em questão, volta-se à discussão sobre funcionários públicos que devem ser mais tolerantes à crítica que os particulares. O instrumento penal deve salvaguardar o bem jurídico protegido, mas ele deve ser necessário e proporcional a ponto de não inibir especialmente quem desempenha função de jornalista nem contrariar o princípio de intervenção mínima do direito penal.

A proteção da reputação deve ser garantida apenas por meio de sanções civis, no caso da pessoa ofendida ser um funcionário público ou particular envolvido voluntariamente em assuntos de interesse púbico, e por meio de leis asseguradoras o direito de resposta. Desta maneira, a Corte considera também existir um dever do jornalista de constatar de forma razoável, mesmo não exaustivamente, os feitos que fundamentam sua opinião. “Os jornalistas têm dever de tomar distância crítica a respeito de fontes e contrastá-las com dados relevantes” 356.

Ao seu turno, a Comissão lembrou o fato de a Argentina ter vivido uma ditadura militar entre 1976 e 1983, restringindo a liberdade de expressão de uma importância fundamental para a reconstrução história do passado.

Na arena de debate sobre temas de alto interesse público, não só se protege a emissão de expressões inofensivas ou bem recebidas pela opinião pública, mas também aquelas que choca, irritam e inquietam os funcionários públicos ou um setor qualquer da população. Na sociedade democrática, a imprensa deve informar amplamente sobre questões de interesse público, que afetam bens sociais e funcionários prestarem contas sobre sua atuação no exercício de tarefas públicas357.

Ao analisar o caso, o juiz da Corte Diego García Sayan reiterou ser o direito à liberdade de expressão limitado por outros direitos fundamentais, como o direito à honra. Assim, os jornalistas devem se encontrar obrigados ante a Convenção a assegurar o respeito aos direitos ou à reputação dos demais. Os Estados, por sua vez, devem garantir meios judiciais estabelecendo responsabilidade e sanções correspondentes. Qualquer um que afete os direitos de terceiros, seja jornalista ou não, deve assumir suas responsabilidades. Adverte não se trata de categorizar os direitos, mas de estabelecer limites para ambos buscando harmonizá-los. “O exercício de cada direito fundamental tem que ser feito com respeito e salvaguarda dos demais”358. Até porque é preciso proteger quem enfrenta o poder dos meios e o intento para assegurar condições estruturais que permitam a expressão equitativa das ideias.

356 CORTE IDH..., 2008. p. 20. 357 Ibid., p. 22.

O também juiz da Corte Sérgio Garcia Ramírez, sublinha o direito de resposta diante de informações inexatas ou ofensivas especialmente na época atual caracterizada pelo intenso desenvolvimento de poderosos meios de comunicação social. São questões permeadas por dilemas de solução difícil e controversa, ampliando o relevante papel de quem julga a liberdade de expressão na sociedade democrática. Porém, mesmo diante de colisão, é importante encontrar um ponto entre direitos sendo é preciso salvaguardar e harmonizar. Um não pode ser abolido em observância de outro, sem respeitar as fronteiras para o exercício de cada direito.

A ilicitude, portanto, deve ser evitada e sancionada com meios justos. Para o juiz, democracia não implica tolerância ou lenidade frente a condutas ilícitas, mas demanda racionalidade. Ramirez faz o alerta: no mundo contemporâneo, crescem, ao lado dos poderes formais, poderes fáticos que tem efeitos devastadores sobre direitos dos indivíduos. “A liberdade não é salvo conduto para a injúria, a difamação ou a calúnia, nem absolvição automática de quem causa, com conduta injusta, um dano moral”359.

Porém, existem outros meios mais adequados e admissíveis do que a via penal. Até mesmo a sentença civil condenatória pode constituir uma declaração de ilicitude não menos enfática e eficaz, pois repara socialmente.

Mesmo a opção por meios judiciais que culminam em condenação, não se deve esquecer que existem outras possibilidades que convém manter abertas no debate democrático acerca de assuntos que atentem ao interesse publicação: a informação errônea se combate com informação fidedigna e objetiva. Opinião infundada ou maliciosa, com opinião fundada e suficiente. 360

Assim, é preciso também questionar sobre as formas racionais de prevenir e combater a violação de direitos. Com alguma frequência se busca a via penal, mas dentro desta via se opta por medidas mais rigorosas e excessivas resultando ineficazes ou contraproducentes. Isto deve ocorrer apenas quando bens públicos e privados não possam ser protegidos por instrumentos menos rigorosos e com muita restrição e cautela. Em diversas soluções, a Corte destacou a compatibilidade do denominado direito penal mínimo e os valores como a democracia, distanciando esta da tirania.

359 CORTE IDH, 2008, p. 4. 360 Ibid., p. 6.

Em estudo monográfico sobre o caso, Bruno Albuquerque361 destacou o entendimento da Corte considerando a tipificação penal de delitos como injuria e difamação como pouco específica, violando o princípio de legalidade e deliberando não só pela invalidade da sentença, mas também pela modificação na legislação local argentina.