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A escatologia cristã (católica, reformada e ortodoxa) na Idade Moderna (século XVI-XIX)

No documento Historia e Memoria Jacques Le Goff (páginas 187-189)

IDADES MÍTICAS

5. A escatologia cristã (católica, reformada e ortodoxa) na Idade Moderna (século XVI-XIX)

Penso, com Mannheim, que o encontro do chilianismo com a revolução provocou uma grande viragem da escatologia cristã. Citemos a célebre página em que Mannheim exprimiu esta idéia: "A viragem decisiva da história moderna foi, do ponto de vista que nos interessa, o momento em que o Chilianismo uniu as suas forças com as exigências ativas das camadas sociais oprimidas. A própria idéia do advento de um reino milenário na terra conteve sempre uma tendência revolucionária e a Igreja desenvolveu todos os esforços para paralisar esta idéia transcendente, usando todos os meios ao seu alcance. Estas doutrinas, que renascem intermitentemente, reapareceram, entre outros, em Joaquim da Fiore, mas no seu caso foram consideradas revolucionárias. No entanto, nos Hussitas, depois em Thomas Münzer e nos Anabaptistas, transformaram-se em movimentos ativos de algumas camadas sociais específicas. Nas aspirações até então desprovidas de um fim específico ou concentradas em objetivos de outro Mundo, sentimos uma tônica temporal. Eram realizadas hic et nunc e penetravam no comportamento social com extraordinário vigor" [1929, p. 154-55].

Thomas Münzer, padre católico que aderiu à Reforma, separou-se de Lutero em quem via a Besta do Apocalipse e tornou-se um dos chefes do grande levantamento de camponeses alemães, em 1525, misturando a pregação do "reino de Deus" com reivindicações agrárias; foi vencido por uma coligação da nobreza católica e protestante e condenado à morte [cf. Bloch, 1921].

Entre os Anabaptistas, a experiência milenarista mais avançada foi a que fez de Münster a Nova Jerusalém, em 1534-35. 0 inspirador foi Melchior Hoffmann que esperou em vão instaurar a "restituição", castigo universal que devia preceder o aparecimento da terceira e última idade da história da humanidade, em que a justiça reinaria, num novo céu e numa nova terra, em Estrasburgo. Em contrapartida, os seus discípulos, o padeiro holandês Jean Matthyssen e Jan Bokelszoon (João de Leida, que foi proclamado "rei do Sião") instauraram em Münster um governo milenarista que, com processos autoritários e sanguinários, esperando a união dos 144 000 eleitos do Apocalipse, transformou a cidade num grande convento misto, com a comunidade de bens e mulheres de acordo com as leis do Antigo Testamento. O movimento foi liquidado em 1535, com a mesma ferocidade com que o tinha sido, em 1525, o dos camponeses e o de Thomas Münzer.

O aparecimento da Reforma trouxe uma certa clarificação das atitudes escatológicas cristãs. A Igreja católica tinha tendência, dentro da linha agostiniana, para combater o milenarismo, para afastar as contradições da interpretação do Apocalipse, ignorar a perspectiva do fim dos tempos e reduzir a escatologia à doutrina e à espiritualidade. Foi de capital importância nestes debates a ação do grande polemista da Contra-Reforma, o cardeal Belarmino. Teve como principal opositor o presbítero inglês Thomas Brightman, que escreveu um Apocalipse do Apocalipse, no qual Lutero era considerado o terceiro anjo do Apocalipse e que revelava uma visão otimista da segunda Ressurreição que deveria conduzir à felicidade, numa nova era.

As Igrejas saídas da Reforma punham, pelo contrário, a escatologia bíblica em lugar de destaque, por razões de ordem polêmica (o Papado e a Igreja Romana são a Besta, a Grande Prostituta da Babilônia) e de ordem espiritual (a espera do Milênio e do Juízo deve desempenhar um papel importante na piedade dos crentes). Lutero serve-se dos

textos escatológicos da Bíblia (sobretudo de Daniel e Tessalônicos II de S. Paulo) para identificar o Papa e os Turcos com o Anticristo, mas encontra resistências no Apocalipse de S. João (no primeiro do dois prefácios escritos em 1522, declara que este livro não lhe parece "nem apostólico, nem profético") e que da escatologia apenas conserva a espera do Dia do Juízo e a crença na sua proximidade [cf. Birbaum, 1958].

A escatologia está presente na maior parte das seitas protestantes e, em particular, nas que mantêm, sob diversos aspectos, o milenarismo igualitário de Thomas Münzer ou o anabaptismo de Münster, tais como os levellers ingleses, ala esquerda da revolução inglesa do século XVII, que identificavam a revolução social com a implantação do reino de Deus na terra; também Gerrard Winstanley (da mesma época) e os seus diggers preconizaram a espera do reino de Deus, já não no além, mas num aquém imediato: "Os vossos falsos guias põem nas vossas cabeças a idéia de um além celestial distraindo-vos, enquanto vos metem as mãos na bolsa... O reino dos céus nada mais será que a própria terra, tomada tesouro comum (common treasury) de todos os homens" [citado em Desroche, 1969, p. 260). Daí o seu programa de ocupação de propriedades fundiárias para restabelecer a "antiga comunidade de consumo dos frutos da terra.

Quer o catolicismo quer o protestantismo conheceram desenvolvimentos extraordinários das doutrinas escatológicas no quadro das Grandes Descobertas e do Novo Mundo americano. Na maioria dos casos, o encontro dos Europeus com os índios desempenhou um papel importante nestes movimentos, em que o fenômeno de aculturação foi essencial. Foram estudados principalmente do ponto de vista dos Europeus, mas Wachtel soube reconstituir La

vision des vaincus [1971], estudo que constitui o quadro indispensável para a compreensão deste fenômeno na

América Latina.

A América é o terreno privilegiado da Igreja católica. O exemplo vinha do alto e de longe. No Livro das

Profecias, Cristóvão Colombo lembra que o fim do mundo deve ser precedido da evangelização de toda a

humanidade e que a descoberta do Novo Mundo tinha alcance escatológico. Atribui a si próprio um papel apocalíptico: "Deus fez de mim o mensageiro de um novo céu e de uma nova terra, que já tinha referido no Apocalipse de S. João, depois de ter falado pela boca do profeta Isaías e mostrou-me o local onde os encontrar".

Destas concepções milenaristas do catolicismo na América Latina pode-se tomar como exemplo a atividade no México e as obras do missionário Jeronimo de Mendieta. Imbuído das velhas teorias de Joaquim da Fiore e dos Espirituais, Mendieta pensava que os irmãos e os índios podiam criar na América o reino dos puros, baseado num ascetismo rigoroso e no fervor religioso. Os Índios constituíam uma nação angélica (genus angelicum) e, com eles, os irmãos podiam construir no Novo Mundo o reino do Espírito, que devia preparar o fim do mundo. Com Carlos V e o Cardeal Cisneiros, Mendieta pensava que se realizaria o sonho de uma Idade do Ouro americana; mas a burocracia espanhola de Filipe II pôs fim a essa crença e Mendieta pensou que o ciclo de espera recomeçava, sendo o reinado de Filipe II uma Idade da Prata: a Jerusalém índia tinha caído e sofrido a dupla provação do domínio espanhol e das epidemias – conhecia o seu cativeiro da Babilônia. No fim da História de los Indios de la Nueva España (1596), Mendieta declara que não pode acabar o seu livro com Salmos de louvor, antes deve chorar e evocar o Salmo 89 de Jeremias e a destruição da cidade de Jerusalém [cf. Phelan, 1956].

Ao norte do México, na América Setentrional, espalha-se a idéia, por influência protestante, de que o seu povoamento constitui o retomo ao paraíso terrestre e a da necessidade de construir a Nova Jerusalém, o que está na origem da força do mito do progresso e do culto da novidade e da juventude no American way of life e da irreverência americana perante a tradição e a história, assim como da "nostalgia adâmica" dos "escritores americanos" [Eliade, 1969; cf. também, Sanford, 1961; Williams, 1962; Niebuhr, 1937; Lewis, 1955].

No entanto, no Este Europeu, ao lado dos messianismos, sempre presentes e renascentes nas comunidades hebraicas, manifestaram-se profundos movimentos messiânicos entre os ortodoxos eslavos, especialmente os russos. A maior parte destes movimentos situam-se no seio da grande dissidência religiosa do raskol, nos séculos XVII e XVIII, quando a maioria dos "velhos crentes" denuncia a Igreja oficial, acusando-a de se ter tornado a Igreja do

Anticristo, e anunciaram o eminente fim do mundo, enquanto que, entre. 1660 e 1770, se verifica uma autêntica epidemia de suicídios coletivos (sobretudo pelo fogo). Muitos hesitavam entre um zar-Anticristo ou um zar redi vivus: zar-Messias [cf. Pascal, 1938; Zenkowsky, 1957]. Sob o impulso do raskol este messianismo se alastrou, como uma mancha de óleo, no Oriente.

O século XVIII, século das Luzes, encontrou um lugar marginal, mas significativo, para idéias e movimentos animados em geral por místicos laicos, com um sistema de esoterismo (com pretensões mais ou menos científicas) e pensamento escatológico, como J. Lavater e Charles de Messe que esperavam o regresso de S. João que deveria abrir o Milênio; no Suécia, Emmanuel Swedenborg (1698-1772) que também anunciou a Nova Jerusalém (título de uma das suas obras) e foi considerado por alguns como o João Baptista da nova era.

Finalmente, o século XIX combinou escatologia, nacionalismo e romantismo e, conforme os casos, tradicionalismo ou socialismo, com utopias milenaristas. A título de exemplo, desses messianismos do século XIX citamos, por um lado, o milenarismo polaco e, por outro, a corrente tradicionalista francesa.

O mais célebre milenarista polaco foi o poeta e patriota Adam Mickiewicz (1792-1855) – influenciado primeiro por Swedenborg e Claude Saint-Martin (1803) – que acreditava que a Revolução Francesa era um fenômeno pré-milenarista e, depois, pelo seu compatriota André Towianski, que encontrou em 1841, no seu exílio em Paris. Foi subretudo o porta-palavra de Towianski na obra L'église officielle et le messianisme [1842-43] e nos seus cursos no Collège de France.

André Towianski (1799-1878) interpreta a história como manifestação da "Grande Obra de Deus". Até então, só individualmente os homens conseguiram participar na "Grande Obra". Daqui em diante essa participação será um fato para as Nações e Povos que, libertados por Napoleão, poderão trabalhar no próximo aparecimento de uma Igreja renovada. Três nações desempenham um papel de primeiro plano neste acordo: os Judeus, os Franceses e os Eslavos, entre os quais os Polacos que, por maior que seja o patriotismo de Towianski, apenas tocam uma "pequena melodia". Towianski apresentava-se a si próprio como o primeiro dos sete mensageiros do Apocalipse. Em contrapartida, Mickiewicz atribuía uma importância muito maior à nação polaca no seu Livre de Ia nation polonaise et de son

pélerinage (1832): "A nação polaca não está morta para sempre. Ao terceiro dia ressuscitará e libertará da servidão

todos os povos da Europa... E já dois dias são passados... e o terceiro dia virá, mas não acabará... Tal como com a ressurreição de Cristo, cessaram em toda a terra os sacrifícios sangrentos, assim com a ressurreição da nação polaca, acabarão as guerras na cristandade" [citado em Desroche, 1969, pp. 187-88 e 248-49].

A corrente escatológica tradicionalista francesa tem, em grande parte, origem numa personagem curiosa, Vintras, de morai duvidosa, defensor de um pseudo-Luís XVII (chamado Naundorf), a quem, desde 1839, aparece S. José, "que lhe dá a missão de anunciar o reino do Espírito Santo, reino do Amor, a renovação da Igreja e o aparecimento conjunto de um Santo Pontífice e de um forte monarca" [citado ibid., p. 255]. Obrigado a abandonar a França em 1852, Vintras fundou em Londres um santuário (capelle éliaque) e escreveu uma grande obra sobre o "Evangelho Eterno". Teve numerosos discípulos, através dos quais influenciou três dos maiores escritores tradicionalistas franceses, do fim do século XIX: Maurice Barrès, Huysman e principalmente, Léon Bloy que, durante toda a vida, espera (e profetizou) o eschàton ("Espero os cossacos e o Espírito Santo") e que identificou o Paracleto com Lúcifer [ibid., pp. 70-71].

No documento Historia e Memoria Jacques Le Goff (páginas 187-189)

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