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Conclusão Escatologia e história

No documento Historia e Memoria Jacques Le Goff (páginas 191-199)

IDADES MÍTICAS

7. Conclusão Escatologia e história

Estão em causa três séries de fenômenos essenciais, como se compreendeu através destes textos e destes movimentos, por vezes estranhos aos olhos da ciência racionalista: as atitudes face ao tempo e à história, os mecanismos profundos da evolução das sociedades, o papel das mentalidades e dos sentimentos coletivos na história.

Ainda neste aspecto, Karl Mannheim esclareceu o problema ao ligar teoria e mentalidade, escatologia (ou utopia), estruturas sociais e contexto histórico: "A estrutura interior da mentalidade de um grupo nunca pode ser apreendida tão claramente, como quando nos esforçamos por compreender a sua concepção de tempo, à luz das suas esperanças, aspirações e desígnios. Uma dada mentalidade não ordena apenas os acontecimentos futuros, com base nestes desígnios, mas também os passados. Os acontecimentos que, à primeira vista, se apresentam como simples acumulação cronológica, adquirem, deste ponto de vista, o caráter de destino' [1929, p. 151].

Nesta fecunda perspectiva, insistiu-se com razão na originalidade da escatologia judaico-cristã que, dando à história não só uma origem mas também um fim (entendido no sentido teleológico) e, no caso do Cristianismo, um centro, a Encarnação, conferiu verdadeiro sentido à história. Mas o que é apresentado como princípio de organização do mundo, instrumento de domínio do tempo, foi talvez sobrevalorizado. Em primeiro lugar, porque a escatologia do eterno retomo e da eternidade dão também um sentido à história, e as escatologias do tempo vetorizado não têm o monopólio da lógica da história. Em seguida, porque as teorias e as práticas de um tempo linear e orientado puderam,

não só tomar ilegíveis certas evoluções históricas, mas também submeter algumas sociedades a uma opressão bárbara, lá onde os incensadores de um progresso, explícita ou implicitamente escatologizado, viam um instrumento de liberalização. É aliás – de um ponto de vista histórico e científico – subestimar, no próprio interior do judaísmo e do cristianismo, as pulsões que levavam a maior parte das sociedades a representar, em termos mais ou menos camuflados, o futuro tendo por modelo o passado e o fim como uma reprodução das origens. Seria conveniente interrogarem-se mais sobre uma certa impotência da humanidade para pensar verdadeiramente o futuro, mesmo no plano dos conteúdos que a nova ciência da futurologia estuda. No íntimo destes "desejos dominantes" de que fala Mannheim, não haverá (segundo o modelo das pulsões individuais reveladas pela psicanálise) um desejo de voltar à matriz original? [cf. Gunkel, 1895; Leeuw, 1950].

O lugar que a revolução ocupa numa história finalizada é outro problema levantado pela escatologia. Parece- me um duplo problema. Por um lado, a presença inelutável de uma intervenção transcendente nesta história, qualquer que seja o nome ou a forma que essa ruptura assuma, no curso da história (Dia do Senhor, Grande Dia ou qualquer outra expressão que designe um novwn extraordinário, feliz ou desastroso), talvez traia também (sob formas religiosas ou laicas) a impotência dos homens para pensarem uma história, cujo fim se atingiria sem ruptura, ou seja, a revolução. É neste sentido que os Cristãos podem ver na Encarnação um fenômeno revolucionário. Por outro lado, este encontro da escatologia com a idéia revolucionária não obrigará a perscrutar melhor, desta vez, não a teoria, mas a realidade histórica, a maneira como, para retomar uma expressão de Mannheim, "estas quimeras que adotam uma função revolucionária" puderam agir também na evolução histórica. Se rejeitarmos os credos religiosos, nem as explicações idealistas, nem o simplismo marxista das relações entre infra e superestrutura conseguem esclarecer esta desconcertante realidade.

Finalmente, para o historiador, o estudo das escatologias torna mais urgente a tarefa de distinguir História e história, devir histórico e ciência histórica. No seu domínio próprio, a inteligibilidade científica da evolução das sociedades, o conceito de escatologia e os fenômenos escatológicos convidam o historiador a ampliar as investigações a novas problemáticas históricas e a estudar esta porção ainda virgem em grande parte, ou mal começada a decifrar, do domínio das mentalidades e dos sentimentos limitados por este conceito e estes fenômenos.

A reflexão sobre o tempo histórico está inacabada. Ela deve apelar mais fortemente para os métodos e os resultados da história das religiões e da antropologia. Um historiador do Budismo, que estudou a escatologia dessa religião, distingue três modos de pensamento e de estados de consciência do homem, perante o tempo: a ausência do tempo como fonte da religião, o conceito do Grande Tempo como fonte do mito, o tempo profano como fonte da razão [Wayman, 19691. Quanto vale para um historiador esta distinção aplicada a realidades históricas precisas?

Em sentido lato – por vezes demasiado lato –, escatologia e apocalipse são tomados como sinônimos de angústia, de medo. Que sabemos nós do medo na história? Alguns estudiosos americanos travaram uma discussão sobre a proximidade de uma psicologia cataclísmica. Este aspecto foi esclarecido, em parte, através da noção de medo do Cristianismo. Mas resta muito para fazer.

O mais importante seria substituir por análises sérias os sentimentos de que se quis fazer a mola psicológica da escatologia. Sem negar a importância da noção de salvação, considero-a no entanto demasiado vaga, demasiado polivalente, para fornecer uma base sólida ao estudo das mentalidades escatológicas. Os desejos de justiça e renovação parecem-me mais fundamentais. Na história dos sentimentos, lançada por Lucien Febvre, quantos temas interessantes de investigação!

E, principalmente, o tema da espera. O historiador que se lançasse nesta pista podia – como bem o sublinhou Henri Desroche [ 1969, pp. 2-7] – encontrar um ponto de partida e uma garantia de boa escolha, nas reflexões de um dos grandes mestres da interdisciplinaridade de hoje – Marcel Mauss. Numa comunicação feita à Société Française de Psychologie, em 10 de janeiro de 1924, afirmava: "Permitam-me assinalar um fenômeno, em relação ao qual precisamos dos vossos conhecimentos, cujo estudo é da maior urgência para nós e que supõe a totalidade do homem...

a espera.

"Entre os fenômenos da sociologia, a espera é um dos que está mais próximo do psíquico e do filosófico simultaneamente, e é, ao mesmo tempo, um dos mais freqüentes...

É especialmente fecundo o estudo da espera e da iluminação moral, dos desenganos, infligidos à espera dos indivíduos e das coletividades, o estudo das suas reações.

Finalmente, a espera é um desses fatos em que a emoção, a percepção e, com maior rigor, o movimento e o estado do corpo condicionam diretamente o estado social e são condicionados por ele... a tripla consideração do corpo, do espírito e do meio social devem aliar-se..." [1924].

A escatologia pode tomar-se um dos temas mais interessantes de história geral, para os historiadores contemporâneos e futuros, graças a um novo olhar sobre a escatologia na história, a espera e a sua variante religiosa, a

esperança. [J. Le G.].

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Doutrina dos fins últimos do indivíduo (cf. anthropos, homem) e da humanidade, a escatologia, presente em todas as religiões, das mais diversas formas (cf. religião), pensa o tempo (cf. tempo/temporalidade) como tendo um fim ou divide-o em períodos (cf, periodização) que são outros tantos ciclos (cf. ciclo), cada um com o seu próprio fim. Este limite do tempo pode ser concebido como um retorno às origens, à primeira idade, que foi a da felicidade (cf.

idades míticas) ou, pelo contrário, como um fim, senão do mundo, pelo menos do mundo tal como é. Desta última

maneira, o fim do tempo aparece na escatologia judaico-cristã, no quadro da qual se desenvolvem as tendências milenaristas (cf. milênio), combatidas pela igreja, como formas de heresia. É em alguns milenaristas que a idéia utópica (cf. utopia) se encontra, pela primeira vez, com a idéia de uma revolução social. No mundo moderno (cf.

antigo/moderno) existem diversas variantes de escatologia, quer religiosa quer laica; neste último caso, a escatologia

associa com freqüência a confiança num progresso da humanidade (cf. progresso/reação) à idéia de uma viragem da história que porá fim ao seu caráter atual (cf. calendário, decadência, imaginação social, passado/presente, futuro).

DECADÊNCIA

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