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Antigo/moderno e a história: querelas entre antigos e modernos na Europa pré-industrial (séculos VI-XVIII)

No documento Historia e Memoria Jacques Le Goff (páginas 95-98)

ANTIGO/MODERNO

4. Antigo/moderno e a história: querelas entre antigos e modernos na Europa pré-industrial (séculos VI-XVIII)

Os conflitos de geração que atiravam "modernos" contra "antigos" existiam desde a Antiguidade. Já Horácio [Epistulae, II, I, 76-89] e Ovídio [Ars amatoria, III, 121] se tinham lamentado do prestígio dos escritores antigos e congratulado por viverem no seu tempo. Não tinham contudo nenhuma palavra para designar 'moderno', nem utilizavam novus como oposto de antiquus. No século VI aparece o neologismo modernus formado por modo 'recentemente', da mesma maneira que hodiernus 'hoje' se formou a partir de hodie 'hoje'. Cassiodoro falou de "antiquorum diligentissimus imitator, modernorum nobilissimus institutor" [Variae, IV, 51]. De acordo com a feliz expressão de Curtius [1948], modernus é "uma das últimas heranças do baixo-latim".

Podemos considerar como um sinal da renascença carolíngia a tomada de consciência do "modernismo" por alguns dos seus representantes, tais como Walahfrid Strabo, que chama à época de Carlos Magno saeculum

modernwn. Mas os conflitos entre antigos e modernos são posteriores, aparecendo primeiro no século XII: como

Curtius notou, há na poesia latina posterior a 1170 uma verdadeira querela entre antigos e modernos. Recordando as palavras de Bernardo de Chartres sobre os "nanus positus super humeros gigantis", Alain de Lille condena a "rudeza moderna" [modernorurn ruditatem).

Dois textos de conhecidos autores da segunda metade do século XII, que põem a tônica no modernismo do seu tempo, um para deplorá-lo, outro para congratular-se com ele, sublinham a aspereza desta primeira polêmica entre antigos e modernos. Jean de Salisbury exclama: "Tudo se tornava novo, renovava-se a gramática, alterava-se a dialética, desprezava-se a retórica, promoviam-se novos caminhos para todo o quadrivium, pela libertação das regras dos antigos". Mas há oposição entre nova (as 'novidades', subentendido perniciosas) e priores (os mestres E 'precedentes'). Gautier Map no De nugis curialium (entre 1180 e 1192) insiste numa "modernidade" que é o resultado

de um progresso secular: "Chamo a nossa época a esta modernidade, isto é, este lapso de cem anos cuja última parte ainda existe, cuja memória recenté e manifesta recolhe tudo o que é notável... os cem anos que decorreram, eis a nossa modernidade". Eis que surge o termo modernitas, que esperará pelo século XIX para aparecer nas línguas vulgares.

A oposição, senão o conflito, persiste na escolástica do século XIII. Tomás de Aquino e Alberto Magno consideram antiqui qui os mestres de duas ou três gerações anteriores, que ensinaram na Universidade de Paris entre 1220-30, data em que "a revolução intelectual do aristotelismo" substitui os moderni, entre os quais se consideram a si próprios. Só no século XVI aparecem – porém, num mesmo clima cultural ou em ligação direta – vários movimentos que se reclamam abertamente da novidade ou da modernidade e a opõem, explícita ou implicitamente, às idéias e práticas anteriores, antigas. Em primeiro lugar no campo da música, onde triunfa a ars nova, com Guillaume de Machant, Phillipe de Vitry (autor de um tratado intitulado Ars Nova) e Marchetto de Padova. Em seguida, na teologia e na filosofia, onde se afirma a via moderna por oposição à via antiqua. Esta via moderna é seguida por espíritos muito diferentes, seguindo todos, no entanto, o caminho aberto por Duns Scoto, rompendo com a escolástica aristotélica do século XIII – todos são nominalistas ou estão próximos do nominalismo. Destes logici moderni ou

theologi moderni ou moderniores, os mais célebres e mais significativos são Ockham, Buridan, Bradwarine, Gregorio

de Rimini, Wycliffe. Dei vemos dar um lugar a Marsilio de Pádua, de quem se diz ser o precursor da moderna economia política, o primeiro teórico da separação entre a Igreja e o Estado, da laicização e que, no Defensor Pacis (1324), tende a dar a modernus o sentido de 'inovador'. Esta é a época de Giotto, em quem o século XVI viu o primeiro artista "moderno". Vasari referiu-se-lhe, dizendo que Giotto ressuscitou a "moderna" e "boa" arte da pintura e Cennino Cennini, no Libro dell'arte, atribui-lhe o mérito de ter mudado a arte de pintar, 'de grega para latina' e de se ter adaptado ao 'moderno', isto é, de ter trocado a convenção pela "natureza", inventando uma nova linguagem figurativa. No século XV, impõe-se finalmente a devotio moderna no plano religioso, consistindo numa ruptura com a escolástica, a religião imbuída de "superstições" da Idade Média: a devotio moderna regressa aos Padres, ao ascetismo monástico primitivo, purifica as práticas e os sentimentos religiosos, põe em primeiro plano uma religião individual e mística.

O Renascimento perturba esta emergência periódica do 'moderno' como oposto a 'antigo'. Só assim a 'antiguidade' adquire de fato e definitivamente o sentido de cultura greco-romana pagã, positivamente conotada. O 'moderno' só tem direito de preferência quando imita o 'antigo'. É este o sentido da célebre passagem de Rabelais, que celebra o reflorescer dos estudos antigos: "Agora todas as disciplinas foram restituídas..." (livro II, capítulo VIII). O moderno é exaltado através do antigo.

Contudo, o Renascimento estabelece também uma periodização fundamental entre época antiga e época moderna. Em 1341, Petrarca distingue entre história "antiga" e história "nova". Mais tarde, as várias línguas escolhem quer 'moderno' ('storia moderna', em italiano), quer 'novo' ('neure Geschichte', em alemão). Em qualquer dos casos, o entendimento entre antigo e moderno fez-se, eliminando a Idade Média. Petrarca coloca, entre a 'storia antica' e a 'storia nova', as tenebrae, que se estendem desde a queda do Império Romano até a sua época. Vasari distingue, na evolução da arte ocidental, uma "maneira antiga" e uma "maneira moderna' (que começa com o "renascimento" a partir da metade do século XIII e culmina com Giotto), distinta de uma "maneira velha".

Entretanto, levanta-se o coro de protestos contra esta superioridade atribuída aos Gregos. Pretende-se retomar a imagem dos "anões levados aos ombros por gigantes", mas para sublinhar, tal como o fazia Bernardo de Chartres no século XII, que os anões modernos têm, sobre os gigantes antigos, a vantagem de uma maior experiência. Ao mesmo tempo, no fim da primeira metade do século XVI, o humanista espanhol Luís Vivès protestava que nem os homens do seu tempo eram anões, nem os da Antiguidade eram gigantes e que, pelo menos os homens do seu tempo eram, graças aos antigos, mais cultos que eles [De causis corruptarum artium, I, 5]. Um século mais tarde, declara Gassendi que a natureza não foi mais avara com os homens do seu tempo do que o foi com os da Antiguidade, se bem que a competição com eles exija zelo e competência. E retoma a idéia de que os modernos podem subir mais alto que os

gigantes antigos [Exercitationes paradoxicae adversus Aristotelem, I, exercitatio, II, 13].

A segunda e mais célebre polêmica entre Antigos e Modernos tem início entre o fim do século XVII e o princípio do século XVIII. Desenrola-se ao longo do século das Luzes e desemboca no Romantismo. Vê triunfar os modernos com Racine et Shakespeare de Stendhal e o Préface du "Cromwell", de Victor Hugo (1827), onde a oposição românticos-clássicos nada mais é que a nova roupagem do conflito modernos-antigos, estando as cartas baralhadas do ponto de vista cronológico, pois que o herói dos modernos, Shakespeare, é anterior aos modelos clássicos do século XVII.

É certo que, desde o final do século XVI, a superioridade dos verdadeiros antigos, os homens da Antiguidade, abria brechas aqui e ali. Por exemplo, no início do século XVII, Secondo Lancellotti funda na Itália a seita dos louvadores do presente, os Hoggidi e publica, em 1623, L'Hoggidf overo gli ingegni moderni non inferiori ai passati. Mas a polêmica agudece-se no fim do século XVII, sobretudo na Inglaterra e na França. Enquanto Thomas Burnet e William Temple publicam, respectivamente, o Panegyric of Modern Learning, in Comparison of the Ancient e An

Essay upon on the Ancient and Modern Learning, Fontennelle escreve a sua Digression sur les Anciens et les Modernes (1688) e Charles Perrault, depois de ter apresentado Le siècle de Louis le Grand na Academia Francesa, em

27 de janeiro de 1687, que atiça a fogueira, prossegue com Parallèles des Anciens et des Modernes (1688-97).

Do ponto de vista dos partidários dos Antigos, que apenas vêem decadência nos Modernos, os partidários destes, ou proclamam a igualdade entre as duas épocas, ou fazem beneficiar os modernos da mera acumulação de conhecimentos, ou, finalmente, invocam a idéia de um progresso propriamente qualitativo.

Primeira atitude: Perrault, no Siècle de Louis le Grand:

La belle antiquité fut toujours venerable Mais je ne crus jamais qu'elle fût adorable Je vois les anciens, sans plier les genoux,

Ils sont grands, il est vrai, mais hommes comme nous Et l'on peut comparer sans crainte d'être injuste Le siècle de Louis au beau siècle dAuguste.

Segunda atitude: Malebranche, por exemplo, na Recherche de Ia vérité entre 1674-75: "O mundo está dois mil anos mais velho e tem mais experiência que no tempo de Aristóteles e de Platão"; ou ainda o abade Terrasson em La

philosophie applicable à tous les objects de l'esprit et de la raison (Paris, 1754): "Os modernos são em geral

superiores aos antigos: esta proposição é ousada no seu enunciado e modesta no seu princípio. É ousada, na medida em que ataca um velho preconceito; é modesta, na medida em que faz compreender que não devemos a s nossa superioridade à medida própria do espírito, mas à experiência adquirida com os exemplos e as reflexões dos que nos precederam". Mesmo entre os partidários dos Modernos permanece a idéia de velhice e decadência como curva explicativa da história. Perrault escreve nos Parallèles (1688): "Não é verdade que a duração do mundo tem sido vista como a da vida de um homem que teve a sua infância, juventude, idade madura e que está agora na velhice?".

Foi preciso chegar às vésperas da Revolução Francesa para que o século das Luzes adotasse a idéia de progresso, sem restrições. Tocqueville coloca esta viragem decisiva em 1780. Já em 1749 o jovem Turgot tinha escrito suas Réflexions sur l'histoire des progrès de l'esprit hunurin. Mas em 1781 Servan publica o Discours sur le progrès

des connaissances humaines e a obra-prima de crença infinita no progresso será escrita por Condorcet pouco antes de

morrer: Esquisse d'un tableau des progrès de l'esprit humain (1793-94). Só então os homens das Luzes vão substituir a idéia de um tempo cíclico, que torna efêmera a superioridade dos antigos sobre os modernos, pela idéia de um

progresso linear que privilegia sistematicamente o moderno.

5. Antigo/moderno e história: modernismo, modernização, modernidade

No documento Historia e Memoria Jacques Le Goff (páginas 95-98)

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