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As filosofias da história

No documento Historia e Memoria Jacques Le Goff (páginas 39-55)

Partilho com a maioria dos historiadores de uma desconfiança, nascida do sentimento da nocividade de misturar os gêneros e dos malefícios de todas as ideologias que façam recuar a reflexão histórica, no difícil caminho da cientificidade. Direi de bom grado com Foustel de Coulanges: "Há filosofia e há história, mas não há filosofia da história" [citado em por Ehrard e Palmade, 1964, p. 72]; e com Lucien Febvre: "Filosofar significa... dito por um historiador... o crime capital". Mas, também com ele, direi: "Dois espíritos, é certo: a filosofia e a história. Dois espíritos irredutíveis. Mas não se pretende "reduzir" um ao outro. Pretende-se sim, agir de tal modo que, mantendo-se embora nas suas posições, não se ignorem a ponto de serem, senão hostis, pelo menos estranhos" [1938, ed. 1953, p. 282].

Acrescentarei que na medida em que a ambigüidade – provocada pelo vocabulário – entre história decorrer do tempo dos homens e das sociedades e história ciência deste decorrer continua a ser fundamental, na medida em que a

filosofia da história correspondeu muitas vezes à vontade de preencher – provavelmente em termos inadequados – o lamentável desinteresse dos historiadores "positivistas" (que se consideravam a si próprios puros eruditos) pelos problemas teóricos e a sua recusa em tomar consciência dos preconceitos "filosóficos" subjacentes ao seu trabalho, que se pretendia puramente científico, "os historiadores que se recusam a avaliar não conseguem abster-se de fazer juízos. Apenas conseguem esconder a si mesmos os princípios que os fundamentam" [Keith Hancockeité, citado em Barraclough, 1955, p. 157]. O estudo das filosofias da história não só faz parte de uma reflexão sobre a história, como impõe a todos o estudo de historiografia. Não tentarei porém ser exaustivo e colocar-me-ei resolutamente na descontinuidade das doutrinas, pois que o que aqui me interessa são os modelos intelectuais e não a evolução do pensamento, mesmo tendo em conta que a inserção dos exemplos escolhidos no seu contexto requer a minha atenção. Escolherei exemplos de pensamentos individuais (Tucídides, Agostinho, Bossuet, Vico, Hegel, Marx, Croce, Gramsci), de escolas (agostinismo, materialismo histórico) e de correntes (historicismo, marxismo, positivismo). Distinguirei dois casos de teóricos que foram, ao mesmo tempo, historiadores e filósofos da história que, sem terem atingido um alto nível em nenhuma destas disciplinas, suscitaram reações significativas no século XX: Spengler e Toynbee. Falarei à parte de um grande espírito não-ocidental, Ibn Khaldün, e de um grande intelectual contemporâneo que é ao mesmo tempo um grande historiador e um grande filósofo e que desempenhou um papel de primeiro plano na renovação da história: Michel Foucault. Carr parece ter razão, em linhas gerais, ao escrever [1961]: "As civilizações clássicas (da Grécia e de Roma) eram fundamentalmente an-históricas... Heródoto, o pai da história, não teve muitos filhos; os escritores da Antiguidade clássica, no seu conjunto, preocupavam-se tão pouco com o futuro, como com o passado. Tucídides pensava que nada de significativo se tinha passado antes do acontecimento que estava a descrever e que seria pouco provável que viesse a acontecer depois" (p. 103-5). Talvez se devesse aprofundar mais o panorama da história grega (a arqueologia) e os principais acontecimentos posteriores às guerras medas (a pentecontaitria) que precedem a História da Guerra do Peloponeso.

Tucídides tinha escrito uma história da guerra do Peloponeso desde o início, em 431 até o fim, em 411. "Pretende ser positivista" [Romilly, 1973, p. 82], expondo "os fatos por ordem e sem comentários". A sua filosofia está, pois, implícita. "A guerra do Peloponeso é estilizada e, por assim dizer, idealizada [Aron, 1961a, p. 164]. O grande motor da história é a natureza humana. Romilly pôs bem em destaque as frases em que Tucídides indica que a sua obra será "uma aquisição para todo o sempre", válida "enquanto a natureza humana for a mesma" e esclarece não só os acontecimentos gregos do século V, mas também "os que, no futuro, devido ao seu caráter humano, forem semelhantes ou análogos" [1973, p. 82]. A história seria assim imóvel, eterna ou, melhor, com possibilidade de ser o recomeço eterno do mesmo modelo de mudança. Este modelo de mudança é a guerra: "Depois de Tucídides não restam dúvidas que a guerra representa o fator mais evidente de mudança" [Momigliano, 1972, ed. 1975, p. 18]. A guerra é "uma categoria da história" [Châtelet, 1962, pp. 216 ss.]. É provocada por reações de medo e de inveja dos outros gregos perante o imperialismo ateniense. Os acontecimentos são produto de uma racionalidade que o historiador deve tornar inteligível: "Tucídides, ao alargar progressivamente a inteligibilidade da ação consciente de um ator ao acontecimento que não foi desejado por ninguém, eleva o acontecimento, quer tenha sido ou não conforme as intenções dos atores, acima da particularidade histórica, esclarecendo-a com a utilização de termos abstratos, sociológicos ou psicológicos" [ibid.]. Tucídides, tal como quase todos os historiadores da Antiguidade, considera a escrita histórica estritamente ligada à retórica. Dá importância primordial ao discurso (oração fúnebre dos soldados atenienses feita por Péricles, diálogo dos atenienses com os Mélios) e o papel que atribui – com um pessimismo de fundo – à moral individual e à política fez dele um precursor de Maquiavel, um dos principais expoentes máximos da filosofia ocidental da história. Ranke dedica-lhe o seu primeiro trabalho histórico – a "tese".

Mesmo que se exagere o contraste entre uma história pagã que rodava em torno de uma concepção circular da história e uma história cristã que se orientava para um fim, seguindo um curso linear do tempo, a tendência dominante do pensamento judaico-cristão operou uma mudança radical no pensamento – e na escrita – da história. "Os Judeus e

depois os Cristãos introduziram um elemento totalmente novo ao postularem um fim para o qual tenderia o processo histórico: nascia assim uma concepção teleológica da história. A história passava a ter um significado e um projeto, mas perdia o seu caráter secular: a história transformou-se numa teodicéia" [Carr, 1961, p. 104]. Mais que os historiadores cristãos antigos, quase sem o querer, o grande teórico da história cristã foi Santo Agostinho, levado a ocupar-se da história pelas tarefas do seu apostolado e pelos acontecimentos. Foi levado a refutar o filósofo neo- platônico Porfírio, "o mais ilustre filósofo pagão", o mais erudito do seu tempo, por ter afirmado que "a via universal da salvação" tal como era reivindicada pelos cristãos "não era confirmada pelo conhecimento histórico" [Brown, 1967, p. 347]. Quis em seguida refutar as acusações feitas (após o saque de Rama por Alarico e os Godos, em 410) pelos pagãos aos cristãos que, segundo eles, tinham minado as tradições e a força do mundo Romano, encarnação da civilização. Agostinho refutou a idéia de que o ideal da humanidade consistia na oposição à mudança. A salvação dos homens não dependia da perenidade de Roma. Havia dois esquemas históricos que operavam na história humana, cujos protótipos eram Caim e Abel. O primeiro estava na base de uma história humana, de uma cidade do mal – Babilônia – que servia o Diabo e os seus sequazes; o segundo, na origem "da antiga De civitate Dei... anseia atingir o céu – o seu nome é Jerusalém ou Sião". Na história humana as duas cidades estão intimamente ligadas e nelas os homens são estrangeiros, "peregrinos" [ibid., cap. XXVII], até o fim dos tempos quando Deus separar as duas cidades. A história humana começou por ser uma cadeia sem significado, "esse tempo ao longo do qual os que morrem dão lugar aos que nascem e lhes sucedem" [Agostinho, De civitate Dei, XV, I, 1], até que a Encarnação lhe venha dar sentido: "Os séculos passados de história seriam como jarras vazias, se Cristo os não tivesse vindo preencher" [In Joannis Evangelium Tractatus, IX, 6]. A história da cidade terrena assemelha-se à evolução de um organismo único, de um corpo individual. Passa pelas seis idades da vida e entra na velhice com ~ Encarnação, o mundo envelhece (mundus senescit) mas a humanidade encontrou o sentido do imenso concerto que a transporta até se revelar "o esplendor do ciclo completo do tempo"; a "diligência histórica" mostra sempre "a mesma sucessão de acontecimentos enquanto que existem alguns momentos privilegiados que permitem entrever a sua verdade profética", a possibilidade de salvação. É este o quadro que a De civitate Dei [XXII; cf. Brown, 1967] traça ao misturar a esperança de salvação com o sentido trágico da vida [Marrou, 1950].

As ambigüidades do pensamento histórico de Santo Agostinho deram lugar, sobretudo na Idade Média, a toda uma série de deformações e simplificações: "É possível seguir ao longo dos séculos as metamorfoses que, na sua maioria, mais não são que caricaturas do esquema agostiniano da De civitate Dei" [Marrou, 1961, p. 20]. A primeira caricatura foi feita pelo padre espanhol Orósio, cuja obra Adversus Paganos, inspirada no ensino direto de Agostinho em Hipona, teve grande influência na Idade: Média. Assim nasceu a confusão entre a noção mística da Igreja, prefiguração da cidade divina, e a instituição eclesiástica que pretendia submeter a sociedade terrena, a pseudo explicação da história por uma Providência imprevisível, mas sempre bem orientada, a crença numa decadência progressiva da humanidade infalivelmente arrastada para o fim querido por Deus, o dever de converter a não- cristandade por qualquer preço para fazê-la entrar numa história da salvação, reservada apenas aos cristãos.

Enquanto que a história ocidental medieval prosseguia lenta e humildemente as tarefas do ofício de historiador, à sombra da teoria "agostiniana" do homem, o Islã produzia tardiamente uma obra genial no campo da filosofia da história – a Mugaddima de Ibn Khaldün. Mas, ao contrário da De civitate Dei, e sem ter exercido influência imediata,

a Mugaddima revelava já algumas das futuras práticas que viriam a fazer parte do estado de espírito da história

científica moderna.

Todos os especialistas concordam em considerar Ibn Khaldün como "um espírito crítico excepcional para o seu tempo" [Monteil, 1967-68, p. XXV], "um gênio, isto é, um desses seres de intuição sem par" [ibid., p. XXXVI], "avançado em relação ao seu tempo pelas idéias e pelo método" [ibid., p. XXXII]; Toynbee vê na Muqaddima "sem dúvida a maior obra no seu gênero alguma vez criada em qualquer tempo e lugar" [citado ibid., p. XXXV].

componente da produção histórica da humanidade e porque é ainda hoje capaz de influenciar diretamente a reflexão histórica sobre o mundo muçulmano e o Terceiro Mundo. Segue-se a opinião de um intelectual argelino, um médico aprisionado pelos franceses durante a guerra da Argélia, que leu Ibn Khaldiin na prisão: "Fiquei emocionado com a finura e penetração das reflexões sobre o Estado e o seu papel, sobre a história e sua definição. Abriu grandes perspectivas à psicologia... tal como à sociologia política, ao pôr a tônica na oposição entre cidadãos e camponeses ou no papel do espírito de corpo, na constituição dos Impérios e do luxo, na sua decadência" [1959, p. 98]. O geógrafo francês Yves Lacoste vê na Mugaddima "uma contribuição fundamental para a história do subdesenvolvimento, que assinala o nascimento da história como ciência e nos transporta a uma etapa essencial do passado do atual Terceiro Mundo" [1966, p. 17].

Ibn Khaldün nasceu em Tunis em 1332 e morreu no Cairo em 1406; escreveu a Mugaddima no exílio, na Argélia, perto de Biskra em 1377, antes de morrer no Cairo como 'juiz' (entre 1382 e 1406). A sua obra é uma introdução (Muqaddima) à história universal. Sob este aspecto, coloca-se na linha de uma grande tradição muçulmana e reivindica abertamente essa filiação. Para um leitor ocidental moderno, o início da Mugaddima evoca o que no Renascimento ocidental, um ou dois séculos mais tarde, se escrevia e o que alguns historiadores da Antiguidade tinham já escrito: "A história é uma ciência nobre. Apresenta muitos aspectos úteis. Propõe-se atingir um fim nobre. Faz-nos conhecer as condições específicas das nações antigas, que se traduzem no seu caráter nacional. Transmite-nos a biografia dos profetas, a crônica dos reis, suas dinastias e política. Assim, quem quiser pode obter bons resultados, pela imitação dos modelos históricos, religiosos e profanos. Para escrever obras históricas é preciso dispor de numerosas fontes e variados conhecimentos. É também preciso um espírito reflexivo e profundo: para permitir ao investigador atingir a verdade e defender-se do erro" [Ibn Khaldün, al-Mugaddima, introdução].

Ibn Khaldún apresenta a sua obra como sendo "um comentário sobre a civilização" rumrãh); põe em evidência a mudança e a sua explicação. Distingue-se dos historiadores que se contentam em falar dos acontecimentos e das dinastias, sem os explicarem. Ibn Khaldin "dá as causas dos acontecimentos" e pensa que consegue apreender "a filosofia (kikma) da história". Viu-se em Ibn Khaldün o primeiro sociólogo. Parece-me mais uma mistura de antropólogo e de filósofo da história. Distancia-se da tradição: "A investigação histórica alia o erro à superficialidade. A fé cega na tradição (taglid) é congênita..." Graças ao seu livro, "já não precisamos acreditar cegamente na tradição" [ibid., Advertência]. Nas suas explicações são notáveis as referências à sociedade e à civilização, estruturas e domínios essenciais, sem negligenciar a técnica e a economia. Vejamos que tipo de testemunho constituem para o historiador os monumentos edificados por uma dinastia: "Todos estes trabalhos dos Antigos só foram possíveis pela técnica e o trabalho de uma numerosa mão-de-obra... Não devemos dar crédito à crença popular de que os Antigos eram maiores e mais fortes que nós... O erro dos narradores vem de admirarem as grandes proporções dos monumentos antigos, sem compreenderem as diferentes condições da organização social [itgimã e de cooperação. Não vêem que tudo dependeu da organização social e técnica (hindam). Por conseguinte, imaginam erradamente que os monumentos antigos se devem à força e à energia de seres de estatura superior" [ibid., I, III, 16]. Como é natural num muçulmano, dado o que vê e sabe do passado do Islã, dá grande importância à oposição nômades-sedentários, beduínos e citadinos. Homem do Magrebe urbanizado, interessa-se principalmente pela vida urbana, mas também considera o fenômeno dinástico e monárquico e constata que não se trata de uma conseqüência da urbanização: "A dinastia precede a cidade", mas está-lhe muito ligada: "A monarquia chama a cidade" [ibid., H, Iv, pp. 1-2].

Revela-se um grande filósofo da história com a teoria (que anuncia Montesquieu, mas que é já tradicional na sua época entre os historiadores e geógrafos muçulmanos) da influência dos climas, não-desprovida de racismo (perante os negros) e principalmente a teoria do declínio (cf. o artigo "Decadência", neste volume da Enciclopédia). As organizações sociais e políticas duram um certo tempo e encaminham-se para o declínio, com mais ou menos rapidez: por exemplo, o prestígio de uma linhagem só dura quatro gerações. Este mecanismo é especialmente flagrante nas monarquias: por natureza, a monarquia quer a glória, o luxo e a paz, mas uma vez gloriosa, luxuosa e

pacífica, a monarquia entra em declínio. Ibn Khaldiin não separa, neste processo, os aspectos morais e sociais: "Regra geral, uma dinastia não dura mais de três gerações: a primeira mantém as virtudes dos beduínos, a rudeza e a selvageria do deserto... conserva o espírito de clã. Os seus membros são decididos e temidos e as pessoas obedecem- lhes... A segunda geração, sob a influência da monarquia e do bem-estar passa à vida sedentária, da privação ao luxo, da glória comum à partilhada e à de um só... O vigor do espírito tribal corrompe-se um pouco. As pessoas habituam- se ao servilismo e à obediência... A terceira geração esqueceu-se completamente da época da rude vida beduína... Perdeu todo o gosto pela glória e pelos laços de sangue, porque é governada pela força... Os seus membros dependem da dinastia que os protege, como se fossem mulheres ou crianças. O espírito de clã desapareceu completamente. O soberano tem de apelar para a sua clientela, o seu séquito. Mas um dia Deus permitirá a destruição da monarquia" [ibid., I, lu, 12]. Esta teoria subentende a identificação de uma forma sóciopolítica com uma pessoa humana, um modelo organicista e biológico da história. Como disse Jacques Berque: é "um pensamento de magrebe, islâmico e mundial... a alegria amarga do inteligível marcou, através deste homem caído em desgraça, a história que se vivia nesse mesmo momento e que teve o mérito de ser o primeiro a enquadrar em tão vastas perspectivas" [1970, p. 327].

Voltemos ao Ocidente. A Antiguidade greco-romana não teve verdadeiramente o sentido da história. Avançou apenas, como esquemas explicativos gerais, a natureza humana (isto é, a imutabilidade), o destino e a Fortuna (isto é, a irracionalidade), o desenvolvimento orgânico (isto é, o biologismo). Situou o gênero histórico no domínio da arte literária e atribuiu-lhe as funções de distração e utilidade moral. Mas previu uma concepção e uma prática "científica" da história (Tucídides), a investigação das causas (Políbio), a procura e o respeito pela verdade (todos e principalmente Cícero). O Cristianismo tinha dado um sentido à história, mas tinha-a submetido à teologia. No século XVIII e sobretudo no XIX, queriam assegurar o triunfo da história dando-lhe um sentido secularizado pela idéia de progresso, unindo as funções de saber e sabedoria, através de concepções (e práticas) científicas que a identificavam com a realidade, e não só com a verdade (historicismo) e com a práxis (marxismo).

Mas o intervalo que separa a teologia da história medieval do historicismo triunfante do século XIX não é desprovido de interesse do ponto de vista da filosofia da história.

Segundo George Nadei [1964], a idade do ouro da filosofia da história teria sido o período entre 1550 e 1750, aproximadamente. O seu ponto de partida seria a afirmação de Políbio: "A melhor educação e a melhor aprendizagem para a vida política ativa é o estudo da história" [Histórias, I, p.1].

Faço aqui uma observação. Podemos destacar aqui a influência de Maquiavel e de Guicciardini com a condição de referir a posição original destes pensadores sobre as relações entre a história e a política [Gilbert, 1965]. Para Maquiavel, a idéia fundamental é a da especificidade da política e, de certo modo, a política deve ser uma procura da estabilidade da sociedade, opondo-se à história que é um fluxo perpétuo, submetido aos caprichos da Fortuna, como defendiam Políbio e os escritores da Antiguidade. Para Maquiavel, os homens deviam dar-se conta da "impossibilidade de basear uma ordem social permanente, que respeite a vontade de Deus, e em que a justiça seja distribuída de modo a responder a todas as exigências humanas". Por conseguinte, "Maquiavel agarra-se firmemente à idéia de que a política tinha as suas leis próprias, logo, era ou deveria ser uma ciência; o seu objeto era apreender em vida a sociedade no perpétuo fluir da história". A conseqüência desta concepção era "o reconhecimento da necessidade da coesão política e a tese da autonomia da política, desenvolvendo em separado o conceito de Estado" [Gilbert, 1965].

Guicciardini, pelo contrário, quer e realiza a autonomia da história a partir da constatação da mudança (dela se disse, com humor, ser a única lei discernível em história). Especialista do estudo da mudança, "o historiador conquistou assim a sua função peculiar e a história assumia uma função autônoma no mundo do conhecimento; desse modo, o significado da história só era procurado na própria história. O historiador era simultaneamente registro e intérprete. A Storia d'Italia, de Guicciardini é a última grande obra da história organizada segundo o esquema clássico, mas é também a maior obra da historiografia moderna" [ibid., p. 255].

Para Nadel, a concepção dominante da história, do Renascimento às Luzes, foi a concepção de história exemplar, didática, e o próprio método usado baseia-se em lugares-comuns tirados dos estóicos, reitores e historiadores romanos. A história volta a ser um ensinamento para os governantes, como no tempo de Políbio. Esta concepção da história magistra vitae inspirou estudos parciais, tratados de história, de artes historicae (foi publicada em Basiléia, em 1579, uma coleção desses tratados, a Artis Historicae Penus, em dois volumes), sendo os mais importantes do século XVI, o Methodus ad facilem historiaram cognitionem de Jean Bodin (1566), no século XVII, a

Ars historica (1623) de Voss, para quem a história era o conhecimento do particular que é útil lembrar "ad bene

beateque vivendum", no século XVIII, o Méthode pour étudier l'histoire de Lenglet du Fresnoy, que teve a 1á edição em 1713, seguida de outras.

A história dos filósofos das Luzes que se esforçaram por torná-la racional, aberta às idéias de civilização e de progresso, não substituiu a concepção de história exemplar e a história ficou de fora da grande revolução científica dos séculos XVII e XVIII. Sobreviveu nestes termos até a sua substituição pelo historicismo que apareceu na Alemanha, em Gõttingen. No fim do século XVIII, início do século XIX, universitários que não precisavam se preocupar com um público para quem a história era uma ciência ética, transformaram a história numa matéria de profissionais e

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