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O nascimento da idéia de progresso (séculos XVI-XVIII)

No documento Historia e Memoria Jacques Le Goff (páginas 131-135)

PROGRESSO/REAÇÃO

2. O nascimento da idéia de progresso (séculos XVI-XVIII)

A idéia explícita de progresso desenvolve-se entre o nascimento da imprensa no século XV e a Revolução Francesa. Esta idéia não só está longe de se ter espalhado entre todos os intelectuais da época, e mesmo os que a exprimem o fazem – como nos séculos precedentes – com importantes limitações, conscientes ou inconscientes, contendo muitas vezes contradições implícitas. Pode se dizer-se que até o início do século XVII os obstáculos a uma teoria consciente do progresso continuam a ser determinantes; que de 1620 a 1720, aproximadamente, a idéia de progresso se afirma antes de mais nada no domínio científico; depois de 1740, o conceito de progresso tende a generalizar-se e difunde-se nos domínios da história, da filosofia e da economia política. Ao longo de todo este período o que, com avanços e recuos, favorece o nascimento da idéia de progresso são em primeiro lugar as invenções, a começar pela imprensa, o nascimento da ciência moderna tendo como episódios espetaculares o sistema copernicano, a obra de Galileu, o cartesianismo e o sistema de Newton. É também o crescimento da confiança na razão e a idéia de que o mundo físico, moral e social é governado por leis. Por fim, a última grande obra dominada pela idéia de

providência, o Discours sur l'histoire universelle de Bossuet (1681), não põe a existência de constantes na evolução das sociedades em conflito com uma providência todo-poderosa livre, mas não arbitrária.

Dois obstáculos epistemológicos impedem, no entanto, que a noção de progresso se imponha. O primeiro consiste no fato do modelo continuar a ser posto no passado. O humanismo está animado de um sentimento de progresso em relação à Idade Média, termo que inventou na segunda metade do século XV e assenta na idéia de um eclipse dos valores da Antiguidade no presente. O progresso nada mais é que um retorno aos Antigos, um Renascimento Rabelais exprimiu-o com vigor: "Agora todas as disciplinas estão restituídas..." [Gargantua et

Pantagruel, II, VIII].

Sobre as relações entre o humanismo e o progresso científico no século XVI, Lerner, ao estudar o caso da astrologia, formulou o seguinte juízo equilibrado: "O humanismo do Renascimento é ambivalente deste ponto de vista: "progressista" enquanto quer ultrapassar o passado próximo, a media aetas, e seria, neste aspecto, mais moderno que os modernos; mas "conservador" enquanto desaprova esse passado próximo em nome de um passado longínquo que é necessário exumar porque o homem estava então mais próximo da verdade, da sageza, da perfeição.ÌA própria noção de Renascença, enquanto mito, é no fundo indissociável de uma concepção cíclica – de origem astrológica – da História" [ 1979, p. 55].

A concepção dominante da história continua a ser a de uma história cíclica, passando por fases de progresso, de apogeu e de decadência (cf. o artigo "Decadência"). Na primeira parte do século XVIII é ainda a opinião de Montesquieu, expressa não só nas Considérations sur les causes de Ia grandeur des Romains et de leur décadence (1734), mas também na recolha dos seus pensamentos [1716-55] publicada somente em 1917: "Quase todas as nações do mundo seguem este ciclo: primeiro são bárbaras; conquistam e tornam-se nações civilizadas; esta civilização as faz maiores e tornam-se nações polidas; a polidez enfraquece-as; são conquistadas e voltam a ser bárbaras como prova destas afirmações temos os Gregos e os Romano" (citado em Jean Ehrard, Politique de Montesquieu, 1965, p. 82). Mesmo Voltaire "encontrou no passado os seus próprios ideais; eis porque o culminar da sua obra é Le Siècle de Louis

XIV" [Cassirer, 1932, p. 227].

Revelaram-se aqui, segundo Bury [1920], algumas etapas essenciais do nascimento da idéia de progresso, do século XVI ao século XVIII.

L Maquiavel, neste aspecto como em muitos outros, é um conservador. Para ele, a natureza humana é imutável, as boas instituições apenas necessitam da sageza de um bom legislador, o modelo o bom governo encontra- se no passado: é a Roma republicana)

Mas a idéia de um progresso intelectual é afirmada por Rabelais e Petrus Ramus (1515-1572), crítico de Aristóteles e primeiro professor de matemática no Collège de France, que declara no Praefatio scholarum

mathematicorwn (1569): "Vimos num só século maior progresso nos homens e nas obras de saber do que os nossos

antepassados no total dos catorze séculos precedentes" [citado em Bury, 1920], e Guillaume Postel (1510-1581), para quem "os séculos não param de progredir" (saecula semper proficere).

A idéia de progresso, reconhecida no curso da história, afirma-se com Jean Bodin e o seu Methodus ad facilem

historiarum cognitionem [1572]. Rejeita a teoria da decadência da humanidade e recusa o modelo da Idade do Ouro:

"Se essa pretensa Idade do Ouro pudesse ser evocada e comparada com a nossa, considera-la-íamos de ferro". Bodin pensa sem dúvida que a história obedece a uma lei de oscilações, de desenvolvimento seguido de declínio, dando lugar a uma nova fase de desenvolvimento, mas sem retomo ao ponto de partida, pois, através das séries oscilantes, há uma "ascese gradual". Este progresso contínuo é técnico, caracterizado nos tempos modernos por três invenções principais: a bússola, a pólvora e sobretudo a imprensa; mas é também de caráter moral, como testemunha por exemplo a abolição dos espetáculos de gladiadores, na época em que o paganismo antigo foi substituído pelo cristianismo.

governada (pensamos na New Atlantis, escrita por volta de 1623 e publicada, incompleta, em 1627) animam Francis Bacon no Novum Organum (1620) e no De dignitate et augmentis scientiarum (1623). Para ele a Antiguidade, longe de ser um modelo, não é mais que a juventude balbuciante do mundo. O progresso faz-se por acumulação: "O tempo é o grande inventor e a verdade é filha do tempo e não da autoridade". Mas ignorou a importância das matemáticas, e hoje temos tendência, apesar do seu papel no nascimento da experimentação científica, para ver nele um espírito "pré- científico".

Seria ainda mais ridículo definir em algumas linhas o lugar ocupado por Descartes no desenvolvimento da idéia de progresso. Pondo em evidência as uniformidades do sistema da natureza, fundando a unidade da ciência na demonstração de que a natureza obedece a leis, Descartes lançou as bases da noção de progresso. E talvez, com mais rigor, definiu o método científico e filosófico como um processo de progresso contínuo é o que diz a quarta das

Regulae ad directionem ingenii [1628]. "O que entendo por método é um conjunto de regras certas e fáceis, pela

observação exata das quais se estará certo de nunca tomar o falso pelo verdadeiro, sem inúteis esforços do espírito, mas aumentando o saber por um progresso contínuo, chegar ao conhecimento verdadeiro de tudo aquilo do que se é capaz".

Enquanto que a idéia de progresso era, na segunda metade do século XVII, bloqueada pelo jansenismo e por Pascal, a tirania da Providência desaparecia no próprio Bossuet e em Malebranche, que se esforçava por conciliar a fé cristã e o nacionalismo cartesiano. No fim do século a noção de progresso está pela primeira vez no centro de um grande debate filosófico, literário e artístico\a "querela dos antigos e dos modernos" (cf. o artigo "Antigo/moderno"), no âmbito da qual não nos podemos esquecer do lugar capital desempenhado pelo progresso científico, principal promotor da idéia de progresso, sob vários aspectos. A querela prosseguiria durante todo o século XVIII, durante o qual constituirá um tema dominante.

Desde a primeira metade do século XVIII que o conceito de progresso indefinido das Luzes se tornou um dos temas de discussão favoritos nos salões mais em voga em Paris: os de Mme. de Lambert (falecida em 1733), o de Mme. de Tencin (falecida em 1749) e o de Mme. Dupin.

Em 1737 o Abade de Saint-Pierre publica as suas Obervations sur le progrès continuel de la raison

universelle. Para ele a civilização está ainda na infância. Mas o progresso desenvolve-se. Distingue quatro sinais e

instrumentos: o comércio marítimo produtor de riquezas que, por sua vez, permite a generalização dos lazeres, e nomeadamente o crescimento do número de escritores e de leitores; as matemáticas e a física que são cada vez mais estudadas nas escolas e que colocam em questão a autoridade dos antigos; a fundação das academias científicas que favorecem as invenções; a difusão da imprensa e, graças a ela, a difusão das idéias em língua vulgar. Mas a razão prática, isto é, a moral, não conseguiu progressos semelhantes aos da razão especulativa.

Montesquieu nas Considérations sur les causes de la grandeur des Romains et de leur décadence (1734), demolindo a velha idéia da instabilidade das coisas humanas, afirma: "Não é a Fortuna que domina o mundo", mas o conceito de decadência mantém-se sempre fundamental para ele. Louis Althusser [1964] mostrou bem o paradoxo da Fortuna de Montesquieu no século XVIII que, num contexto muito diferente e sob uma forma totalmente diversa, lembra a influência de Joaquim da Fiore no século XIII: "Este feudal inimigo do despotismo tornou-se o herói de todos os adversários da ordem estabelecida. Por uma singular inversão da história, aquele que olhava para o passado apareceu abrindo as portas do futuro... Este paradoxo liga-se antes de mais nada ao caráter anacrônico da posição de Montesquieu. Foi porque ele defendia a causa de uma ordem ultrapassada que se tornou o adversário da ordem presente que outros deveriam ultrapassar" (p. 115).

Voltaire via em Newton o maior homem que jamais tinha vivido (Lettres sur les Anglais (1733), XII). Ernst Cassirer [1932] definiu bem o papel ao mesmo tempo considerável e limitado que Voltaire assumiu na história do progresso da humanidade: "A historiografia crítica deve prestar à história o mesmo serviço que as matemáticas às ciências da natureza. Deve libertar a história do reino das causas finais e fazê-la retornar às causas empíricas reais... A

análise psicológica determina em definitivo o sentido verdadeiro da idéia de progresso; funda-a e justifica-a, mostrando ao mesmo tempo os seus limites e mantendo dentro deles a sua aplicação. Mostra ainda que a humanidade não poderia ultrapassar os limites da sua "natureza" – que essa natureza, todavia, não é dada de uma vez por todas, devendo, ao contrário, ser elaborada pouco a pouco e imposta continuamente através dos obstáculos e das resistências. É evidente que a "razão', como faculdade humana fundamental, é dada desde o início e é, em todo o lado, una e idêntica. Mas, longe de se manifestar exteriormente na sua perenidade e universalidade, dissimula-se por detrás da multidão dos usos e dos costumes e sucumbe sob o peso dos preconceitos. A história mostra como ela supera pouco a pouco estas resistências, como ela se torna aquilo que é por natureza. O progresso verdadeiro não diz respeito à razão, nem à humanidade enquanto tal, mas unicamente à sua exteriorização, à sua revelação empírico-objetiva. E é justamente esta revelação progressiva, esta caminhada da razão em direção à transparência acabada que constitui o sentido verdadeiro do progresso histórico" [Cassirer, 1932, pp. 226-27].

Apesar da sua propensão excessiva para perceber as regressões e declínios ,Voltaire nota na evolução histórica um movimento geral positivo e dá provas de um "historicismo progressista" [cf. Diaz, 1958]. No Essai sur les moeurs observa: "Pelo quadro que traçamos da Europa, desde o tempo de Carlos Magno até os nossos dias, é fácil verificar que esta parte do mundo é incomparavelmente mais populosa, mais civilizada, mais rica, mais esclarecida do que antes, e que é mesmo muito superior ao que era o Império Romano, se excetuarmos a Itália" [1756, II, pp. 810-11]

Para os Enciclopedistas (a Enciclopédie aparece de 1751 a 1765), "a crença no progresso era a base da sua fé, mesmo que, ocupados pelos problemas imediatos do melhoramento, tenham deixado este conceito vago e mal definido. A própria palavra raramente é pronunciada nos seus escritos. A idéia está subordinada a outras idéias entre as quais aparece e com as quais se mistura: Razão, Natureza, Humanidade, Luzes" [Bury, 1920, p. 163]. Como bem disse Ehrard: "A idéia mestra do século das Luzes não foi a idéia de Progresso, mas a de Natureza... O recurso à idéia de Natureza pode traduzir uma atitude mental exatamente oposta à que é expressa pelo tema do Progresso; continuam porém a existir motivos válidos para considerar a deusa Natureza como a mãe do deus Progresso" [1970, p. 389].

Em 1750, com a idade de 23 anos, Turgot, que projetava o Discours sur l'histoire universelle, fez duas conferências na Sorbonne sobre o progresso geral da evolução histórica: Des progrès sucessifs de l'esprit humain e

Avantages que le christianisme a procurés au genre humain. Enquanto que a maioria dos homens das Luzes,

seguindo os humanistas da Renascença, apenas sentiam desprezo pela Idade Média, Turgot sublinhava que tinha havido nessa época progressos nas artes mecânicas, no comércio e em alguns aspectos dos costumes que abriram caminho a tempos mais felizes.

Em 1772 (apareceu uma nova edição em 1776) o marquês de Chastellux publica uma obra intitulada De Ia

félicité publique, onde defende que em nenhuma época do passado foi o homem mais feliz que no presente e que o

progresso do futuro está assegurado fazendo recuar a guerra e a "superstição" (isto é, a religião).

Em 1770 Sébastien Mercier publica em Amsterdã L'an 2440, onde pergunta: "Quando parará a perfectibilidade do homem, tendo à sua disposição a arma da geometria, das artes mecânicas e da química?" [citado em Bury, 1920]. O ano 2240 verá um mundo onde as luzes já triunfaram. L'an 2440 substitui a utopia do tempo pela utopia do espaço [cf. Trousson, 1971]. "A idéia de progresso comanda a representação do tempo, da sucessão dos séculos que culminam com tal futuro... A história já não é marcada por progressos, mas pelo próprio progresso, um movimento global e irresistível cuja finalidade assenta na atualização dos grandes valores que comandam o aperfeiçoamento do espírito humano" [Baczko, 1978, IV, pp. 166, 1681. Do mesmo modo Volney, que publica Les

ruines ou Méditations sur les révolutions des empires em 1791, crê num lento processo progressivo que continuará até

que toda a espécie humana forme uma única e grande sociedade, dirigida pelo mesmo espírito e com as mesmas leis, e goze toda a felicidade de que a natureza humana é capaz.

A apoteose desta ideologia do progresso dá-se, em plena revolução, com o Esquisse d'un tableau historique

técnicas, como, por exemplo, a imprensa. Mata idéia de que o progresso no conhecimento é causa do progresso social e gera liberdade e igualdade é nov ou não tinha nunca sido enunciada com tanta força. Além disso, o progresso tanto ilumina o futuro como o passado: "O método de Condorcet assume por vezes aspectos que fazem pensar naquilo a que hoje se chama futurologia" [Baczko, 1978].

Nesta segunda metade do século XVIII o desenvolvimento de um pensamento econômico influenciado também pela idéia de progresso constitui outra novidade. Porém, na França, a escola dos fisiocratas, particularmente com Quesnay, seu expoente máximo, considera que apenas a agricultura gera riqueza e progresso) O seu discípulo Du Pont de Nemours escreve, apesar de tudo, um tratado com o título Origines et progrès d une science nouvelle (1768).

O inglês Adam Smith expõe, por sua vez, na célebre Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of

Nations (1776) a história de um gradual progresso econômico da sociedade humana, cujos principais aspectos são a

liberdade de comércio e a solidariedade econômica a obra Enquiry Concerning Political Justice (1793), o seu compatriota William Godwin critica o liberalismo e o direito de propriedade e traça um programa de progresso baseado na abolição do Estado, no trabalho e no princípio: a cada um segundo as suas necessidades

Na Alemanha, o otimismo do progresso inspirou Herder nas Idéias sobre a filosofia da história da

humanidade (Ideen zur Philosophie der Geschichte der Menschheit, 1784) e nas Cartas para fazer progredir a humanidade (Briefe zur Befõrderung des Humanitdt, 1793-97) e Kant na Idéia de uma história universal de unia perspectiva cosmopolita (Idee einer Universalgeschichte von den Kosmopolitischen Standpunkt, 1784, onde o

progresso geral é subordinado ao progresso moral.

Kant sofreu a influência de Rousseau, que, no Discours sur le rétablissement des sciences et des arts (1750) e no Discours sur l'origine et les fondements de l'inégalité parmi les hommes (1754) pareceu defender uma teoria de regressão histórica, de antiprogresso, acusando a civilização de corromper a humanidade. Foi assim que estas obras foram compreendidas pela maioria dos contemporâneos e pelos sucessivos leitores de Rousseau, até os nossos dias No entanto, Ernst Cassirer defendeu que Rousseau nunca desejou uma regressão da humanidade e que sublinhou no prefácio do Discours sur l'inégalité que falar de "estado natural" é falar "de um estado que já não existe, que talvez

nunca tenha existido e que provavelmente nunca existirá e sobre o qual é necessário possuir noções justas para bem

julgar do nosso estado presente" Pelo contrário, no Le contrat social (1762) propõe ao homem "transformar o atual estado de constrangimento em estado de razão e a sociedade, que é obra da cega necessidade, em obra da liberdade [Cassirer, 1932, p. 271].

No documento Historia e Memoria Jacques Le Goff (páginas 131-135)

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