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Os domínios do modernismo

No documento Historia e Memoria Jacques Le Goff (páginas 103-106)

ANTIGO/MODERNO

6. Os domínios do modernismo

As querelas entre antigos e modernos foram as mais antigas formas de confronto entre ambos. O debate travou-se essencialmente no campo literário e, em termos mais gerais, cultural. Até às lutas recentes da modernidade (do fim do século XIX ao XX), a literatura, a filosofia, a teologia, a arte (sem esquecer a música: no século XV, aars

nova e no XVI Jean-Jacques Rousseau com a Dissertation sur la musique moderne) estiveram no centro desses

debates e combates, mas acima de tudo, para a Antiguidade, Idade Média e Renascimento.

A partir do fim da Idade Média intervém no conflito – embora se mantenha sempre no campo dos antigos e modernos – uma visão mais global: a da religião. A devotio moderna não altera os fundamentos do Cristianismo, a Reforma do século XVI não se assume como movimento "moderno" (pelo contrário, com as suas referências ao Antigo Testamento, à Igreja Primitiva, etc.) e o movimento "modernista", no início do próprio século XX, teria tido um alcance limitado se a alta hierarquia da Igreja católica não lhe tivesse dado um significado que ultrapassava os seus

objetivos. A entrada do domínio religioso na esfera do confronto antigo/moderno assinala a ampliação do debate. Não é demais sublinhar que, do século XV ao XVII, o debate, tal como é sentido pelos contemporâneos, amplia-se a dois novos campos essenciais.

O primeiro é o da história. Sabe-se que o Renascimento cria o conceito de Idade Média, necessário apenas como forma de preencher o fosso entre os dois períodos positivos, plenos, significativos, da história: a história antiga e a história moderna.

A verdadeira novidade, de que tudo o mais decorre, é a idéia de uma história "moderna". O segundo é o da ciência. Ainda hoje os progressos da ciência "moderna" atingem apenas a elite intelectual – só as invenções do fim do século XVIII e do XIX são compreendidas pelas massas. Mas Copérnico, Kepler, Galileu, Descartes e depois Newton convenceram uma parte do mundo culto que, se Homero, Platão e Virgílio continuam insuperados, Arquimedes e Ptolomeu foram destronados pelos estudiosos modernos. Os Ingleses foram os primeiros a aperceberem-se disso. Fontennelle no Prefácio da Histoire de l'Académie royale des Sciences, depuis 1666 jusqu'en 1699 põe na primeira linha dos progressos do espírito humano, de que é um dos arautos, "a renovação das matemáticas e da física". E esclarece: "Descartes e outros grandes homens trabalharam nelas com tanto êxito que tudo mudou de face, neste gênero de literatura". Para ele, o mais importante é que os progressos das ciências tiveram repercussão em todo o espírito humano. "A autoridade deixou de ter mais peso que a razão... A medida que estas ciências progrediram, os métodos tornaram-se mais simples e mais fáceis. Finalmente, as matemáticas não só deram, desde há algum tempo, uma infinidade de verdades no seu domínio específico, como também produziram nos espíritos um rigor talvez ainda mais preciso que todas estas verdades".

A revolução do moderno data do século XX. A modernidade, analisada até então apenas no plano das "superestruturas'; define-se, daqui em diante, em todos os planos considerados importantes pelos homens do século XX: a economia, a política, a vida cotidiana, a mentalidade.

O critério econômico torna-se primordial, como se viu, com a introdução da modernidade no Terceiro Mundo. E, no complexo da economia moderna, a pedra de toque da modernidade é a mecanização, ou melhor, a industrialização. Mas, do mesmo modo que Fontenelle via no progresso de algumas ciências um progresso do espírito humano, o critério econômico da modernidade passa a ser entendido como um progresso da mentalidade. E, ainda aqui, é a racionalização da produção que é retida como signo essencial de modernidade. Os grandes espíritos do século XIX já tinham se apercebido disso, como sublinha Raymond Aron: "Auguste Comte conduzia a exploração racional dos recursos naturais, tendo em vista o projeto prioritário da sociedade moderna e Marx deu, do dinamismo permanente, constitutivo da economia capitalista, uma interpretação que ainda hoje continua válida" [1969, p. 269]. Gino German, citando o mesmo assunto: "Em economia, o processo de secularização significa, antes de mais nada, a diferenciação das instituições especificamente econômicas... com a incorporação da racionalidade operatória como princípio fundamental de ação..." [1968, p. 354].

Esta concepção "intelectual" da modernidade econômica levou um grupo de especialistas de ciências sociais a colocar recentemente em questão o problema das relações entre moral protestante e desenvolvimento econômico, difundindo as teses de Max Weber e R. H. Tawney sobre os séculos XVI e XVII europeus, aos países não-ocidentais contemporâneos [Eisenstadt, 1968]. Estas teses, que considero erradas, têm o mérito de colocar o problema das relações entre religião e modernidade numa base mais ampla que a das querelas de exegetas ou de teólogos. Na mesma perspectiva, a modernidade pode ser investigada – hoje – através da demografia. Começando pela família, Gino Germani vê na secularização da família (divórcio, controle de natalidade, etc.) um aspecto importante do processo de modernização e alia a família moderna à industrialização, como, segundo ele, o caso do Japão demonstra. Henri Lefebvre refere entre os traços distintivos da modernização, o aparecimento da "mulher moderna" [1962, p. 152-58].

em jogo na oposição antigo/moderno. Em primeiro lugar, com a economia, o "moderno" é posto em relação, não com o "progresso" em geral, mas com o "desenvolvimento" ou, em sentido mais restrito, segundo alguns economistas liberais, com o "crescimento". Por outro lado, 'moderno' já não se opõe a 'antigo', mas a 'primitivo'. É no domínio religioso que Van der Leeuw opõe à "mentalidade primitiva" "incapaz de objetivar, a "mentalidade moderna", definida pela "faculdade de abstração" [1937].

Mas o século XX definiu também a modernidade por algumas atitudes políticas. "É banal constatar", diz Pierre Kende [1975, p. 16], "que as estruturas da vida moderna são, diretamente, o produto de duas séries de revoluções: a que interveio na esfera da produção (passagem do artesanato à indústria) e a que teve lugar na política (substituição da monarquia pela democracia)". E acrescenta: "Ora, o uso produtivo supõe o cálculo racional que é ainda um aspecto do pensamento laico e científico". Marx, no fim do artigo Zur Kritik der hegelschen Rechtsphilosophie [1843], escrevia: "A abstração do Estado enquanto tal pertence apenas ao tempo moderno... A abstração do Estado político é um produto moderno... A Idade Média é o dualismo real, a Idade Moderna, o dualismo abstrato".

Raymond Aron põe fundamentalmente o problema da "ordem social da modernidade" [1969 p. 298], parte do fato econômico e mais precisamente da produtividade do trabalho e parece chegar, como se viu, à idéia de uma "ambição prometéica", baseada na ciência e na técnica, como "fontes da modernidade", define a "civilização moderna" por três valores cuja ressonância política é clara: "igualdade, personalidade, universalidade" [ibid., p. 287].

Observou-se que, se a maior parte dos jovens estados africanos se dotaram de instituições políticas de tipo ocidental (sufrágio universal e direitos iguais, separação dos poderes), nem sempre a sua modernização conseguiu vencer um "círculo vicioso": a transformação desses estados em países modernos pressupunha a unidade nacional, enquanto que esta se apoiava em estruturas (etnias e chefes) ligadas à tradição e opostas à modernização.

Depois de Marx, o Estado moderno define-se mais ou menos pelo capitalismo. Conseqüentemente, não é de admirar que para muitos, e algumas vezes ingenuamente, o modelo de modernismo seja os Estados Unidos e nomeadamente de modernismo político. Kennett Sterril baseou num inquérito, feito nos Estados Unidos da América, uma definição do "politically modern man" cujo interesse principal consiste em assinalar a influência (ou o refletir) da política externa nos Estados Unidos... O americano é apresentado muitas vezes como o protótipo do homem moderno. Para concluir, a modernidade definiu-se pelo seu caráter de massa: é uma cultura da vida cotidiana e uma cultura de massas. Baudelaire, apesar da sua definição elitista, orientou a modernidade para o que Henri Lefebvre, filósofo da modernidade e da vida cotidiana, chamou "a flor do cotidiano". Os movimentos artísticos da Arte Nova, na viragem do século XIX para o XX, investiram a modernidade quer nos objetos quer nas obras, a modernidade conduz ao design e ao gadget. Pierre Kende vê uma das características da modernidade e da aceleração na "difusão maciça das idéias", na "comunicação de massas". Se MacLuhan se enganou ao predizer a desintegração da galáxia Gutenberg, teve razão em sublinhar o papel do audivisual na modernidade, tal como Leo Bogard em The Age of

Television [1968].

Edgar Morin foi quem melhor descreveu e explicou a modernidade como "cultura de massas". Fá-la nascer nos Estados Unidos dos anos 50 do século XX e espalhar-se em seguida na sociedade ocidental. Define-a assim: "as massas populares urbanas e de uma parte dos campos acedem a novos standards de vida: entram progressivamente no universo do bem-estar, da distração, do consumo, que até então era exclusivo das classes burguesas. As transformações quantitativas (elevação do poder de compra, substituição progressiva do esforço do homem pelo trabalho da máquina, aumento do tempo de descanso) operam uma lenta metamorfose qualitativa: os problemas da vida individual, privada, os problemas da realização de uma vida pessoal, põem-se com insistência, não só no plano das classes burguesas, mas da nova grande camada salarial em desenvolvimento" [1975, pp. 199-21].

Morin entende que a principal novidade está no tratamento que a cultura de massas impõe à relação real- imaginário. Esta cultura, "grande construtora de mitos" (o amor, a felicidade, o bem-estar, o descanso, etc...) não funciona só do real para o imaginário, mas também no sentido inverso: "Ela não é só evasão, é também e

contraditoriamente: integração" [ibid.]. Finalmente, o século XX projetou a modernidade no passado, em épocas ou sociedades que não tinham consciência de modernidade ou tinham definido a sua modernidade de outro modo. Assim, um eminente historiador francês, Henri Hauser, em 1930, atribuiu ao século XVI (que tinha posto os antigos num pedestal e que só se tinha reconhecido como moderno em artes e letras, e em relação à Idade Média) uma quíntupla modernidade: "uma revolução intelectual', uma "revolução religiosa", uma "revolução moral", uma "política nova" e uma "nova economia". E conclui: "Seja qual for o lado por que o olhemos, o século XVI aparece-nos como uma prefiguração do nosso tempo. Concepção do mundo e da ciência, moral individual e social, sentimento das liberdades interiores da alma, política interna e internacional, aparecimento do capitalismo e formação do proletariado, poderíamos acrescentar o aparecimento de economia nacional; em todos estes domínios, o Renascimento trouxe novidades singularmente fecundas, mesmo quando eram perigosas..." [1930, p. 105].

Mas será que se pode falar de modernidade onde os supostos modernos não têm consciência de sê-lo ou não o dizem?

No documento Historia e Memoria Jacques Le Goff (páginas 103-106)

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